Gótico na gravura e ilustração brasileiras

Elena Bueno Ventura*

Como citar: VENTURA, Elena Bueno. Gótico na gravura e ilustração brasileiras. 19&20, Rio de Janeiro, v. XX, 2025. https://doi.org/10.52913/19e20.xx.03

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Introdução

1. A estética gótica original possui início em tradições europeias, surgindo primeiramente na arquitetura do século XII, e expandindo-se como influência para outras manifestações culturais. Já a literatura gótica – no sentido adotado nesse artigo – começou a ser produzida a partir da segunda metade do século XVIII, com obras como O Castelo de Otranto (1764), do romancista inglês Horace Walpole (MENON, 2007, p. 25). Apesar da origem marcada pelo eurocentrismo, o gótico se revelou com o tempo como uma tendência que transcende seus primórdios, encontrando espaços em diferentes lugares, incluindo o Brasil.

2. O objetivo deste artigo é levantar questões acerca do gótico no Brasil, relacionando-o às produções em gravura e ilustração no contexto nacional. Aparentemente, como aponta Menon (2007, p. 55), há uma lacuna a ser preenchida quando consideramos as manifestações do gótico na produção artística brasileira.

3. O propósito aqui não é apresentar uma resposta definitiva ou uma pesquisa completamente desenvolvida e concluída, mas sim estimular questionamentos como: A gravura e a ilustração brasileira se relacionam com a estética gótica? Quais são as figurações do gótico presentes nessas artes? Para formular essas perguntas, os textos referenciais estudados e listados ao final do artigo foram essenciais. Busquei por autores brasileiros e estrangeiros, nas áreas da filosofia, letras, gravura e ilustração.

4. O artigo está estruturado em duas partes: a primeira apresenta alguns dos conceitos estéticos que representam as poéticas do mal (FRANÇA, 2022, p. 30), termo que nada mais é do que aquilo a que os ingleses nomearam de gótico. Como explica Júlio França: “A estas poéticas do mal os alemães chamavam de Schauerroman; os franceses viriam a chamar de roman frénétique; e os ingleses deram-lhe o nome pelo qual viriam a ser mais conhecidas: gótico” (FRANÇA, 2022, p. 30).

5. Já na segunda parte, conhecendo as poéticas do mal discorridas anteriormente, procurei relacionar seus aspectos estéticos à gravura e à ilustração, dando ênfase em produções de artistas brasileiros.  O critério para a seleção das obras, além de refletir uma escolha pessoal, considerou também o contexto poético e a recorrência de temas sombrios no trabalho de cada artista. Trata-se de um conjunto limitado, mas que abre caminhos para pesquisas mais amplas no futuro.

Poéticas do mal

6. Júlio França nos apresenta as poéticas do mal como um modo artístico em que a expressão dos aspectos negativos da experiência humana é predominante e priorizada. Elas são, de diferentes formas e aparências, maneiras de exteriorizar os medos e as ansiedades da experiência moderna. É um meio artístico que nos leva a uma ponte direta com os tabus, as emoções reprimidas e a exposição de uma sociedade decadente (FRANÇA, 2022, p. 30).

7. Também podemos chamar estas poéticas do mal de gótico, como uma maneira de associá-las a uma forma estética, pois se trata das representações de teor sombrio, que, se contrapondo as “belas” artes, incorporam ao fazer artístico as múltiplas manifestações do medo, do sublime e do grotesco. São imagens que nem sempre se preocupam com os efeitos do belo, mas com os efeitos de recepção angustiantes, repulsivos e/ou melancólicos.

