O vocabulário neogótico e sua expressão na arquitetura sacra paraense

Bianca Ribeiro da Silva e Cybelle Salvador Miranda

Como citar: SILVA, Bianca Ribeiro da; MIRANDA, Cybelle Salvador. O vocabulário neogótico e sua expressão na arquitetura sacra paraense.  19&20, Rio de Janeiro, v. XX, 2025. DOI: 10.52913/19e20.xx.10. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/19_20/artigo/neogotico-paraense/

•     •     •    

Introdução

1. O vocábulo “gótico” adentrou o léxico da história da arte no contexto da Renascença italiana, sendo empregado de modo depreciativo para desqualificar as edificações medievais, associando-as aos “godos,” povos bárbaros considerados desprovidos do refinamento artístico que caracterizava o classicismo greco-romano, cuja influência ressurgia com vigor naquele período. Tal denominação não apenas evidenciava a hegemonia estética clássica, como também relegava a arquitetura medieval um estatuto de inferioridade cultural, entendida como um desviante de normas universais de proporção e harmonia (Toman, 2004).

2. Enquanto expressão arquitetônica, o gótico desenvolveu-se de maneira singular nas diferentes nações europeias, adaptando-se às especificidades culturais, sociais e artísticas de cada região. Posteriormente, o movimento neogótico inglês emergiu como uma interpretação mais livre e eclética da linguagem primária gótica, combinando elementos de distintos períodos e ajustando-os à estética e funcionalidade das novas demandas contemporâneas (Toman, 2004; Meneguello, 2000).

3. O desenvolvimento industrial do século XIX consolidou-se como um marco transformador, definido pela intensa absorção e disseminação de ideais estéticos e culturais, amplamente moldados pelo acelerado progresso do comércio e da produção em escala industrial. Nesse cenário, o movimento neogótico, representado pelo “Gothic Revival” e liderado por A. W. Pugin a partir de 1836, assumiu um papel central como ponte simbólica entre a estética medieval e as exigências da modernidade industrial. A incorporação de elementos góticos à produção mecanizada ilustrou tanto a tentativa de resgatar uma idealizada pureza artística quanto a inevitável transformação dessa herança dentro da lógica de um mercado dinamizado (Fabris, 1987).

4. A linguagem arquitetônica, conforme definida por Marina Waisman (2013), constitui um sistema de comunicação visual e simbólica no qual os elementos arquitetônicos operam como signos, capazes de expressar significados culturais, históricos e estilísticos. Com relação ao neogótico, observa-se sua ampla presença em ambientes sacros, em razão de sua relação próxima com aspectos sacramentais, que evocam uma espiritualidade nativa a esses elementos arquitetônicos. Por esta razão, é difundido como uma linguagem e tipologia dominante na construção de espaços religiosos, especialmente em igrejas católicas.

5. Foi a partir dessa perspectiva que o presente artigo se constituiu no âmbito do grupo de pesquisa “Arquiteturas em busca de enquadramento,” vinculado ao Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO) da Universidade Federal do Pará. A investigação propõe uma análise da arquitetura neogótica como linguagem expressiva e tipologia persistente no cenário da arquitetura sacra em Belém do Pará, durante o período eclético. O estudo busca compreender como essa forma arquitetônica se materializa localmente, apropriando-se de códigos visuais herdados do gótico medieval europeu, especialmente em edificações religiosas erguidas entre o final do século XIX e início do XX na capital do Estado.

Resquícios medievais no século XIX: a gênese do neogótico

6. Com o colapso do Império Romano e a transição para a chamada Idade Média, a concepção arquitetônica sofreu uma transformação profunda, deslocando-se da centralidade antropocêntrica que caracterizava o período clássico para uma orientação voltada à transcendência divina. A monumentalidade das construções, que outrora celebravam o poder e a razão humanas, passou a refletir um anseio pela elevação espiritual e pela conexão com o sagrado. Enquanto na antiguidade os edifícios evocavam o cosmos descendo à terra, os edifícios medievais, especialmente as igrejas, assumem a função de conduzir o homem em direção a Deus (Brandão, 1999).

