Dinâmicas de identificação: artistas-colecionadores em redes

Gwendoline Corthier-Hardoin*

Como citar: CORTHIER-HARDOIN, Gwendoline. Dinâmicas de identificação: artistas-colecionadores em redes. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVIII, 2023. https://doi.org/10.52913/19e20.xviii.06

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1. Um artista não constrói a sua identidade artística sozinho. Sua formação, suas exposições e seus encontros constituem um determinado capital cultural que lhe permite criar suas obras. É também necessário ter em conta um aspecto pouco conhecido do artista: o de colecionador. Este artigo não se debruçará especificamente sobre as obras colecionadas, nem mesmo sobre a cultura visual que a elas pode ser associada, mas examinará a forma como, ao adquirirem obras dos seus colegas, os artistas desenvolvem redes através das quais se identificam uns com os outros. Estas redes permitem compreender a história da arte como um vasto campo de relações interligadas e interdependentes. Gostaríamos de mostrar como as ferramentas digitais não só permitem traçar estas relações, mas sobretudo como as diferentes formas de visualizar graficamente as redes entre artistas-colecionadores e artistas-colecionados contribuem para a compreensão das dinâmicas de identificação.

2. “Uma rede social (metáfora de um sistema de interdependências) é definida metodologicamente […] como um conjunto de relações específicas […] entre um conjunto finito de atores.[1]” Logo, a nossa análise incide sobre as redes desenvolvidas pelos artistas através das obras das suas coleções. Começaremos por centrar a nossa investigação em um panorama dos artistas mais colecionados (com base nas fontes disponíveis em França), desde a década de 1870 até à atualidade, a fim de identificar figuras centrais, recorrências e comunidades. Em segundo lugar, a nossa análise centra-se na coleção de um artista específico, Vassily Kandinsky, que é relevante não só devido a sua amplitude qualitativa e quantitativa, mas também devido à informação disponível sobre ela, apesar do seu carácter relativamente desconhecido. Através desta coleção, o objetivo é questionar a própria noção de rede, na qual as ligações nem sempre têm o mesmo significado. Estas redes são abordadas através das humanidades digitais e, mais especificamente, com a ajuda de um software de visualização.

A escolha da análise de rede

3. Os estudos realizados sobre os artistas-colecionadores são essencialmente monográficos. Permitem compreender as motivações de colecionismo de um artista em relação à sua carreira – suas experiências artísticas, as exposições em que participou, suas amizades com colegas – e também as datas de aquisição das obras da sua coleção. Estas monografias, ao explicitarem as relações mantidas com determinados atores do mundo da arte, tendem também a recontextualizar o ambiente em que um artista constrói a sua coleção.[2] Em complemento a estas análises, o estudo em série das coleções reunidas pelos artistas permite integrá-las numa dinâmica de identificação com os outros, adoptando uma escala mais ampla. Este método potencialmente permite visualizar conexões anteriormente não percebidas e obter uma visão global das coleções que seria difícil de obter sem ferramentas digitais. As redes podem ser analisadas manualmente, mas a utilização de um software torna-se urgentemente necessária quando o investigador se depara com uma grande base de dados e pretende medir várias relações interdependentes,[3] dois problemas inerentes ao tema dos artistas-colecionadores.

4. Nossa base de dados centra-se em fontes disponíveis na França: catálogos de vendas e de exposições, correspondência de artistas, entrevistas, inventários após a morte, doações e legados a instituições museológicas, bem como o conteúdo de outras bases de dados como Artl@s, Joconde e Videomuseum. A partir destas fontes, identificámos mais de 15.000 peças (de cerca de 4.300 artistas) colecionadas por cerca de 200 indivíduos ativos em França entre a década de 1870 e a atualidade.[4] A nossa investigação adopta um horizonte temporal alargado, com o objetivo de evidenciar as interconexões entre indivíduos em um ecossistema artístico regido por laços de filiação afetivos, plásticos e/ou simbólicos. Para evidenciar as relações entre artistas-colecionadores e artistas-colecionados, utilizamos Gephi, um software de visualização e exploração de redes de código aberto, com o objetivo de visualizar o conjunto de nós, bem como para efetuar análises métricas como a deteção de comunidades.