8. No Expressionismo brasileiro, por exemplo, é possível identificar gravuras que apresentam características do gótico. Apesar de nenhuma das duas tendências – gótico e expressionismo – possuir uma significação definitiva, há afinidades evidentes entre elas. Historicamente, ambas se posicionaram como formas de resistência ao domínio dos cânones clássicos, como explica Cesar Menon ao abordar o gótico:

9. […] Opondo-se a um padrão de arte neoclássica, essencialmente aristocrática. “… gótico era tudo o que fosse antiquado, bárbaro, feudal e irracional, caótico, não civilizado. O oposto de clássico”, em resumo.” (VASCONCELOS apud MENON, 2007, p. 23)

10. Já Kristian Sotriffer afirma que o expressionismo

11. […] Consiste numa super intensificação da experiência, numa rejeição dos cânones clássicos, numa distorção e exagero beirando o histérico, num destroçar das formas tradicionais e num reordenar os fragmentos para servir de veículo a pensamentos e sensações transformados, e uma nova, mais crítica e enfática visão do mundo. (SOTRIFFER apud VARELA, 1997, p. 7).

12. Além disso, são semelhantes ao gótico as seguintes qualidades do expressionismo demonstradas por Marcos Varela (1997): a valorização de temas sombrios e subjetivos; a distorção da realidade, assim como a criação de um mundo fantástico; e o pessimismo, solidão e angústia associados a uma negação do racionalismo. Também se destacam os contrastes cromáticos, com predominância de tons escuros, e a visão de um ser humano místico, envolto pelo medo e pela decadência social.

13. As poéticas do mal, o gótico, não se limitam a um único estilo artístico. Ao contrário, elas têm sido exploradas como potências criativas em diferentes épocas e mídias, independentemente de correntes artísticas e outros ismos. Por meio delas, os artistas acessam territórios obscuros e dão voz a temáticas voltadas para o eu emocional, refletindo as angústias humanas em relação ao seu tempo. Esse amplo campo de possibilidades oferece um fértil caminho para a criação artística, como exemplificarei a seguir com algumas de suas figurações.

O medo artístico

14. O medo é a emoção mais primitiva do homem, pois, sendo “inerente à natureza humana, o medo está intimamente ligado aos mecanismos de proteção contra o perigo. Sendo uma emoção relacionada aos nossos instintos de sobrevivência, ela é indissociável da consciência de nossa finitude” (FRANÇA, 2022, p. 62). Essa emoção acontece pela expectativa de um futuro de sofrimento, acompanha-a a incerteza e, no seu auge, o desespero e o horror. 

15. Essa relação que o medo tem com a autopreservação está associada à consciência que a espécie humana tem da própria morte, e, por termos noção de nossa vulnerabilidade diante dela, a imaginação transfere esse medo para diferentes fontes:

16. O animal não tem ciência de sua finitude. O homem, ao contrário, sabe – muito cedo – que morrerá. É, pois, o “único no mundo a conhecer o medo num grau tão temível e duradouro”. Além disso, nota R. Caillois, o medo das espécies animais é único, idêntico a si mesmo, imutável: o de ser devorado. “E o medo humano, filho de nossa imaginação, não é um, mas múltiplo, não é fixo, mas perpetuamente cambiante.” (DELEMEAU, 2024).

17. O medo que temos da morte, sendo ele uma projeção futura, assemelha-se ao mesmo que experimentamos na ficção, um espaço em que não corremos perigo de fato. Ao sentirmos um temor dessa espécie, a sensação de deleite é produzida como recepção emocional, e assim surge o medo artístico. Para que esse deleite aconteça, é necessária uma distância entre o espectador e o objeto de contemplação. O medo nesse caso é controlado; então “entramos no campo das emoções estéticas e de prazeres peculiares (catarse, sublimidade, horror artístico etc.)” (FRANÇA, 2011, p. 66).

18. O desconhecido é outra causa constante de medo. Está associada a ele a crença em eventos sobrenaturais pela incapacidade de explicá-los de maneira racional, e um alívio acontece quando conseguimos determinar logicamente a origem do perigo provinda desse desconhecido. “Esse paradoxal alívio ocorre porque tudo aquilo que nos é desconhecido é potencialmente assustador” (FRANÇA, 2022, p. 65).

