De anjos a demônios: Mikhail Vrubel e a busca por um idioma modernista

Maria Taroutina*

Como citar: TAROUTINA, Maria. De anjos a demônios: Mikhail Vrubel e a busca por um idioma modernista. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVIII, 2023. https://doi.org/10.52913/19e20.xviii.10

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1. Em sua biografia de Mikhail Vrubel (1856-1910), publicada em 1911, o artista Stepan Iaremich relatou um episódio revelador. Na primavera de 1901, Iaremich acompanhou Vrubel à Igreja de São Cirilo, do século XII, em Kiev, onde este último havia restaurado e recriado um grande número de afrescos em 1884. Em frente ao seu mural da Lamentação dos Anjos [Figura 1], Vrubel comentou que “em essência, este é o tipo de obra ao qual eu deveria retornar.”[1] Naquela época, Vrubel estava estabelecido em Moscou e já havia pintado algumas de suas obras-primas mais célebres: Demônio Sentado (1890) [Figura 2], Retrato de Savva Mamontov (1897), Pan (1899), Lilases (1900) e Princesa Cisne (1900) [Figura 3]. No entanto, o próprio Vrubel julgava que tinha produzido o melhor de sua obra durante sua estadia em Kiev na década de 1880, um período que foi amplamente marcado pelo seu trabalho de restauração na Igreja de São Cirilo, e pelos seus esboços para os murais não realizados na Catedral de São Vladimir.[2] O historiador de arte Nikolai Punin concordava com a autoavaliação do artista, elogiando os afrescos de Vrubel em Kiev como alguns dos seus melhores trabalhos, nos quais ele “abordou os problemas conhecidos da pintura” com “tamanha força de espírito e perspicácia […] que as poucas páginas existentes que narram o período criativo de Vrubel em Kiev deveriam […] ser expandidas e se tornar um enorme corpus de literatura, exclusivamente dedicado a [examinar] o significado e a importância dessas composições.”[3]

2. Embora algumas monografias acadêmicas tenham discutido esse estágio formativo da carreira de Vrubel, a maior parte da literatura concentrou-se, em vez disso, em seu período “maduro” de Moscou e, especialmente, no grande número de desenhos, pinturas e esculturas sobre o tema do “Demônio,” bem como nos trabalhos decorativos e pinturas folclóricas que ele produziu nas colônias artísticas de Abramtsevo e Talashkino.[4] São ainda poucos os estudos que discutem como e por que a preocupação de Vrubel com assuntos religiosos passou a influenciar sua perspectiva artística, evoluindo a ponto de se tornar um importante subtema dentro de sua obra, o que culminou no intrigante ciclo de pinturas bíblicas e apócrifas produzido no final de sua vida, e que normalmente foram desconsideradas como seu trabalho mais fraco, como um resultado do início da doença mental que o acometeu.[5] Todavia, em seu combinação incomum de formas modernistas com temas místicos e transcendentais, essas obras devem ser entendidas como precursoras, ainda no século XIX, de uma linhagem particular de modernismo visionário que encontrou sua plena expressão nas pinturas da geração subsequente de artistas russos, como Pavel Filonov, Vasily Kandinsky e Kazimir Malevich, para citar apenas alguns. Na verdade, não só o envolvimento sustentado por Vrubel com relação à tradição pictórica russo-bizantina catalisou a produção de algumas das suas obras mais radicais e canônicas, incluindo as pinturas do Demônio, mas também antecipou e moldou – com quase trinta anos de antecedência – o interesse da vanguarda do século XX pelos ícones.[6]

3. Vrubel nasceu em Omsk em 1856, na família de um advogado militar. Como resultado da sua ascendência mista – seu pai era de ascendência polonesa, enquanto sua mãe era de uma antiga família nobre russa –, Vrubel estava intimamente familiarizado tanto com o Catolicismo Romano quanto com a Ortodoxia Russa.[7]

4. No entanto, ele considerava a religião organizada restritiva e opressiva, e no final da década de 1880 começou a expressar uma dúvida profunda sobre a fé cristã. Alternativamente, ele passou a acreditar cada vez mais que a livre busca da vocação artística e da criatividade individual era o caminho mais direto para a realização espiritual, proclamando uma famosa frase no final da sua vida: “Arte – esta é a nossa religião.”[8] Embora Vrubel tenha inicialmente estudado direito na Universidade de São Petersburgo, após sua formatura ele quase imediatamente se matriculou como estudante em tempo integral na Academia Imperial de Artes, onde estudou por quatro anos sob a direção do professor Pavel Chistiakov (1832–1919).