5. Estamos conscientes dos problemas colocados por este método de visualização. Johanna Drucker, em Graphesis, alertou para a força gráfica da visualização da informação, que pode por vezes ocultar o processo de construção dos dados.[5] A visualização pode aparentar ser realista e passiva, quando, de fato, é uma expressão qualitativa e ativa da informação estatística. Miriam Kienle argumentou que a análise quantitativa da arte e de suas redes pode alargar as abordagens qualitativas que tradicionalmente definiram o campo, desde que compreendamos como os dados são estruturados, examinados e visualizados.[6] Além disso, Stéphanie Porras chamou a atenção para as visualizações como artefatos da nossa própria cultura visual, que têm de ser interrogados tendo em devida consideração os seus preconceitos e limitações.[7] No entanto, como parte de uma abordagem heurística, consideramos útil examinar os resultados de um tal tipo de investigação.

Destacando atores centrais e comunidades distintas

6. A partir da década de 1870, o campo da arte torna-se cada vez mais autônomo,[8] a figura do marchand – e o mercado da arte em geral – floresce,[9] e o sistema acadêmico perde algo da sua autoridade.[10] Neste contexto, vários artistas entraram no campo e tornaram-se referências para os seus colegas. No nosso inventário de cerca de 15.000 obras (que exclui quase 3.000 peças anônimas), alguns artistas são os mais colecionados, nomeadamente: Eugène Delacroix, Fernand Léger, Jean-Baptiste Camille Corot, Antoine-Louis Barye, Jean-Auguste-Dominique Ingres, Édouard Manet, Antoine Watteau, Paul Gauguin, Théodore Géricault e François-Joseph Heim [Tabela 1]. Esta lista, no entanto, entra em conflito com o significado que lhe pode ser atribuído. As 483 obras de Delacroix foram colecionadas por 19 artistas, enquanto 382 das 389 peças de Léger foram colecionadas por uma única pessoa, o seu assistente Georges Bauquier. Com o objetivo de investigar as dinâmicas de identificação suscitadas pelas coleções constituídas pelos artistas, interessa-nos, portanto, saber o número de artistas que colecionavam um dos seus colegas. Assim, modificámos os parâmetros da enquete para saber quantos artistas possuíam obras de um determinado artista [Tabela 2].

7. Com base nos trinta artistas-colecionados pelo maior número dos seus colegas, foi criada uma rede para destacar suas identidades e a forma como os artistas-colecionadores e os artistas-colecionados estavam ligados entre si. Um primeiro grafo mostra os artistas-colecionados em azul (estes também podem ser colecionadores, como Edgar Degas, Auguste Renoir e Gauguin), enquanto os artistas-colecionadores estão a rosa [Figura 1]. As ligações entre eles são feitas no sentido horário, para indicar que um indivíduo coleciona as obras de outro. O tamanho dos nós varia aqui de acordo com o grau ponderado,[11] e os nós estão mais ou menos próximos uns dos outros em função do número de obras colecionadas.

8. Este grafo apresenta alguns resultados que seriam difíceis de identificar sem a utilização de um software de visualização e de cálculo. Em primeiro lugar, ele indica a posição na rede ocupada por certos indivíduos. Por exemplo, embora Renoir seja o artista mais colecionado, ele não ocupa o centro da rede, sendo ali destronado por Corot ou Delacroix. Embora vinte e um artistas colecionem Renoir contra apenas dezenove que colecionam Corot e Delacroix, os colecionadores desses últimos são muito mais heterogêneos nas suas aquisições. Em outras palavras, Corot e Delacroix estão no centro da rede porque os seus colecionadores pertencem a redes diversificadas, ao contrário dos colecionadores de Renoir, que fazem parte de seu círculo íntimo. Em segundo lugar, a rede traz à luz indivíduos relativamente desconhecidos como colecionadores, mas que são, no entanto, proeminentes. Maurice Denis, por exemplo, é uma figura importante, no cruzamento de artistas como Honoré Daumier, Delacroix, Paul Cézanne, Gauguin e Vincent van Gogh. Por fim, se alguns dos artistas da coleção são catalisadores, outros, como Hans Arp e Zao Wou-Ki, revelam redes estreitas e mais individuais.