7. O medievalismo, tradicionalmente vinculado às aspirações do movimento romântico, emergiu como um elemento fundamental nas artes, arquitetura, literatura e tipografia, marcando um ressurgimento de interesse pelo passado medieval, como ilustrado na célebre obra Notre-Dame de Paris (1831) de Victor Hugo (Meneguello, 2000; Benevolo, 2009).

8. No século XIX, com o advento do neogótico ou revivalismo gótico, figuras como John Ruskin e Eugène Viollet-le-Duc resgataram os ideais medievais como uma forma de oposição à mecanização da vida moderna. A restauração de edifícios medievais, iniciada durante o Primeiro Império francês, desempenhou um papel fundamental na introdução do gótico nos projetos contemporâneos. Desde as intervenções controversas de Napoleão, como a restauração de Saint-Denis, até o trabalho de figuras proeminentes como Viollet-le-Duc em Notre-Dame de Paris, o gótico emergiu como um campo de debate e experimentação (Stock, 1976 apud Pereira, 2011; Benevolo, 2009).

9. Nesse processo de apropriação e adaptação do gótico no século XIX, a coexistência de referências tornou-se uma marca do período. Fabris (1987), aponta as dificuldades em torno do neogótico e seu confronto com o neoclassicismo. Frequentemente, essas estéticas eram empregadas de forma concomitante, com elementos provenientes de distintas tradições arquitetônicas convivendo em um mesmo edifício. Essa prática revelou uma característica marcante da produção arquitetônica oitocentista, amplamente definida por um ecletismo estético (Matos, 2017).

Entre símbolos e estruturas: o neogótico como linguagem e tipologia arquitetônica

10. A partir da análise entre a forma e o significado na arquitetura neogótica, é possível compreender como os elementos arquitetônicos transmitem conceitos que são inerentes à estrutura de determinado edifício. Segundo Cassiani (2018), após sua introdução no Brasil com a Missão Artística Francesa, o neogótico consolidou-se como uma das principais linguagens empregadas na edificação de igrejas, resgatando o senso de tradicionalismo, imponência e eloquência das antigas catedrais europeias (Waisman, 2013).

11. Nesse contexto, torna-se necessário articular o conceito de linguagem arquitetônica à noção de tipologia.[1] O conceito de tipologia arquitetônica sofreu diversas reformulações ao longo da história da arquitetura, sendo constantemente reinterpretado em função das transformações paradigmáticas do pensamento arquitetônico. Com o advento do pensamento científico moderno, emergiu o esforço de sistematizar, ordenar e classificar os fenômenos naturais, estendendo-se essa lógica à arquitetura.

12. Como aponta Feferman (2009), esse processo de racionalização tornou-se evidente na apropriação das geometrias euclidianas e na tentativa de organizar os edifícios segundo classificações tipológicas – um processo análogo à taxonomia dos seres vivos. Essa “taxonomia” arquitetônica permitiu que as formas construídas fossem compreendidas não apenas como expressões de categorias reconhecíveis. A análise atenta dos elementos constitutivos de um edifício revela traços tipológicos que o vinculam determinada construção a uma linhagem histórica e simbólica.

13. O desenvolvimento da arquitetura gótica foi marcado por avanços técnicos e por uma transformação significativa na simbologia arquitetônica. Um dos aspectos mais notáveis foi o aumento da escala dos edifícios e a ênfase na verticalidade, características que expressam a aspiração espiritual de conexão com o divino. Schulz (2003) argumenta que as catedrais góticas, projetadas para serem vistas de longas distâncias, emergiram como marcos visuais imponentes, simbolizando o poder da Igreja e sua posição central na vida espiritual e social da época. Essa busca pela elevação espiritual se reflete nas torres, agulhas e pináculos, elementos arquitetônicos que acentuam a verticalidade e reforçam a sensação de ascensão.

14. A adesão ao conhecimento sensível, ligado à experiência direta da realidade, possibilitava um entendimento intelectual mais profundo, permitindo o reconhecimento das causas últimas dos fenômenos a partir de seus efeitos visíveis (Argan apud Maiolino, 2009). Esses princípios, que fundamentaram a arquitetura e o pensamento medieval, ganharam uma ressignificação no movimento neogótico, que emergiu no século XIX.