5. No início de 1884, ainda estudante da Academia, Vrubel foi abordado pelo ilustre historiador de arte e arqueólogo Adrian Prakhov, que na época procurava um jovem artista para ajudá-lo a concretizar um plano de restauração em grande escala da igreja do mosteiro de São Cirilo, do século XII. Para garantir a encomenda, Vrubel foi convidado a produzir uma pequena obra à maneira bizantina. Ele pintou uma Anunciação [Figura 4], obra que infelizmente não sobreviveu, exceto por uma pequena fotografia em preto e branco que foi originalmente reproduzida na biografia de Iaremich.[9] Baseado no tipo iconográfico bizantino da “Virgem que fia,” o trabalho de Vrubel demonstra uma familiaridade íntima com protótipos medievais, como os mosaicos da Anunciação na Igreja de Santa Sofia do século XI em Kiev [Figura 5], ou o ícone da Anunciação do século XII no Mosteiro de Santa Catarina no Monte Sinai [Figura 6].[10]

6. Como estudante da Academia Imperial de Artes, Vrubel teria tido acesso ao Museu de Arte Antiga Russa daquela instituição, que abrigava uma vasta coleção de ícones medievais bizantinos e russos.[11] Estes incluíam mais de cento e vinte ícones bizantinos dos séculos XII, XIII e XIV, bem como vários fragmentos de mosaico que Petr Sevastianov trouxera do Monte Athos em 1860.[12] Além disso, a Academia também possuía um grande arsenal de cópias e fotografias de ícones bizantinos do século XI e XII, de mosaicos de Santa Sofia em Constantinopla, e de afrescos do século XIII pintados por Manuel Panselinos no Monte Athos, bem como cópias de ícones e afrescos do século XII pertencentes aos mosteiros Betania e Gelati, na Geórgia.

7. Por último, a Academia possuía uma tradução russa do famoso manual iconográfico de arte bizantina de Adolphe Didron e Paul Durand, o Manuel d’iconographie chrétienne grecque et latin; traduit du manuscrit byzantin “Le Guide de la Peinture” (Paris, 1845).[13] Supostamente compilado no século XVIII por Dionysius de Fourna, um monge do Monte Athos, o manual explicava técnicas da pintura bizantina e descrevia detalhadamente a iconografia de diferentes figuras e cenas religiosas.[14]

8. Embora seja hoje difícil determinar qual obra específica Vrubel usou como modelo para a sua Anunciação, é claro que ele deve tê-la baseado em um autêntico protótipo medieval. Uma comparação entre a Anunciação do Monte Sinai, do século XII, e a versão de Vrubel demonstra quão intuitivamente o artista compreendeu a linguagem formal e simbólica dos ícones, sem que ele tenha tido qualquer treinamento oficial em pintura de ícones. Em vez de “habitar” o espaço pictórico da imagem, as figuras de Vrubel parecem flutuar contra um fundo infinito e contínuo que denota uma dimensão sagrada, simbólica e atemporal. Vrubel evitou qualquer iluminação direcional ou sombras em sua Anunciação, e o alongamento das figuras, o dinamismo linear de seus panejamentos e a torção serpenteada do anjo se assemelham muito ao protótipo bizantino. Em vez de alterar a imagem na direção do naturalismo, e empregar a modelagem tradicional dos rostos e o uso do claro-escuro, como era comum na época para artistas formados pela Academia, Vrubel aderiu estreitamente à linguagem formal dos ícones medievais. Não é, portanto, surpreendente que o subsequente estudo em primeira mão que Vrubel fez em Kiev sobre a arte medieval monumental lhe tenha permitido internalizar ainda mais o modo de representação dos ícones, de uma maneira que continuou a moldar a sua obra no decorrer de sua carreira.