9. Com base nesta visualização inicial, interrogámos o software para revelar modularidades [Figura 2].[12] Nesse segundo grafo, foram atribuídas novas cores dentro da mesma rede para detectar comunidades. O grafo mostra muito claramente que um artista coleciona e é colecionado pelo seu círculo artístico mais próximo. Por exemplo, a comunidade impressionista é destacada em verde claro, a comunidade dos Nabis em rosa, e a comunidade abstracionista de meados do século XX em azul. Essa divisão revela algumas distinções bastante sutis, como o grupo de Batignolles (Manet, Degas), que inclui vários impressionistas como Berthe Morisot e Armand Guillaumin.

10. A visualização também mostra certos artistas fora das redes a que eles estão habitualmente associados, em virtude das suas aquisições. Rodin, por exemplo, não é aqui associado aos impressionistas mas a uma rede de escultores como ele, como Antoine Bourdelle e Aristide Maillol, bem como a colecionadores mais acadêmicos como Léon Bonnat. Isso se dá, provavelmente, porque Jacques Zoubaloff, colecionador de muitas obras de Antoine-Louis Barye e Delacroix, adquiriu também numerosas peças de Rodin. Eugène Blot, fundador do Institut de Peinture Décorative Blot, em Reims, fazia parte da comunidade impressionista, embora dela não fosse um membro, mas sim um colecionador particular. Neste sentido, a visualização levanta novas questões sobre as redes que rodeiam determinados movimentos. Um artista como Édouard Vuillard, por exemplo, filiado à comunidade dos Nabis pelo software, foi colocado próximo dos impressionistas, uma vez que vários deles colecionaram a sua obra e, inversamente, ele próprio adquiriu peças impressionistas e Nabi.

11. No entanto, algumas lacunas aparecem, nomeadamente no que diz respeito ao século XX. A comunidade representada em púrpura inclui um leque heterogêneo de artistas – de Henri Matisse a Olivier Mosset, passando por André Breton. A nossa hipótese de interpretação é dupla. Em primeiro lugar, muitos artistas estavam ativos ao mesmo tempo: embora nem todos pertencessem aos mesmos grupos ou correntes, houve muitos cruzamentos. Em segundo lugar, são poucos os artistas contemporâneos que se encontram entre os mais colecionados. Apenas dois fazem parte da lista: Wou-Ki e Ben. Por outro lado, vários artistas contemporâneos colecionam obras de artistas de gerações anteriores, como Eugénie Dubreuil, que colecionava Morisot; Bernar Venet, que tinha uma obra de Matisse; e Pierre Tilman, que possuía uma peça de Pablo Picasso. O software considerou que estes artistas contemporâneos estavam incluídos na mesma comunidade que os artistas do final do século XIX e início do século XX. Por conseguinte, é necessário não só ter cuidado com os resultados, que podem ser mal interpretados, mas também ter uma compreensão qualitativa dos dados.