15. No neogótico, observa-se uma recuperação das formas e elementos estéticos góticos, como também da mesma busca por transcendência e simbolismo que caracterizava as catedrais medievais. As estruturas neogóticas, tentavam recriar essa harmonia cósmica e espiritual, aproximando-se da ideia de que a arquitetura deveria refletir a ordem divina (Brandão, 1999).

16. Assim como no período medieval, os elementos arquitetônicos, como arcos ogivais [ Figura 1 ], tabernáculos [ Figura 2 ] e vitrais [ Figura 3 ], tornavam-se símbolos de uma conexão espiritual, onde se relacionava o material e o transcendente. A busca pela luz, como uma representação do divino, retornava no neogótico através de janelas amplas e ornamentadas, criando espaços imersivos que evocavam uma sensação de espiritualidade (Brandão, 1999; Meneguello, 2001).

O neogótico na paisagem eclética de Belém

17. O surgimento do neogótico na capital paraense ocorreu durante a expansão do Ecletismo no cenário amazônico. O período, também conhecido como belle époque, constitui-se como um processo de reurbanização da cidade de Belém, durante o final do século XIX e início do XX, fruto das melhorias econômicas advindas da extração de recursos naturais da floresta amazônica, caracterizada pela exploração da borracha em larga escala.

18. Durante esse período, a arquitetura sacra paraense vai apresentar influência de referências medievais, tendo exemplos notáveis como o gótico lombardo na Igreja da Santíssima Trindade, bem como dos elementos neogóticos na Capela Pão de Santo Antônio, na Igreja São Raimundo Nonato, na Igreja São Sebastião e na Capela da Imaculada Conceição. Ao analisar o Mapa 1, observa-se que a linguagem neogótica se manifesta nos extremos da capital, tanto na região central da cidade, em bairros nobres como o Umarizal, quanto nas regiões mais periféricas, como no bairro do Guamá e Sacramenta.

Igreja da Santíssima Trindade

19. Dentre as edificações, cabe destacar a Igreja da Santíssima Trindade, umas das mais antigas com influências neogóticas da cidade e que, em 2024, completou 210 anos de existência. A história deste edifício religioso acompanha os fluxos migratórios do século XVIII. Entre 1755 e 1759, houve a chegada de quatro irmãos que fariam a migração da Ilha da Angra do Heroísmo para a Vila de Souza do Caeté, em Bragança, Pará. Os jovens eram religiosos dedicados, devotos da Santíssima Trindade e estavam condicionados à responsabilidade do irmão mais velho, José Antônio Abranches. A Figura 4, extraída do Álbum de Belém – Pará (1902), registra a edificação antes das intervenções que inseriram as características neogóticas, realizadas em 1942 (Matos, 2017).

20. A chegada dos irmãos foi concomitante a partida do Governador que, vendo a situação dos mesmos, decide lhes conceder um terreno para a lavoura, de modo que eles permanecessem na cidade de Belém. Em 1802, José Abranches, em seus últimos dias de vida, decide construir uma igreja dedicada à Santíssima Trindade. Para tal objetivo, o fiel pediu permissão ao Bispo, que a concedeu; em 1814, foi iniciada a primeira construção (Matos, 2017).

21. Os elementos do altar-mor revelam detalhes característicos do neogótico, principalmente pela adição de relevos e pináculos [ Figura 5, à direita ]. Sua construção é atribuída ao arquiteto José Sidrim (1881-1969).[2] Devido à grande vocação comercial do gótico no início do século XX, catálogos como o Creations In Ecclesiastical Art – Special Altar Edition retratam diversos modelos de altares que serviram como inspiração para a produção projetual de seus leitores. Segundo Matos (2017), a publicação visava a esclarecer dúvidas ao oferecer exemplos de modelos executados e reconhecidos por seu valor artístico, como observado na Figura 5, onde fazemos uma comparação entre um dos modelos encontrados no catálogo e a imagem do altar, que foi depois reformado.

22. Analisando a planta da igreja [ Figura 6 ], nota-se que há uma configuração simplificada em relação ao que comumente se encontra na tipologia das edificações sacras neogóticas, com a presença de uma nave central e um presbitério,[3] sem a presença de altar lateral.