O sublime

19. Edmund Burke (2016) investiga como somos afetados pelos objetos, sejam eles artísticos ou não, explorando as emoções que eles provocam. Essas reflexões fundamentam sua teoria sobre o sublime, em que o terror é identificado como a emoção central. Burke se dedica a compreender nossa capacidade de encontrar prazer, no contexto da apreciação estética, em ideias que têm origem na dor e no perigo. O sublime, em resumo, é o inexplicável efeito que um objeto ou evento causa sobre nós, preenchendo toda a mente. Ele ultrapassa nossa capacidade de compreensão, paralisando nossos movimentos e nos tornando incapazes de racionalizar sobre o objeto. O sublime aparece na obscuridade e não na compreensão. Burke dá a seguinte explicação para essa poética do mal:

20. O que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor e de perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que compreenda objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror, é fonte do sublime; ou seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que a mente é capaz de sentir. Digo que é a emoção mais forte, porque acredito que as ideias de dor são muito mais poderosas do que as que são introduzidas pelo prazer. (BURKE. 2016, p. 52)

21. A definição burkiana leva a diferentes causas que proporcionam o sublime, e elas podem ser utilizadas na interpretação de trabalhos artísticos pela observação dos efeitos destes sobre o terror: (I) a obscuridade parece ser necessária para algo tornar-se terrível, pois ficar incapaz de identificar o que há no ambiente é um gatilho para o medo. A escuridão é incerta, confusa, solitária, terrível e extremamente sublime (BURKE. 2016, p. 67). Em contrapartida, (II) a luz em excesso, quando gigantesca ou veloz, também é geradora do sublime. Outra causa do sublime é (III) a vastidão, na grandeza que as dimensões e a quantidade podem possuir, como aponta Burke (2016, p. 79): “a dimensão mais extremada do grande é sublime.” Nesse mesmo sentido das grandezas, (IV) o infinito nos causa um horror deleitoso, pois quando os olhos não são capazes de definir os limites de algo, aquilo que fica além da compreensão é preenchido pela mente, e visualmente acreditamos que é de fato infinito: “Os olhos, não sendo capazes de perceber limites de muitas coisas, elas parecem ser infinitas e produzem os mesmos efeitos que produziriam se fossem realmente infinitas” (BURKE. 2016, p. 80).

22. Um exemplo marcante dessas características pode ser observado nas ilustrações de Henrique Alvim Corrêa (1876-1910) para o livro Guerra dos mundos, de H. G. Wells, executadas em 1903. O artista brasileiro cria ambientes fantasmáticos, urdidos por um desenho ofuscante e penumbroso. Segundo a pesquisadora Maria Stella Teixeira de Barros (1996), esses desenhos, habitados por fantásticos seres extraterrestres, assemelham-se ao imaginário simbolista. É importante notar que Correâ faz uso habilidoso do sublime e seus atributos [ Figura 1 ].

O grotesco

23. O termo grotesco surge a partir da palavra grotta (gruta), quando, na segunda metade do século XV, são descobertas vilas e tumbas no decurso de escavações de palácios da Itália, e nelas estavam decorações provenientes do período da antiguidade clássica. Tais decorações retratam monstros e animais, flores e plantas delicadas enroscadas em pilastras, além de corpos humanos com partes bestiais. Essas ornamentações usualmente assimétricas eram consideradas uma arte que distorcia elementos do mundo real e investia no fantasioso (CABRAL, 2022, p. 86). Adotado pelos artistas do chamado Renascimento, esse estilo artístico contrariou os conceitos clássicos de rigidez simétrica, os ideais de belo e as proporções harmônicas [ Figura 2 ]:

24. Na palavra grottesco, como designação de uma determinada arte ornamental, estimulada pela Antiguidade, havia para a Renascença não apenas algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas concomitantemente, algo angustiante e sinistro em face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam suspensas. (KAYSER. 2009, p. 20).