12. Com base nestas visualizações, várias observações podem ser feitas. A primeira diz respeito aos arquivos disponíveis. É provável que os artistas contemporâneos tenham sido muito colecionados pelos seus colegas, mas as fontes são difíceis de obter, ao contrário do que acontece com o século XIX e a primeira metade do século XX.[13] Por outro lado, as fontes que permitem inventariar as obras colecionadas são precisamente aquelas que tiveram visibilidade (exposição, venda, doação, legado). Este é um dos desafios colocados pela história digital da arte, uma vez que, como salientou Harald Klinke,[14] que a maior parte da informação de que dispomos provém de coleções de museus e que esta pode ser insuficiente. Logo, é provável que muitas outras obras colecionadas por artistas tenham permanecido na sombra. No entanto, apesar da falta de fontes exaustivas, nossas visualizações são representativas das obras colecionadas que gozaram de posteridade. Como nos lembra Kienle, devemos ter sempre em mente que os dados nunca são um fenômeno neutro ou natural.[15]

13. O segundo ponto diz respeito ao leque de questões que estas visualizações abrem. Como repensar o papel de certas figuras individuais que, no entanto, estão inseridas em múltiplas redes, como Van Gogh ou Odilon Redon? Como interpretar as novas comunidades artísticas tornadas visíveis pelas coleções de artistas? Como refletir sobre a relação entre os artistas contemporâneos e a arte moderna a partir das obras que os rodeiam? Estes são apenas alguns dos caminhos possíveis para a investigação em história da arte.

Uma comunidade ou ligações? A ambiguidade da rede

14. Através das redes que reúnem artistas-colecionadores e artistas-colecionados, surgem ligações entre indivíduos, mas isso não nos diz nada sobre a natureza dessas relações.[16] Pode a ligação entre um artista e outro nos dizer se são amigos ou admiradores? Pode ela revelar um contexto de aquisição – presente, troca ou compra? Para evidenciar a ambiguidade das redes formadas pelos artistas-colecionadores, voltámos a nossa atenção para a coleção de Wassily Wassilyevich Kandinsky. A sua coleção pessoal faz parte do legado feito pela sua mulher, Nina Kandinsky, ao Musée National d’Art Moderne (MNAM) de Paris, em 1981. A influência considerável do artista na construção da história da arte, a dimensão da sua coleção (quase 500 obras de cerca de 130 artistas),[17] a sua qualidade e representatividade da abstração fazem dela um caso de estudo singular. As obras que coleccionou foram catalogadas e publicadas em uma obra de referência: Kandinsky. Œuvres de Vassily Kandinsky (1866-1944),[18] bem como em um livro dedicado especificamente à sua coleção de arte dita popular.[19]

15. O principal objetivo da nossa análise é visualizar as ligações desenvolvidas por Kandinsky através das obras que ele possuía. Para isso, atribuímos manualmente uma palavra-chave a cada artista da sua coleção. Esta primeira etapa não pode ser concluída sem um confronto com a historiografia. O vaivém entre o quantitativo e o qualitativo permite-nos realizar uma pesquisa mais precisa sobre a relação entre o artista e as obras da sua coleção, ao mesmo tempo que torna mais complexo o próprio processo de classificação. Para escolher estas atribuições, baseámo-nos, por um lado, nas palavras-chave determinadas pelo MNAM e, por outro, no contexto relacional e artístico da obra colecionada. Foram estabelecidas vinte palavras-chave: “7 arts” | “Abstraction-Création” | “art populaire” | “Association internationale des cubistes, futuristes, expressionnistes et constructivistes” | “Atelier 17” | “Bauhaus” | “collectionneur” | “composition scénique” | “dadaïsme” | “der Sturm” | “Édition G. L. Kouzmine” | “enfant d’ami” | “expressionnisme “| “inconnu” | “influence” | “La Ligne” | “maître symbolique” | “Paris” | “Russie” | “Société Anonyme” . Os artistas com ligados a cada palavra-chave foram em seguida agrupados. Esta classificação comporta em si, obviamente, um certo limite, uma vez que depende da interpretação do investigador.