9. Muitas das igrejas e mosteiros medievais de Kiev sofreram consideravelmente ao longo dos séculos, sendo vítimas das invasões mongóis ou da mudança de gostos artísticos, o que resultou em generalizada caiação e repintura de alguns de seus primeiros afrescos e mosaicos. A comissão de São Cirilo fazia, portanto, parte de um projeto de restauração mais amplo iniciado nas décadas de 1870 e 1880 para renovar as antigas igrejas de Kiev. Como parte desta comissão, Vrubel foi encarregado de restaurar cerca de cento e cinquenta figuras das quais se preservavam apenas fragmentos. Em um período de apenas sete meses, com a assistência de estudantes da Escola Murashko, Vrubel repintou grandes seções de murais severamente danificados, como A Anunciação, A Entrada em Jerusalém e A Dormição da Virgem, bem como criou várias composições totalmente novas para substituir aquelas que haviam desaparecido. Na verdade, a Descida do Espírito Santo (Pentecostes), a Lamentação dos Anjos [Figura 1], um medalhão com a cabeça de Cristo, Dois Anjos com Labara [Figura 7] e a figura de Moisés parecem ter sido inteiramente criações de Vrubel.

10. Vrubel preparou-se para a encomenda estudando os murais medievais sobreviventes em São Cirilo, e as pinturas e mosaicos do mosteiro de São Miguel e da Catedral de Santa Sofia. Ele também teve acesso à grande coleção de desenhos, esboços, fotografias e cromolitografias de arte medieval bizantina e russa de Prakhov, que o historiador adquiriu durante suas viagens pelo império russo, Europa, Oriente Médio e outros territórios anteriormente bizantinos.[15] Vrubel passava muitas horas na casa de Prakhov estudando essas imagens e fazendo cópias delas, que depois incorporava em seus projetos para o trabalho de restauração em São Cirilo. Por exemplo, Vrubel baseou os seus dois grandes afrescos de Dois Anjos com Labara (1884) (localizados no arco da capela baptismal) nos anjos do mosaico do Juízo Final na Catedral de Santa Maria Assunta em Torcello [Figura 8].[16]

11. Embora a composição de Vrubel seja uma criação original sua, ele adotou muitas das características formais da obra medieval, incluindo o esvoaçar agitado dos panejamentos, a estilização linear das dobras, os movimentos dinâmicos, e mesmo os traços faciais dos anjos. Da mesma forma, tanto a iconografia quanto a composição do mural da Descida do Espírito Santo foram inspiradas por uma combinação de fontes antigas e fotográficas. A disposição semicircular dos discípulos na pintura de Vrubel, bem como os fachos estilizados de luz divina que emanam do Espírito Santo na forma de uma pomba, lembram o mosaico de Pentecostes na Catedral de Monreale, na Itália. No entanto, a fluidez, a linearidade e os movimentos das figuras são mais parecidos com o afresco de Pentecostes na Catedral de Santa Sofia, em Kiev. De modo análogo ao que se pode vislumbrar na sua primeira pintura da Anunciação, esses afrescos mostram o quanto Vrubel aderiu aos protótipos medievais, emulando sua propensão para cores brilhantes, planaridade, contornos pronunciados e ambiguidade espacial.

12. Após a conclusão das obras de restauração em São Cirilo, Prakhov pediu a Vrubel que restaurasse quatro arcanjos em mosaico na cúpula da Catedral de Santa Sofia. Um dos anjos mantinha quase todas as tesselas de mosaico originais, e serviu de modelo para os outros três. A tarefa de Vrubel envolvia a imitação do efeito das tesselas do mosaico com a pintura a óleo, de modo que, vistos de baixo, os anjos restaurados seriam impossíveis de diferenciar das composições originais.[17] Esta experiência foi, sem dúvida, formativa para o artista, que, ao retornar ao trabalho em outros suportes, passou a adaptar essa técnica como parte de seu estilo próprio. Por exemplo, numa das suas obras mais significativas, Demônio Sentado [Figura 2] – que o artista começou imediatamente após a sua estada em Kiev -, a multitude de minúsculas pinceladas em forma de bloco, particularmente no lado direito da pintura [Figura 2, detalhe], lembra tesselas de mosaico, sugerindo profundidade e volume, ao mesmo tempo em que enfatiza a planaridade da imagem.