23. Além dos elementos neogóticos presentes no altar, a igreja incorpora outras características que a aproximam da estética do gótico medieval [ Figura 7 ]. Destacam-se, dentre elas, os nichos ogivais dispostos em toda a extensão da igreja, abrigando as imagens sacras, conferindo ao espaço uma composição verticalizada e reverente [ Figura 8 ]. Os vitrais coloridos narram episódios religiosos, ao mesmo tempo que filtram a luz natural de forma a criar uma atmosfera de contemplação e transcendência.

Capela Pão de Santo Antônio

24. A história da Capela Pão de Santo Antônio está alinhada com a criação da Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio, que teve origem por volta de 1928, com a figura elemental do Frei Ângelo Maria de Vignola, superior do convento de São Francisco de Assis o qual, em voto a Santo Antônio, iniciou um trabalho caritativo em favor dos paroquianos necessitados em retribuição ao restabelecimento do estado de saúde de um querido amigo. Em 1930, a fundação da associação é efetivamente realizada com o auxílio da Sra. Ernestina Magalhães, que durante a ausência de Frei Ângelo tratou de continuar os trabalhos sociais e, consequentemente, o cumprimento do compromisso religioso. Com o crescimento cada vez maior de uma população carente na área, optou-se pela construção de um edifício que seria nomeado como Casa de Santo Antônio. Suas obras foram finalizadas apenas em 1944, após cerca de 8 anos de construção árdua desde o lançamento da pedra fundamental, em 1936 (Castro, 2017).

25. A inauguração da capela ocorreu com muita celebração em 1940, e o término de suas obras marcou uma das fases mais importantes da conclusão do projeto da Casa, por se tratar de um elemento idealizado pelos colaboradores da construção na fase projetual. Apesar dos esforços, o projeto contou com pequenos entraves que atrasaram sua finalização e fizeram com que a construção fosse entregue em etapas (Castro, 2017).

26. Como observado na Figura 9, assim como a Igreja da Santíssima Trindade, por se tratar de um espaço de pequenas dimensões, a Capela Pão de Santo Antônio possuí uma distribuição exígua, sem a presença de altar lateral, apenas contando com a presença da nave central e o presbitério.

27. Em seu interior, encontram-se doze janelas vitrais remontando a características do neogótico que demonstram passagens bíblicas como, Santo Antônio acalmando os mares e Santo Antônio distribuindo o pão bento [ Figura 10 ]. O altar que aloja o retábulo exibe uma configuração distinta, caracterizada por um arco ogival de volta elevada [ Figura 11 ]. Destaca-se, ainda, o friso do amplo arco ogival que antecede o altar, culminando com uma representação ornamentada de Jesus crucificado no topo do arco (Castro, 2017).

Igreja São Raimundo Nonato

28. A Igreja São Raimundo Nonato emerge como um dos mais proeminentes exemplos da arquitetura neogótica na cidade de Belém, destacando-se pela presença marcante de seus arcos ogivais nas aberturas, bem como pela imponência de sua torre e agulha na fachada. No interior da igreja, embora possua característica mais modernas, os elementos distintivos da linguagem neogótica são mantidos, evidenciados pelo uso contínuo dos arcos ogivais que permeiam grande parte de sua extensão. A foto da Figura 12, publicada em 1958 na Folha Vespertina, documenta visualmente a volumetria original da edificação, evidenciando sua conformação verticalizada.

29. A trajetória da Igreja São Raimundo Nonato teve início graças à iniciativa do Bispo Dom Santino Maria da Silva Coutinho o qual, no ano de 1916, adquiriu um terreno junto com uma casa situada no número 123 da Avenida São João, no coração do Bairro de São João do Bruno, atualmente Bairro do Telégrafo sem Fio. Naquela área, os confrades vicentinos haviam estabelecido, desde 19 de junho de 1915, uma conferência dedicada a assistir os necessitados que residiam na periferia.[4]

30. No dia 3 de setembro de 1916, benzeu-se a primeira pedra e decidiu-se que a Capela fosse consagrada a São Raimundo Nonato, que pertencia à Ordem dos Mercedários, cujos padres tanto tinham contribuído para a evangelização do Pará na época da conquista e da colonização. Investido do desígnio de expandir a influência religiosa naquela comunidade, Dom Santino empreendeu a construção de uma capela, posteriormente reconhecida como a Capela da Medalha Milagrosa.