16. No entanto, quando os dados são visualizados [Figura 3], a palavra-chave a que pertencem aparece em um primeiro nível, seguida dos nomes dos artistas-colecionados em um segundo nível. Estes agrupamentos distinguem-se por uma única cor, ligada a Kandinsky em função do número de artistas-colecionados. Por exemplo, a Bauhaus está fortemente ligada a Kandinsky, com 90 artistas, enquanto a ligação com a Société Anonyme é mínima, com apenas 2 artistas. Esta primeira etapa permite facilmente visualizar as redes com as quais Kandinsky estava em contactto, mas sobretudo levanta questões sobre a sua motivação para colecionar e sobre a dinâmica da circulação das obras que o rodeavam. A ligação mais importante entre Kandinsky e a sua coleção é a Bauhaus. O artista começou a lecionar na Bauhaus de Weimar em 1922. Nesta escola de arquitetura e artes aplicadas, foi responsável pelo ateliê de pintura mural e estabeleceu relações com os seus colegas professores e alunos. Os primeiros anos da Bauhaus caracterizam-se “por uma atividade exuberante e uma colaboração frutuosa entre os vários ateliers, mestres e alunos.”[20] Este fato se reflete na visualização da rede de Kandinsky, que inclui muitas obras dos seus colegas, como Lyonel Feininger, Fred Forbát e Josef Albers.

17. As muitas obras de estudantes que Kandinsky possuía também sugerem que deve ter havido uma intensa circulação dentro da escola. Kandinsky possuía obras de Hannes Beckmann, Werner Drewes, Paul Häberer e Otto Hofmann, bem como numerosos exercícios de Albert Buske, Ida Grabe, Lothar Lang, Gertrud Preiswerk, Rudi Sander, Arieh Sharon, Walter Tralau e Herbert Wegehaupt. Embora as relações de Kandinsky com alguns dos seus colegas – Paul Klee, August Macke, Albers[21] – estejam bem documentadas, esta visualização pode ajudar-nos a questionar o lugar historiográfico de certos artistas menos conhecidos que despertaram o interesse de Kandinsky. Ela também sugere a dinâmica de doações ou trocas de obras no seio da Bauhaus, que pode ser objeto de investigação futura.

18. A Bauhaus foi o ponto de partida para muitas das relações de Kandinsky com os artistas da sua coleção. Entre estes contam-se Willi Baumeister, que conheceu o pintor na inauguração de uma exposição na escola em 1923; Hans Reichel, que o visitou em 1934; Otto Nebel, que o conheceu durante a sua estadia em Weimar; e Rolf Cavael, que visitou a Bauhaus em Dessau em 1930. Foi também através da escola que Kandinsky pode adquirir várias litografias de artistas. A Bauhaus dedicou cinco volumes à nova gravura europeia. O quarto foi publicado em 1924 e centrava-se nos artistas italianos e russos. Continha gravuras de Alexandre Archipenko, Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Enrico Prampolini, Gino Severini, Giorgio De Chirico e Marc Chagall, que Kandinsky guardou consigo. Guardou também um portfólio de mestres da Bauhaus, com litografias de Gerhard Marcks, László Moholy-Nagy, Georg Muche, Oskar Schlemmer e Lothar Schreyer.