13. A figura monumental é retratada no imediato primeiro plano da pintura, ocupando um espaço comprimido, quase claustrofobicamente raso, com pouco recuo perspectivo. Embora Vrubel tenha incluído uma pequena montanha e um pôr do sol no fundo distante da pintura, as grandes flores geometrizadas no seu lado direito enfatizam a planaridade da tela, solapando a impressão de espaço tridimensional. A desintegração das formas legíveis se aproxima tanto da abstração que, à primeira vista, é difícil identificar as indistintas formas angulosas como flores. Em contraste, o tratamento dado por Vrubel ao torso do Demônio e suas mãos tensamente entrelaçadas acentuam a pesada solidez da figura. O corpo do Demônio é registrado como uma forma volumosa e imponente, que lembra as figuras nuas de Michelangelo no teto da Capela Sistina.

14. Em sua combinação magistral de planaridade pictórica com profundidade e solidez volumétrica, Demônio Sentado de Vrubel pode ser comparado às pinturas de Paul Cézanne, especialmente a série que retrata o Monte Sainte-Victoire (1900–04). Assim como Cézanne, Vrubel usou formas planas e sobrepostas para criar volume e espaço a partir de contrastes de cor. Suas pinceladas cristalinas e texturizadas lembram em muitos aspectos as manchas coloridas e a textura tectônica que Cézanne desenvolveu em seus últimos trabalhos. Com efeito, em seu livro Of Diverse Arts (1962), o artista construtivista Naum Gabo chegou ao ponto de afirmar que não só as inovações formais radicais de Vrubel em Demônio Sentado eram semelhantes às de Cézanne, mas que o artista russo tinha, na verdade, antecipado o francês em quase quinze anos em sua formulação de uma sintaxe visual de vanguarda.[18] Na seção de ilustrações de Of Diverse Arts, Gabo estrategicamente justapôs uma das pinturas do Monte Sainte-Victoire de Cézanne, de 1905, com um estudo que Vrubel havia executado para Demônio Sentado em 1890–91, a fim de demonstrar que as pinceladas dos dois artistas eram quase idênticas, afirmando que:

15. Vrubel libertou as artes da pintura e da escultura dos esquemas acadêmicos e realistas. Sua genialidade é responsável por moldar a consciência visual da nossa geração, que veio depois dele […]. A sua influência na nossa consciência visual foi tão decisiva quanto a de Cézanne. Mesmo o cubismo não foi inteiramente uma surpresa para nós.[19]

16. Em contraste, o crítico Pavel Muratov pensava que Vrubel e Cézanne eram dois tipos muito diferentes de artistas, tanto conceitual quanto estilisticamente.[20] De acordo com Muratov, Cézanne estava principalmente interessado em transcrever as realidades “mundanas” da vida cotidiana provinciana, e em enfatizar sua materialidade e solidez. Ele “pintou retratos descomplicados, paisagens de sua terra natal e naturezas-mortas simples e elementares.”[21] Vrubel, por seu turno, aspirava a capturar o imaterial, o sobrenatural e o divino em forma pictórica. As suas obras pretendiam ser monumentais, maiores do que a própria vida, refletindo ao mesmo tempo novos conceitos mentais e temas universais e intemporais.[22] Ainda de acordo com Muratov, estes objetivos artísticos antitéticos também se expressavam no nível da forma. Na verdade, uma análise mais detida das pinceladas de Cézanne e de Vrubel revela que, apesar das semelhanças superficiais – como as delineadas por Gabo –, havia diferenças estruturais significativas nos seus respectivos estilos. Ao contrário de Cézanne que embasava suas obras em uma estrutura de grade e passagens sistematizadas, que envolviam a sutil mistura de planos perpendiculares e interseccionados entre si, as pinceladas de Vrubel tendiam a variar em tamanho e direção, dependendo do seu papel estrutural na imagem [Figura 2, detalhe]. Como tal, elas se distinguem dos blocos de cor regularizados e geometrizados de Cézanne para funcionarem mais como tesselas individuais em uma composição de mosaico. Alguns anos depois de ter concluído o projeto de São Cirilo, Vrubel explicou a Iaremich que o seu fascínio pela planaridade pictórica e pela materialidade da superfície pintada evoluiu a partir do seu encontro com a arte medieval russo-bizantina, que o ensinou a alcançar “um distribuição ornamental de formas, a fim de reforçar a planaridade da parede.”[23] Além disso, como Aline Isdebsky-Pritchard pontuou, “a quase impossibilidade de que Vrubel tenha visto o trabalho de Cézanne […] quando o estilo deste último se tornou totalmente desenvolvido […] impede que ele tenha dependido do trabalho do artista francês.”[24] Em suas viagens à Europa, Vrubel parece não ter visto a primeira e a terceira exposições impressionistas (realizadas, respectivamente, em 1874 e 1877) das quais Cézanne participou, e as obras de Cézanne não entraram em coleções russas até 1904.[25] Assim, Vrubel teria desenvolvido sua peculiar sintaxe modernista em simultâneo, mas independentemente, do mestre francês, incorporando em seu próprio trabalho as lições que aprendera com os modos de representação medievais.