31. Na mesma data, presidiu a solene cerimônia de lançamento da primeira pedra, optando por consagrar o edifício a São Raimundo Nonato. Este santo, vinculado à veneranda Ordem dos Mercedários, exerceu um papel seminal na história religiosa do Pará, com os membros dessa ordem contribuindo de forma indelével para a difusão da fé durante os períodos de colonização e conquista. Com a incumbência da construção da Capela, os empreiteiros Faustino Pereira e Filho foram designados para a concretização. No dia 25 de abril de 1917, o Bispo Dom Santino procedeu à bênção solene da nova capela e celebrou ali a primeira missa, marcando um evento de profundo significado espiritual e comunitário.

32. A nova paróquia foi estabelecida através do desmembramento da paróquia de Nazaré. Após a aquisição do terreno atualmente destinado à construção da Igreja-Matriz, em 1937, deu-se início a uma campanha de arrecadação de fundos, conduzida com zelo pelos paroquianos. O propósito dessa empreitada era viabilizar os recursos necessários para a edificação do novo templo. Em um evento no dia 10 de setembro de 1940, foram celebradas as últimas Missas na antiga matriz, então conhecida como a Capela da Medalha Milagrosa. A foto da Figura 13, registrada em 2025, apresenta a fachada atual da edificação, revelando a permanência dos elementos distintivos da linguagem neogótica.

33. Como observado na planta da construção, assim como as demais igrejas mencionadas, a Igreja São Raimundo Nonato apresenta uma organização espacial de configuração mais direta, composta por uma nave central e um presbitério [ Figura 14 ]. No entanto, distingue-se pela presença de um átrio situado à esquerda, que possibilita o acesso externo aos demais ambientes paroquiais.

34. O emprego expressivo de arcos ogivais em seu interior reforça a verticalidade do espaço [ Figura 15 ], perceptível tanto nas molduras arqueadas que emolduram os vitrais do ambiente sacro, quanto na incorporação desses mesmos elementos ao mobiliário litúrgico [ Figura 16 ].

Igreja São Sebastião

35. Localizada no bairro da Sacramenta, a Igreja São Sebastião é um notável exemplo das influências neogóticas que enriquecem o panorama arquitetônico da cidade de Belém do Pará [ Figura 17 ]. Embora seu interior revele traços de modernidade, à semelhança da Igreja São Raimundo Nonato, a edificação distingue-se pela proeminência de suas aberturas em arcos ogivais, que conferem leveza e verticalidade ao conjunto. Adicionalmente, o uso de janelas elegantemente emolduradas por essas mesmas ogivas, intensifica a atmosfera de espiritualidade, remetendo à tradição estética gótica.

36. O edifício, além de seu valor estético e religioso, constitui um testemunho concreto do engajamento da comunidade local, refletindo as transformações históricas e urbanas do bairro ao longo do tempo. A origem da Igreja remonta ao ano de 1939, com a chegada do padre holandês Sebastião Swerts. Este desempenhou um papel central na organização inicial da comunidade de fiéis, celebrando a primeira missa em um espaço provisório cedido generosamente pelos fiéis, identificados como Sr. Otacílio e Sra. Edite. Esse evento inaugural marcou o início das atividades religiosas no local, simbolizando o nascimento de um vínculo profundo entre espiritualidade, ação comunitária e arquitetura sagrada, que viria a consolidar-se nos anos subsequentes.

37. A foto da Figura 18, datada do início dos anos 1950, registra um momento da construção da igreja e evidencia o envolvimento dos moradores, reunidos em torno do canteiro de obras. À medida que a participação da comunidade local se intensificava, a capela foi ampliada para atender às demandas crescentes. A chegada dos padres da Congregação dos Crúzios, missionários vindos da Holanda, trouxe organização e maior estrutura às iniciativas pastorais.

38. O marco inicial dessa obra ocorreu com o lançamento da pedra fundamental, em 20 de setembro de 1953, em uma cerimônia conduzida pelo Arcebispo de Belém, Dom Mário de Miranda Villas Boas, demonstrando o empenho coletivo da comunidade na edificação do templo. No ano seguinte, em 1954, a Igreja de São Sebastião foi consagrada e elevada à condição de paróquia, assumindo todas as responsabilidades eclesiásticas anteriormente atribuídas à Paróquia Santa Cruz.