19. Complementarmente, muitas das obras da coleção de Kandinsky foram também utilizadas como material didático. Trata-se sobretudo de obras feitas por crianças, que ele utilizou nas suas aulas na Bauhaus de Berlim, em 1932-1933. A partir do início da década de 1910, o artista já mostrava interesse por este tipo de produção. No seu Almanaque, publicado em 1912 em colaboração com Franz Marc – outra figura de proa do grupo vanguardista Der Blaue Reiter – Kandinsky incluiu obras de crianças. A publicação também trazia várias referências à arte dita popular, que constituía uma parte significativa da coleção de Kandinsky. Ele possuía uma vasta gama de obras, incluindo loubki (gravuras populares) e ícones russos, bem como obras da Baviera, do Japão e da China. Algumas delas podem ser vistas no seu apartamento de Munique, em 1913, cujas paredes estão decoradas com pinturas sobre vidro da Baviera, bem como com uma série de objetos populares russos.[22] Algumas obras apareceram no Almanaque do Blaue Reiter, como La Basse-cour do Douanier Rousseau (1896-1898, MNAM). Kandinsky rodeou-se de obras deste “mestre simbólico,” bem como de obras de colegas com quem partilhava as paredes da galeria Der Sturm em Berlim, como Hans Arp, Sonia Delaunay, Natalia Goncharova, Klee, Mikhail Larionov, Kasimir Malevich, Macke, Rudolf Bauer, Gabriele Münter, Pierre Paul Girieud e Alexej von Jawlensky. É provável que estas exposições conjuntas tenham conduzido à circulação de obras. Sabemos, por exemplo, que antes de 1914, Kandinsky recebeu, como presente, a Natureza morta com lagosta de Gontcharova (1909-1910, MNAM). Com efeito, em junho de 1913, ele escreveu ao artista e crítico alemão Herwarth Walden: “Gontscharowa solicita que lhe sejam devolvidos os seus quadros e desenhos do Blaue Reiter, atualmente em Budapeste, pois deseja organizar uma exposição em Moscou […] Quer também a Natureza Morta com Lagosta que me ofereceu […]”.[23] Essa obra foi exibida na primeira exposição do Blaue Reiter em Berlim.

20. Logo, a coleção em questão apresenta o conjunto de relações que Kandinsky estabeleceu ao longo da sua carreira. Estas incluem as suas ligações com a Société Anonyme e os artistas que conheceu em Paris. A rede de Kandinsky também revela o seu papel central no movimento da arte abstrata durante a primeira metade do século XX. O artista adquiriu, por exemplo, peças de Richard Mortensen, admirador da sua obra e fundador da revista Linien. Em 1937, Mortensen organizou a primeira exposição de arte moderna na Dinamarca, que incluía obras de Kandinsky. Datam deste ano duas obras gráficas que Kandinsky adquiriu, bem como três desenhos de 1938 e dois de 1939. Kandinsky também esteve em contato com muitos dos seus colegas do coletivo Abstraction-Création e possuía gravuras de artistas publicados na revista do grupo, incluindo Jean Hélion, Antoine Pevsner, Georges Vantongerloo e František Kupka.

21. A coleção de Kandinsky testemunha, assim, as múltiplas redes da arte abstrata que se desenvolveram durante a primeira metade do século XX. A visualização resultante reitera o “Artist Network Diagram” produzido pelo Museum of Modern Art de Nova Iorque para a exposição “Inventing Abstraction.”[24] A análise da rede do museu mostra que a abstração foi o produto de um processo coletivo, de um pensamento em rede, e não o produto de alguns gênios solitários. No entanto, as ligações entre Kandinsky e os artistas devem ser qualificadas à luz das múltiplas interpretações que podem ser atribuídas a uma relação. A ligação entre ele e Albers não é a mesma que entre ele e Werner Drewes, ambos ligados à Bauhaus. Por conseguinte, os dados devem ser comparados com fontes qualitativas. Além disso, se a visualização permite abarcar imediatamente um vasto campo de relações, ela não é suficiente quando se trata de compreender estas últimas cronologicamente. Não obstante, a visualização é uma ferramenta útil se quisermos passar de uma análise macrossocial para um estudo microssocial, a fim de apreender a complexidade das relações.

22. A determinação das redes com base nas obras recolhidas pelos artistas permite, assim, abarcar um vasto campo de relações interligadas e interdependentes. A sua visualização evidencia padrões recorrentes na escolha dos artistas-colecionadores, coloca-os no centro ou na periferia das redes, e situa-os em comunidades específicas que colecionam um determinado artista. Neste sentido, esses processos de cálculo e de visualização abrem caminho a novas questões na história da arte sobre as dinâmicas de identificação entre artistas. No entanto, como a construção de uma base de dados nunca é neutra, estas redes seguem sendo representativas das fontes à disposição do investigador e das suas ferramentas intelectuais. Os grafos são também opacos quanto às motivações subjacentes de cada artista para colecionar e às formas como as obras foram adquiridas. Ao passar de uma abordagem geral para uma abordagem mais detalhada, a rede formada pela coleção de Kandinsky revela uma maior complexidade: ao atribuir um determinante a cada um dos artistas-colecionados, é possível compreender as relações que o pintor russo desenvolveu ao longo da sua carreira. Esta visualização é uma ferramenta – não um produto acabado – para uma pesquisa mais aprofundada sobre o lugar de Kandinsky na abstração da primeira metade do século XX. Ela revela também as nuances profundas das ligações: uma ligação não é uma relação, e uma relação pode ter múltiplas facetas. A comparação destas redes com as fontes historiográficas potencialmente nos ajuda a compreender a especificidade de cada uma das ligações entre um artista-colecionador e um artista-colecionado.