17. A alteração que Vrubel promoveu em seu próprio estilo pictórico em resposta a seus encontros com a arte medieval afastava-se radicalmente da prática de muitos de seus contemporâneos e colegas acadêmicos, como Viktor Vasnetsov e Mikhail Nesterov, que também trabalharam em encomendas de igrejas e projetos de restauração, mas que tendiam a transformar o idioma dos ícones em um estilo acadêmico, e não o contrário. Embora Vasnetsov e Nesterov tenham adotado a iconografia dos afrescos e ícones medievais, seus estilos permaneceram ligados principalmente ao do ilusionismo naturalista. Abandonando o que consideravam as estilizações “primitivas” presentes nos ícones e afrescos medievais, esses artistas se viam modernizando e melhorando a simplicidade religiosa e a ingenuidade das imagens ortodoxas. Por exemplo, na pintura da Santíssima Trindade de Vasnetsov (1907) para a Catedral de Alexander Nevsky em Varsóvia [Figura 9], Deus e Cristo são representados dentro de um espaço tridimensional, como se evidencia pela modelagem naturalista dos rostos, os escorços das figuras, e pelo jogo de luz e sombra.

18. Deus e Cristo estão, por assim dizer, emergindo do reino celestial para o mundo humano através de um anel composto por serafins entrelaçados. De modo análogo, em seu afresco de 1892 representando a Virgem Maria com o Menino Jesus na Catedral de São Vladimir, Nesterov retratou as figuras dentro de um nicho ilusionista, contendo um fundo atmosférico e recessão em perspectiva. Em vez de serem representados frontalmente, tanto a Virgem quanto o Menino Jesus foram rotacionados no espaço, e não devolvem o olhar do observador. Típicas da pintura narrativa de cavalete, suas ações são circunscritas na moldura da pintura e não implicam o mundo exterior, como no caso dos ícones.[26] Vrubel, por outro lado, entendia que a visualidade icônica fazia parte de uma estética única e holística, de um sistema mental que não poderia ser alterado sem violar a própria essência da imagem icônica.