25. O grotesco está estreitamente ligado ao corpo e às suas deformações, nas distorções da realidade e no abandono de uma idealização do belo. Há nele a forte presença de monstros, que, como demonstra Luciano Cabral (2022, p. 96), estão associados a práticas transgressoras, são ameaçadores e perturbadores, e carregam em si algum tipo de anormalidade. São personificações para o outro, o desconhecido e diferente de nós, uma metáfora para nossos medos, fantasias, desejos e angústias. 

Gótico na gravura e ilustração no Brasil

26. Como crítica, a apresentação de Manuel Bandeira para 10 gravuras em madeira, primeiro álbum de gravuras do artista [Oswaldo Goeldi], publicado em 1930, impressiona pela simplicidade com que o poeta localiza aquele algo misterioso que emana das paisagens gravadas, das massas negras e dos fachos de luz. Bandeira cunha a expressão, espécie de oxímoro, pela tensão semântica entre os dois termos ­ ‘panteísmo grotesco’. Um segundo texto, é o poema de Carlos Drummond de Andrade. Em uma síntese de elementos também díspares, Drummond encontra nos personagens do artista “criaturas condenadas ao mundo”; mundo prosaico no qual a morte, senhora de guarda-chuva, reina grotesca. (RUFINONI, 2006, p. 17-18).

27. É assim que Priscila Rufinoni inicia um dos capítulos de seu livro sobre o gravador Oswaldo Goeldi (1895-1961). Desde já, pelas descrições apresentadas, podemos perceber a presença das poéticas do mal nas obras do artista. Goeldi – considerado por muitos o precursor da gravura moderna brasileira e um expressionista à margem do modernismo (RUFINONI, 2006, p. 9 e 21) -, abordou em suas xilogravuras temas sombrios que revelam um desencantamento diante do mundo. O poema A Goeldi, de Carlos Drummond de Andrade, apresenta uma apresentação noctâmbula ao trabalho do xilogravurista, e expõe em palavras aquilo que Goeldi gravava:

28. És metade sombra ou todo sombra?

29.Tuas relações com a luz como se tecem?

30. Amarias talvez, preto no preto,

31. fixar um novo sol, noturno; e denuncias

32. as diferentes espécies de treva

33. em que os objetos se elaboram:

34. a treva do entardecer e a da manhã;

35. a erosão do tempo no silêncio;

36. a irrealidade do real. (ANDRADE, 2013, p.33)

37. Em 167 de uma só vez! [ Figura 3 ], xilogravura da série Balada da Morte, Goeldi utiliza o humor negro ao retratar a morte, que observa de longe o número exato de vítimas de um naufrágio. A ironia é fortalecida ao notarmos que essa caveira, cúmplice e talvez a causa da tragédia, usa uma boia de salva-vidas como suporte. Não é essa a única figura cadavérica na obra de Goeldi: “a partir do final da década de [19]30 e início de [19]40 […], pelo clima sombrio que evocavam, estava incluso o esqueleto, mas como um entre outros monstros” (RUFINONI, 2006, p. 148).

38. O gravador também ilustrou livros durante a sua carreira, sendo marcantes aquelas ilustrações que realizou para a obra do autor russo Fiódor Dostoiévski [ Figura 4 ]. O seu trabalho como ilustrador não é ameaçado pelo texto, mas responde a ele, interpretado à sua própria poética. Sobre isso, diz Priscila Rufinoni (2006, p. 246):

39. A obra dostoievskiana, polifônica, reunindo em uma mesma forma gêneros e vozes ora sublimes, ora grotescos, não é estranha ao artista. Como atenta Boris Schnaiderman, Goeldi faz uma interpretação intersemiótica da obra do romancista russo porque consegue perceber detalhes que só seriam analisados na obra de Dostoiévski posteriormente.