39. Em relação a sua distribuição espacial, a Igreja São Sebastião apresenta uma planta de configuração retangular, caracterizada pela presença de átrios laterais, uma nave central e um presbitério [ Figura 19 ]. A ênfase na composição neogótica manifesta-se, de forma expressiva, no emprego predominante de arcos ogivais ao longo de toda a estrutura, com especial destaque para a área que antecede o altar [ Figura 20 ].

40. Ademais, observa-se a confluência dessa linguagem nas aberturas das esquadrias e nos nichos que abrigam as imagens sacras [ Figura 21 ], conferindo unidade ao conjunto e reforçando a atmosfera de verticalidade e transcendência própria da tradição neogótica.

A Capela da Imaculada Conceição, presente no Hospital D. Luiz I da Benemérita Sociedade Portuguesa

41. O Hospital da Sociedade Beneficente Portuguesa foi inaugurado em 29 de abril de 1877, em Belém, com uma arquitetura neoclássica carregada de símbolos que visavam reforçar a imagem positiva e inclusiva da instituição. Era comum que tais sociedades beneficentes escolhessem um membro da monarquia portuguesa como patrono – no caso de Belém, foi D. Luiz I. Essa escolha reforçava os vínculos culturais e políticos com Portugal e suas elites. A devoção religiosa também teve papel central: Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal, foi consagrada como protetora da instituição, sendo homenageada com a construção de uma capela dentro do hospital, hoje chamada Capela Imaculada Conceição. (Figueiredo, 2015) [ Figura 22 e Figura 23 ].

42. Quanto à eleição do neogótico como linguagem arquitetônica, na composição da Capela Imaculada Conceição deve-se a sua escolha à uma livre relação do gótico com a arquitetura sacra tal, como era observado em toda a Europa. A descrição da Capela do Hospital Beneficente Portuguesa revela características arquitetônicas e ornamentais que refletem a influência da cultura e da tradição portuguesa na construção e ornamentação desse espaço religioso, bem como do neogótico na adoção de seus elementos arquitetônicos.

43. Por estar dentro do ambiente hospitalar, o espaço possuí uma disposição retangular exígua, sem a presença de um altar lateral, característica comum em muitas capelas tradicionais [ Figura 24 ]. Sendo o recinto dividido em duas áreas distintas: o presbitério e a nave, onde a primeira compreende o altar-mor, a mesa eucarística e a mesa da palavra. O presbitério da capela é notável por apresentar um retábulo com mesa eucarística em mármore, decorado com detalhes em dourado e colunas geminadas que sustentam a mesa. Esse espaço também abriga um pequeno sacrário. A presença de um retábulo é uma característica comum em capelas e igrejas católicas, servindo como um ponto focal para as cerimônias religiosas.

44. A estrutura do teto da capela é variada, com diferentes alturas em áreas distintas. O coro possui uma abóbada de canhão na cor azul, dividida por molduras na cor salmão, com detalhes em fingido verde entre as molduras. O teto acima da nave e parte do presbitério é plano, mas a cor das molduras varia, com o da nave em fingido verde e o do presbitério em um tom acinzentado. Acima do retábulo, uma junção de dois elementos é observada: uma abóbada de quarto de esfera e uma cúpula de agaloada, com uma representação de uma pomba branca, símbolo do Espírito Santo no catolicismo [ Figura 22 ].

45. As paredes da capela são predominantemente cinza, com a presença de painéis de fingidos, como uma técnica de imitação de mármore, em molduras e essas representações decoram as áreas marcadas por colunas e vigas, apresentando detalhes em dourado com a representação de anjos e folhas de acanto nas intersecções entre colunas e vigas. A capela apresenta um altar central, composto por uma mesa, um sacrário e um elemento que lembra um baldaquino. Acima do altar, um pedestal sustenta a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Há também nichos ogivais na parede anterior, que abrigam imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Santa Ana com a Virgem Maria.