19. No final da década de 1880 e início da década de 1890, a proeminência contínua da Academia, juntamente com a nova popularidade da Associação de Exposições de Arte Itinerantes (Peredvizhniki), garantiu que o público em geral, o Santo Sínodo e o sistema artístico oficial favorecessem uma modo de representação mais naturalista quando se tratava de arte eclesiástica contemporânea.[27] É importante enfatizar, contudo, que a Igreja Ortodoxa não aceitou indiscriminadamente todas as representações realistas de assuntos bíblicos. Por exemplo, Cristo no deserto (1872), de Ivan Kramskoi, Cristo e a adúltera, de Polenov (1886), e O que é a verdade?, de Nikolai Ge (1890) foram todas obras vistas como profundamente problemáticas – se não mesmo blasfemas – do ponto de vista eclesiástico, porque reinterpretaram a narrativa cristã a partir de perspectivas históricas, arqueológicas, seculares e subjetivas que muitas vezes estavam em desacordo com a doutrina teológica estabelecida.[28] Em contraste, embora Vasnetsov tenha substituído as qualidades hieráticas da arte russo-bizantina por efeitos pictóricos miméticos, ele aderiu estreitamente às iconografias e composições ortodoxas oficialmente aprovadas. Além disso, ele afirmou repetidamente que era um “crente ortodoxo sincero,” e que estava genuinamente empenhado em garantir que suas pinturas religiosas “não contradissessem de forma alguma o elevado ideal cristão, nem o ideal da Igreja [ortodoxa].”[29] Em outras palavras, suas obras eram “novas” e “atualizadas” na forma, mas “tradicionais” e “atemporais” no conteúdo, e podiam, portanto, ser sacralizadas como iterações modernas na longa evolução do ícone desde a Idade Média até aquele momento. Um comentador do período chegou ao ponto de elogiar a capacidade de Vasnetsov de “libertar” as representações medievais dos ícones “das deformidades anatômicas, que conferiam às figuras o seu aspecto oculto.”[30] Ele argumentava:

20. A arte infantil dos nossos antigos pintores de ícones era, evidentemente, impotente na gestão desta tarefa impossível [da representação naturalista], devido à ignorância e à inépcia. Nos desenhos de Vasnetsov, toda a antiguidade alcançou uma nova forma e um novo matiz. E a partir daqui – a sua arte liga a contemporaneidade com a história e o passado centenários do povo, a poesia da sua infância com a perfeição da nova arte.[31]

21. Logo, as pinturas de Vasnetsov defendiam simultaneamente as autoridades da Igreja e da Academia, sem se desviar muito na direção desta última. Paradoxalmente, porém, para o devoto “povo simples,” que rezava nas novas igrejas revivalistas, as imagens de Vasnetsov não foram entendidas como “ícones.” A escritora britânica Rosa Newmarch relatou que quando a um grupo de “camponeses” foi perguntado se eles gostavam da “tão esplêndida” nova Catedral de São Vladimir e das “maravilhosas imagens nela contidas,” eles responderam que “gostavam mais dos ícones antigos” pois as obras de Vasnetsov continham “muita vida nelas.”[32]

22. As obras de arte religiosas de Vrubel, por outro lado, eram estética e teologicamente desviantes. Eles violavam a autoridade da Academia e da Igreja em termos de estilo e de iconografia, e foram, por consequência, censuradas. Os afrescos de São Cirilo foram repetidamente criticados por serem excessivamente arcaicos e até anacrônicos, uma vez que não refletiam o estilo realista mais atualizado e em moda, mas pareciam remontar a um idioma representacional anterior e obsoleto. As figuras de Vrubel foram consideradas anatomicamente incorretas e mal executadas. Eles pareciam repetir perversa e deliberadamente a “hediondez” e a “deformação” dos originais do século XII. De modo irônico, foi precisamente o efetivo “medievalismo” da arte de Vrubel que afrontou os espectadores do século XIX. Como escreveu o historiador de arte e crítico Vsevolod Dmitriev em 1913, a reavaliação estética da arte medieval russo-bizantina só ocorreu no século XX; apenas depois disso as obras “bizantinas” de Vrubel foram totalmente apreciadas pelo establishment artístico e pelo público em geral:

23. Somos testemunhas e participantes de uma notável reavaliação: a antiga pintura de ícones russos, até recentemente morta e supérflua para nós, hoje nos atrai com força cada vez maior, como uma fonte de beleza viva e imediata. Esta reavaliação, que transformou fundamentalmente os nossos gostos e as nossas exigências [em arte], estendeu-se também a Vrubel […]. As pinturas murais de São Cirilo, os estudos para São Vladimir e as últimas obras “bizantinas” de Vrubel, que costumavam aparecer como prelúdio e conclusão do período mais importante da atividade do artista em Moscou, queremos hoje destacar como o aspecto mais fundamental e vital de Vrubel.[33]