40. Também ilustra as obras do escritor russo o gravador austríaco Axl Leskoschek (1889-1976), executando as gravuras no Brasil durante seu refúgio do nazismo, de 1940 a 1948. É nesse período que sua obra chega ao auge. Porém, em comparação a Goeldi, Leskoschek “não traduziu a obra de Dostoiévski em termos visuais: recriou-a” (TEIXEIRA LEITE, 1965, p. 32). Nas ilustrações para Os Irmãos Karamázov, há aquela em que Leskoschek retrata um anjo e um demônio – a dupla bem e mal -, pequenos monstrinhos da pureza e do pecado, observando o personagem Ivan [ Figura 5 ]. 

41. Essa dualidade, o duplo, recorrente em narrativas góticas como A mortalha de Alzira, de Aluísio de Azevedo, e A causa secreta, de Machado de Assis – para citar obras nacionais (MENON, 2007, p. 161) -, cristaliza o antagonismo que pode existir em nosso interior. Ao traçar essas duas figuras contrastantes, mas ao mesmo tempo semelhantes por reiterar uma repetição, a gravura revela a complexidade psicológica de Ivan.

42. Em A gravura brasileira contemporânea (1965), José Roberto Teixeira Leite, ao apresentar a obra de Marcelo Grassmann (1925-2013), utiliza o termo “gótico fantástico”. Sobre os temas abordados pelo artista, destaca-se a presença de “monstros e animais compósitos, íncubos e súcubos, cavaleiros medievais, seres de pesadelo” (TEIXEIRA LEITE, 1965, p. 29-31). Teixeira Leite não é o único a notar essas características sombrias, que podemos associar às poéticas do mal, nas obras de Grassmann. Dalila Pinto, ao explorar o fantástico no trabalho do artista em sua dissertação, também aponta para aspectos similares:

43. Mas esse fantástico é somente um dos caminhos pelos quais o artista nos introduz no mundo da sua obra, assim como o grotesco, os temas míticos, a visão trágica, o sombrio e o cruel em seus efeitos de jogos de luz e sombra. (PINTO, 2007, p. 23)

44. Nessa mesma dissertação, é apresentada a gravura A Morte e a Donzela [ Figura 6 ]. Nela, é retratada a figura esquelética da morte oferecendo flores à sua futura companheira, simbolizando uma união entre ela e a vida. Essas figuras são apresentadas como complementares e não opostas; porém, são figurações do belo e do horrível, que, quando aproximadas, reforçam seus traços e evidenciam os polos de tensão da imagem.

45. A Morte e a Donzela, de Grassmann, assim como 167 de uma só vez!, de Goeldi, parece aproveitar do medo que possuímos do caráter horrível da morte, e corporifica sua figura em um ser que descobre um prazer fúnebre em testemunhá-la. Mário Praz fornece uma explicação para casos como esse na arte: 

46. A descoberta do horror como fonte de deleite e de beleza terminou por agir sobre o conceito de beleza: o horrível, na categoria do belo, terminou por se tornar um dos elementos próprios do belo: do belamente horrível se passou, em graus insensíveis, ao horrivelmente belo. (PRAZ, 1996, p. 45).

47. A presença de temas e composições visuais que correspondem à estética gótica parece pertinente à ilustração de textos literários quando os próprios também são detentores dessas características. A literatura, dessa forma, poderia convidar a um tipo de ilustração que evoca o gênero. João Fahrion (1898 – 1970), ao ilustrar Noite na Taverna e Macário de Álvares de Azevedo, incorporou nas imagens os traços lúgubres da obra do autor ultrarromântico [ Figura 7 ].

48. Feitas com a técnica de scratchboard, as ilustrações de Fahrion fazem parte da edição de comemoração do centenário da morte de Azevedo. Elas são, como aponta Paula Ramos, “o grande diferencial da edição […], mergulhadas no ambiente soturno das histórias e abrangendo o viés expressionista do artista” (2007, p. 259).