46. A parte visível para o público é revestida de mármore, enquanto a parte anterior é de concreto, sendo utilizada a técnica de fingido na mesma cor do mármore. O espaço é iluminado por cinco vitrais em arco de volta inteira, presentes nas portas e janelas, que apresentam molduras decoradas com fingido de mármore verde [ Figura 25 ]. Os vitrais não estão relacionados a santos específicos, mas exibem motivos florais, contribuindo para a estética do espaço.

47. No altar, são observados nichos ogivais na parede anterior, que sustentam duas imagens: uma do Sagrado Coração de Jesus e outra de Santa Anna com Maria Menina. Além disso, à frente do altar, existem dois pedestais em cada lado, com imagens de anjos. Um deles possui uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré sobre um pedestal de mármore sustentado por uma peanha também de mármore. A capela também conta com outros quatro pedestais com imagens de São Miguel Arcanjo, Santo Antônio com o menino Jesus, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e São José (Castro, 2017).

48. No que diz respeito ao piso da capela, há uma variedade de revestimentos, incluindo granilite, madeira (Ipê e Pau-amarelo) e mármore (verde Ubatuba, marrom, preto e branco). Na extensão da nave, predomina o granilite em tons de bege claro e escuro, com o último sendo utilizado próximo ao presbitério. Na área do presbitério, o piso é de mármore verde Ubatuba, que serve como moldura para o piso de mármore marrom. No piso do altar, há um desenho com losangos brancos e pretos, emoldurados em verde Ubatuba e mármore branco (Castro, 2017).

49. A Capela da Imaculada Conceição, por conseguinte, se constitui como um espaço sagrado de profunda expressividade simbólica, onde o repertório neogótico, reinterpretado em escala e materiais locais, se articula com a devoção religiosa e os vínculos histórico-culturais com a tradição portuguesa, reafirmando sua relevância no conjunto arquitetônico e na identidade da instituição.

Considerações finais

50. A ativa manifestação neogótica em edificações sacras reflete, portanto, um desejo de reconectar a sociedade com uma visão do mundo onde o sagrado e o belo estavam ligados. A comparação entre o gótico e o neogótico revela uma continuidade de propósito: em ambas as linguagens, a arquitetura visa a expressar e conectar o humano com o divino. Por conseguinte, o neogótico, com suas raízes no século XIX, traduz essas aspirações em um contexto histórico em que o romântico e o histórico acabam se cruzando, tornando o passado medieval uma fonte de inspiração para enfrentar os dilemas da modernidade.

51. O período do Ecletismo, caracterizado pela reprodução de edificações que emulam um passado idealizado, representa uma manifestação concreta dessa interseção entre a materialidade e o trabalho intelectual na arquitetura. A inserção do neogótico na região paraense, notadamente catalisada pela difusão do Ecletismo na capital, consolida-o como uma linguagem arquitetônica marcante e na construção de espaços religiosos. Tratando-se de um ato simbólico que resgata tradições, transcende sua funcionalidade pragmática para tornar-se um veículo concreto da fé religiosa, evocando prestígio e reverência.

52. Dessa forma, ao analisar a escolha desta linguagem arquitetônica na arquitetura sacra paraense, podemos considerar não somente sua densidade histórica, como também sua capacidade de agir e comunicar significados que vão além da mera estética. Ao mesmo tempo que comunica valores espirituais, o neogótico confecciona uma experiência transcendental aos devotos, sublinhada nos exemplos supracitados que destacam tanto o neogótico como expressão predominante na construção dessa linguagem arquitetônica, quanto na sua utilização mais restrita, em pequenos detalhes, elementos arquitetônicos ou até mesmo objetos que reproduzem a tipologia gótica em alguma escala.

Referências

ARGAN, Giulio Carlo. O Revival. In: ARGAN, Giulio Carlo. A arte moderna na Europa: de Hogarth a Picasso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 391-416.

ARGAN, Giulio Carlo. Sobre o conceito de tipologia arquitetônica. In: Argan, Giulio Carlo. Projeto e destino. Editora ática. 1ed, 3ª impressão. São Paulo, 2004, p. 60-66.

BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2009.

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. O gótico. In: A formação do homem moderno vista através da arquitetura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 48-54.