24. No entanto, na década de 1880, esse tipo de avaliação não era comum. Assim, quando Prakhov convidou Vrubel a apresentar projetos para a decoração interior da recém-construída Catedral de São Vladimir, estes foram prontamente rejeitados pelo júri, que os considerou estilistica e iconograficamente pouco convencionais para serem incluídos no edifício. Em vez disso, a encomenda foi dada a Vasnetsov, Nesterov, aos irmãos Pavel e Alexander Svedomsky, e ao hoje quase esquecido artista polaco Wilhelm Kotarbinsky, enquanto Vrubel foi convidado a executar apenas alguns pequenos ornamentos decorativos nas colunas interiores da catedral. Retrospectivamente, não é difícil perceber por que o júri conservador considerou os estudos de Vrubel tão problemáticos. Em sua simplicidade composicional e concisão modernista, os projetos sem precedentes de Vrubel se destacavam da corrente principal da decoração de igrejas russas do século XIX. Ao contrário dos afrescos de São Cirilo, onde Vrubel aderiu muito mais escrupulosamente aos originais medievais, os esboços de São Vladimir explicitam a busca de uma ruptura em termos estilísticos e conceituais. Como em Demônio Sentado, nessas obras Vrubel empregou meios medievais para fins modernistas.

25. O próprio Prakhov reconheceu a originalidade do ciclo de afrescos proposto por Vrubel, observando que seus “esboços soberbos” exigiam uma catedral em um “estilo excepcional,” totalmente diverso.[34] Por exemplo, em uma versão da Lamentação [Figura 10], Vrubel retratou o Virgem sentada contra um horizonte baixo, elevando-se acima do corpo plano e horizontal de Cristo, que é virtualmente reduzido a uma única linha branca.

26. Uma diminuta cruz é visível contra o sol poente no fundo distante, fazendo referência à crucificação. Dois ciprestes do lado direito da imagem repetem ritmicamente a silhueta vertical do corpo da Virgem. A disposição resolutamente perpendicular desta última em relação ao Cristo horizontal ecoa a configuração da cruz, sinalizando a geometria espiritual subjacente da composição. Embora Vrubel não tenha retratado Cristo e a Virgem com auréolas tradicionais, o sol poente no horizonte, estrategicamente representado logo acima da cabeça de Cristo, metaforicamente funciona como um halo luminoso. Assim, em vez de empregar a iconografia ortodoxa padrão, Vrubel confiou em recursos puramente composicionais para sinalizar a natureza sagrada da cena representada. Da mesma forma, em vez de gestos enfáticos e sinais externos de emoção, típicos das cenas de lamentação, Vrubel retratou a Virgem com uma expressão facial estoica, em um momento de meditação silenciosa, exemplificando uma sensibilidade particularmente “moderna” de interioridade e contenção do lamento. O impulso sólido, vertical e ascendente do corpo da Virgem é impressionante em seu reticente minimalismo, enquanto toda a cena nos é apresentada com apenas alguns traços de cor não modulados dentro de um espaço achatado e raso.

27. Em outra variante da Lamentação [Figura 11], Cristo e a Virgem estão situados no interior de um recinto. Duas janelas logo acima da cabeça da Virgem dominam todo o desenho. Em vez de ocuparem o centro da imagem, Cristo e a Virgem são novamente relegados à borda inferior da composição. No tratamento das vestes e do rosto da Virgem, Vrubel começou a explorar a fragmentação da forma ao modo de um mosaico, com manchas de cores distintas, que ele desenvolveria mais plenamente em suas pinturas subsequentes, como Demônio Sentado e Retrato de Savva Mamontov. As duas janelas, representadas como planos geométricos planos e brancos contra um fundo monocromático e escuro, têm uma qualidade que dir-se-ia proto-suprematista. Compostos por passagens de espaço negativo – o papel branco brilhante – elas tornam-se o foco visual da composição. O seu papel como “janelas” sugere uma abertura para outro registo espacial, convidando o espectador a olhar através delas, mas simultaneamente frustrando esse desejo com sua opacidade plana. Uma vez que Vrubel não apresentou este trabalho específico ao júri da comissão de São Vladimir, as janelas vazias não podem ser simplesmente entendidas como características arquitetônicas da catedral, em torno das quais Vrubel estruturou o seu projeto. Em vez disso, parecem servir, na imagem, a uma função puramente pictórica e metafórica. Na sua impressionante luminosidade branca, talvez se destinassem a funcionar simbolicamente como portais para o reino sagrado, ao qual os seres humanos não têm acesso direto, exceto através da mediação de Cristo e da Virgem, que são representados no primeiro plano imediato da imagem e mais próximos do observador. Semelhantes ao fundo dourado dos ícones, estas janelas servem como um lembrete material da separação entre este mundo e aquele que está além. Em sua escolha de formas retangulares e rígidas, Vrubel pode ter, inclusive, se inspirado nas geometrias sagradas da iconografia ortodoxa, onde Cristo era frequentemente retratado entronizado contra um fundo de três grandes formas geométricas: um losango vermelho, um oval preto-azulado e um retângulo vermelho. O mesmo efeito visual foi repetido por Vrubel no seu desenho para a Ressurreição [Figura 12], no qual Cristo é mostrado emergindo de uma sepultura, emoldurado por uma mandorla estilizada com formas geométricas simplificadas.