Tradução do francês por Arthur Valle

 

 

* Gwendoline Corthier-Hardoin é investigadora na École Normale Supérieure de Paris e na Université Paul-Valéry – Montpellier III. Seu trabalho de doutoramento versa sobre os artistas enquanto colecionadores e o estudo da constituição das suas coleções desde a segunda metade do século XIX até nossos dias. Paralelamente, ela é responsável pela unidade de investigação de coleções da MO.CO. (Montpellier Contemporain), cujo objetivo é o estudo das coleções públicas e privadas contemporâneas. O presente artigo foi originalmente publicado como: CORTHIER-HARDOIN, Gwendoline. Dynamiques d’identification: les artistes collectionneurs en réseaux. Histoire de l’art, n. 87, p. 149-158, 2021.

[1] LAZEGA, Emmanuel. Réseaux sociaux et structures relationnelles. Paris: PUF, 2014, p. 6

[2] Ver, por exemplo: SECKEL, Hélène. Picasso collectionneur. Munich: Kunsthalle der Hypo-Kulturstiftung, 1998; Paris: RMN, 1998 (catálogo de exposição); MARQUET-ZAO, Françoise; CAZÉ, Sophie; LEFEBVRE, Éric (org.). L’Homme des deux rives: Zao Wou-ki, collectionneur. Issoudun, Musée de l’Hospice Saint-Roch, 2016; Paris: Musée Cernuschi, 2016; Paris: Flammarion 2016 (catálogo de exposição); MATHIEU, Marianne; LOBSTEIN, Dominique (org.). Monet collectionneur. Paris: Musée Marmottan-Monet, 2017-2018; Paris: Hazan, 2017 (catálogo de exposição).

[3] DEGENNE, Alain; FORSE, Michel. Introducing Social Networks. Londres/New Delhi: Thousand Oaks/Sage, 1999; SCOTT, John; CARRINGTON, Peter J. The Sage Handbook of Social Network Analysis. Londres/New Delhi: Thousand Oaks/Sage, 2011; WASSERMAN, Stanley; FAUST, Katherine. Social Network Analysis: Methods and Applications. New York: Cambridge University Press, 2009; BARABÁSI, Albert-László. Linked: The New Science of Networks. Cambridge: Perseus, 2002; CALDARELLI, Guido; CATANZARO, Michele. Networks:  A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2012.

[4] Nossa investigação incide sobre obras de artes visuais (pinturas, desenhos, gravuras, esculturas, instalações etc.) que não são classificadas como arte “não-ocidental,” arte “bruta,” arte “outsider” ou arte “naïf,” cujas redes e dinâmicas de identificação são diferentes, mas que podem ser objeto de um estudo posterior.

[5] DRUCKER, Johanna. Graphesis: Visual Forms of Knowledge Production. Cambridge: Harvard University Press, 2014.

[6] KIENLE, Miriam. Between Nodes and Edges: Possibilities and Limits of Network Analysis in Art History. Artl@s Bulletin, v. 6, n. 3, 2017. URL: https://docs.lib.purdue.edu/artlas/vol6/iss3/1/

[7] PORRAS, Stéphanie. Keeping Our Eyes Open: Visualizing Networks and Art History. Artl@s Bulletin, v. 6, n. 3, 2017. URL: https://docs.lib.purdue.edu/artlas/vol6/iss3/3/

[8] BOURDIEU, Pierre. Le marché des biens symboliques. L’Année sociologique, v. 3, n. 22, 1971, p. 52-53.