CASSIANI, Janaina Bianca. Igreja Matriz Sant’anna de Pedreira (SP): um estudo acerca da arquitetura neogótica no Brasil. Revista Intellectus, Rio de janeiro, v. 1, n. 46, p. 110-124, nov. 2018.

CASTRO, Nathália Sudani de. O espaço sacro na arquitetura assistencial em Belém: estética, ecletismo e sociedade. (Dissertação: Mestrado em Arquitetura e Urbanismo), Universidade Federal do Pará, (orientação: Cybelle Salvador Miranda), Belém, 2017.

DIAS, Pollyanna D’Avila G. O século XIX e o neogótico na arquitetura brasileira: um estudo de caracterização. Revista Ohun, Bahia, ano 4, n. 4, p. 100-115, dez 2008.

FEFERMAN, Milton Vitis. Caos e ordem: origens, desenvolvimentos e sentidos do conceito de tipologia arquitetônica. In: OLIVEIRA, Beatriz Santos de; LASSANCE, Guilherme; PEIXOTO, Gustavo Rocha; BRONSTEIN, Laís (org). Leituras em Teoria da Arquitetura. Rio de Janeiro: Editora Viana & Mosley, 2009, p. 46-56.

FIGUEIREDO, Cibelly. Hospital D. Luiz I da Benemérita Sociedade Benecente Portuguesa do Pará como documento/monumento. (Dissertação: mestrado em arquitetura e urbanismo). Universidade Federal do Pará, (orientação: Cybelle Salvador Miranda), Belém, 2015.

KOCH, Wilfried. Estilos de Arquitectura. Lisboa: Ed. Presença, 1982.

LEÃO, João Victor. O Glorioso: o lugar e a devoção a São Sebastião no Bairro da Sacramenta, Belém-PA. Boletim Campineiro de Geografia, Campinas, v. 14, n. 2, p. 457-477, jul.-dez. 2024.

MAIOLINO, Claudio Forte. A arquitetura religiosa neogótica em Curitiba entre os anos de 1880 e 1930. (Dissertação: Mestrado em Arquitetura), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (Orientação: Cláudio Calovi Pereira), (Biblioteca depositária: Faculdade de Arquitetura), Porto Alegre, 2007.

MATOS, Ana Léa N. José Sidrim: Um capítulo na biografia de Belém. (Tese: Doutorado em Arquitetura e Urbanismo), Universidade Federal do Pará, (Orientação: Maria de Nazaré dos Santos Sarges), Belém, 2017.

MENEGUELLO, Cristina. Da ruína ao edifício: Neogótico, reinterpretação e preservação do passado na Inglaterra Vitoriana. (Tese: Doutorado Em História), Instituição De Ensino: Universidade Estadual De Campinas, Campinas: Biblioteca Depositária: Biblioteca Central – UNICAMP, 2000.

PATETTA, Luciano. Considerações sobre o Ecletismo na Europa. In. FABRIS, Annateresa. Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Studio Nobel: EDUSP, 1987, p. 14-22.

PEREIRA, Maria Cristina Correia Leandro. O revivalismo medieval e a invenção do neogótico: sobre anacronismo e obsessões. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, p. 1-16, jul. 2011.

TOMAN, Rolf. The Art of Gothic: Architecture, Sculpture, Painting. Cologne: Könemann, 1999.

WAISMAN, Marina. O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos. São Paulo: Perspectiva, 2013.



 

[1] Para Quatremère de Quincy, o tipo não se refere à simples imitação de um modelo fixo, tornando-se um elemento que serve como regra para a criação. Enquanto o modelo deve ser repetido tal como é, o tipo permite a concepção de obras diversas entre si, funcionando como princípio orientador e não como forma a ser copiada (apud ARGAN, 2004, p. 66).

[2] José Sidrim foi desenhista e agrimensor, responsável pela construção de alguns dos edifícios de maior destaque na década de 1920 em Belém (Matos, 2017).

[3] O presbitério é a área da igreja destinada ao clero e às funções litúrgicas, situada geralmente na parte frontal do templo, elevada em relação à nave central (Castro, 2017).

[4] Informações disponibilizadas pela Paróquia São Raimundo Nonato e divulgadas no seu site oficial. Disponível em: https://paroquiasaoraimundononato.com.br/sobre-a-paroquia Acesso em: 29 de março de 2024.