49. Nas lendas e histórias populares do folclore brasileiro, também encontramos manifestações de um imaginário sombrio. Elas utilizam o medo como ferramenta narrativa para instruir a população – especialmente as crianças – sobre os perigos que cercam as cidades. Nessas histórias, habitam monstros e criaturas como a famosas Mula-sem-cabeça, o Boto-cor-de-rosa e a Cuca:

50. Mitos, contos, lendas, fábulas e outras formas do gênero popular consagraram-se entre leitores de todas as idades, pelas condições e características textuais: temas abrangentes, enredos de estrutura cronológica sequencial, personagens com caráter bem definido, conflito demarcado, final com resolução do problema. Acrescenta-se à fábula uma região textual que arremata o enredo com um ensinamento, ou simplesmente moral. Com esses traços, os textos de origem popular são facilmente memorizados, fator essencial para a transmissão de uma geração a outra. (DE SOUZA, DE LIMA, DA SILVA, 2022).

51. Em 1953, Nelson Boeira Faedrich ilustrou, utilizando as técnicas de scratchboard, guache e nanquim, as fantásticas Lendas do Sul de Simões Lopes Neto [ Figura 8 ]. As imagens de Faedrich não apenas ilustram as narrativas, mas, como explica Paula Ramos, também colaboram com elas, ao inserir elementos que não estavam presentes no texto original. A historiadora também afirma: “Sem exageros, pode-se dizer que a importância de Faedrich para Lopes Neto está como a de Gustave Doré para Dante Alighieri, Cervantes e John Milton.” (RAMOS, 2007, p. 354).

52. As Lendas do Sul apresentam narrativas míticas marcadas pela presença de seres atormentadores e misteriosos, como a jovem e a velha-noite, a cobra Boiguaçu, o diabo Anhangá-pitâ e a Teiniaguá. É possível especular que Nelson Boeira Faedrich tenha criado personagens e ambientes não apenas ameaçadores, mas também sublimes. Ele faz uso de horizontes infinitos e desalumiados, onde as luzes parecem emanar das próprias criaturas, conferindo um caráter ao mesmo tempo fascinante e aterrorizante às suas ilustrações.

Considerações finais

53. Com esse breve estudo, podemos demonstrar que, no Brasil, a gravura e a ilustração se relacionam com a estética gótica, ainda que de forma não proposital e sistemática, mas de maneira independente. Cada artista pesquisado, à sua maneira, explora as poéticas do mal na criação artística. O que nos leva à necessidade de análises mais íntimas do conjunto de suas obras para então desenvolver uma investigação mais genealógica e panorâmica.

54. Além da curta lista apresentada, a busca pelo gótico na gravura e na ilustração pode se estender a uma vasta gama de artistas que exploraram temáticas sombrias, horríveis ou fantásticas em suas obras. Entre esses nomes, estão Alvim Corrêa, Di Cavalcanti, Francisco Stockinger, Gilvan Samico, José Costa Leite, Maciej Babinski, Marcelo Alves Soares, Márcio Pannunzio, Newton Cavalcanti, Octavio Araújo, Darel Valença, Regina Silveira e Trindade Leal, entre muitos outros.

55. O leque de possibilidades oferecido por essa investigação é amplo, abrangendo produções que transitam entre o grotesco, o sublime, o fantástico e o assombroso, demonstrando a diversidade e a profundidade com que o gótico pode se manifestar.

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* Artista e pesquisadora, Elena Bueno Ventura é graduanda em Artes Visuais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Suas investigações giram em torno das manifestações do gótico nas artes visuais no Brasil, em especial na gravura e ilustração. Em seu trabalho artístico, ela dedica-se à produção de gravuras e monotipias que exploram as poéticas do mal, inspiradas na literatura gótica brasileira. Seu trabalho busca difundir e interpretar a tradição do medo no Brasil. Contato: elenabventura2017@gmail.com Instagram: elena_bventura https://www.instagram.com/elena_bventura/