[9] MOULIN, Raymonde. Le Marché de la peinture en France. Paris: Minuit, 1967, p. 26-34.

[10] WHITE, Harrison; WHITE, Cynthia. La carrière des peintres au XIXe siècle: du système académique au marché des impressionnistes. Paris: Flammarion, 1991.

[11] O grau ponderado corresponde ao número de ligações que têm um nó como ponto final e permite determinar os nós mais importantes com base na intensidade das relações.

[12] A modularidade caracteriza a divisão dos nós em comunidades e permite destacar redes distintas dentro da rede principal.

[13] CORTHIER-HARDOIN, Gwendoline. Artistes collectionneurs: ce que révèlent les archives. Roots§routes, ano X, n. 33, 2020. URL: https://www.roots-routes.org/artistes-collectionneurs-ce-que-revelent-les-archives-de-gwendoline-corthier-hardoin/

[14] KLINKE, Harald. The Digital Transformation of Art History. In: BROWN, Kathryn (org.). The Routledge Companion to Digital Humanities and Art History. Abingdon: Routledge, 2020, p. 36.

[15] KIENLE, op. cit.

[16] KOLEŠNIK, Ljiljan; BOJIC, Nikola; ŠILIC, Artur. Reconstruction of Almir Mavignier’s Personal Network and its Relation to the First New Tendencies Exhibition. The Example of the Application of Network Analysis and Network Visualisation in Art History. Život umjetnosti, v. 99, n. 2, 2016, p. 57-77. URL: https://www.ipu.hr/content/zivot-umjetnosti/ZU_99-2016_058-079_Kolesnik_Bojic_Silic.pdf Kolešnik, Bojic e Šilic analisaram a rede do artista Almir Mavigner com base na quantificação das suas relações sociais a partir de 1960. Este trabalho ajudou a explicar o desenvolvimento e a subsequente estruturação da sociabilidade no movimento das Nouvelles Tendances.

[17] Essas cifras são resultantes de pesquisas efetuadas na base de dados em linha da coleção do museu para obras datadas até 1944 (exceto as de Kandinsky). URL: https://collection.centrepompidou.fr/artworks

[18] BOISSEL, Jessica. Environnement de l’artiste. In: BOISSEL, Jessica; DEROUET, Christian (org.). Kandinsky. OEuvres de Vassily Kandinsky (1866-1944). Paris: Centre Georges-Pompidou, 1984-1985; Paris: Centre Georges-Pompidou, 1984 (catálogo de exposição), p. 449-495

[19] FRIEDEL, Helmut; JANSEN, Isabelle. “Die blaue Reiterei stürmt voran”: Bildquellen für den Almanch “Der Blaue Reiter”. Die Sammlung von Wassily Kandinsky und Gabriele Münter. Munich: Gabriele-Münter- und Johannes-Eichner-Stiftung, 2012.

[20] BOISSEL, Jessica. Bauhaus. Weimar-Dessau-Berlin, 1922-1933. In: BOISSEL e DEROUET, op. cit, p. 246.

[21] Cahiers du musée national d’Art moderne, hors-série: Kandinsky-Albers. Une correspondance des années trente, dez. 1998.

[22] Ver as fotografias de 1913 publicadas em: BOISSEL e DEROUET, op. cit, p. 452.

[23] Vassily Kandinsky, carta à Herwarth Walden, 24 jun. 1913 (Ibid., p. 467).

[24] DICKERMAN, Leah (org.). Inventing Abstraction. New York: Museum of Modern Art, 2012-2013; New York: Museum of Modern Art, 2013. Ver “Artist Network Diagram.” URL: https://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/inventingabstraction/?page=connections