28. Por fim, a impenetrabilidade visual das janelas na cena da Lamentação também pode sugerir a incognoscibilidade essencial do além, sinalizando as próprias dúvidas existenciais de Vrubel e seu interesse de longo prazo nos escritos de Friedrich Nietzsche.[35] Ao contrário do fantasioso e estrelado céu noturno de Vasnetsov em sua Santíssima Trindade, os esboços de Vrubel apontam para uma atitude nietzschiana – e por extensão, essencialmente moderna – em relação à fé e à religião, marcada pela dúvida, ambiguidade, autoquestionamento e introspecção. Vale lembrar que esta postura era antitética à doutrina oficial da Igreja, que exigia que as representações icônicas afirmassem, em vez de pôr em questão, as realidades metafísicas retratadas. No entanto, na primeira década do século XX, uma nova geração de artistas, poetas e escritores simbolistas começou a endossar publicamente a extraordinária originalidade e inventividade composicional dos esboços de Vrubel para São Vladimir, sinalizando uma mudança de direção nos gostos estéticos e nas sensibilidades espirituais russas. Para estes espectadores mais jovens, a abordagem investigativa, dialética e “livre” de Vrubel com relação à representação religiosa parecia ser mais sincera, substantiva e ressonante com relação à realidade moderna. Além disso, tal abordagem pareceu-lhes paradoxalmente mais próxima do ethos espiritual dos protótipos medievais, em contraste com o que foi percebido como a imitação passiva e mecânica de Vasnetsov e Nesterov a respeito de um dogma ortodoxo ossificado. Assim, por exemplo, escrevendo em 1900, Alexandre Benois expressou a sua profunda decepção com as obras de Vasnetsov e Nesterov na Catedral de São Vladimir:

29 [Na época de sua criação] os afrescos de São Vladimir despertaram considerável orgulho entre o público russo, pois apenas os contemporâneos de Rafael e Michelangelo poderiam se gabar das criações desses mestres no Vaticano […]. No entanto, assim que encontrei os murais de São Vladimir in situ, abandonei todas as minhas ilusões anteriores. Fiquei profundamente triste […] o problema é que [Vasnetsov] não conseguiu arcar com a tarefa que assumiu! […] A falsidade inerente nos murais de São Vladimir significava não o engano pessoal por parte do artista, mas sim o engano, mortal e terrível, de toda a nossa cultura espiritual.

30. Fiquei ainda mais decepcionado com os afrescos do meu “amigo” Nesterov. Seu retábulo da Natividade traía, ao mesmo tempo, um flagrante mau gosto e uma sensibilidade doce e flácida, que o artista tentava mascarar como algo delicado e perfumado […]. No entanto, depois de ter visto esta Natividade, compreendi perfeitamente que Nesterov estava irremediavelmente perdido para a arte genuína.[36]

31. Apenas Vrubel recebeu elogios incondicionais de Benois:

32. Eu fui […] à Igreja de São Cirilo, especificamente com o propósito de conhecer as obras de Vrubel. Dediquei quase três horas ao exame minucioso dos seus afrescos e, mesmo que não tenha saído da igreja com alguma espécie de sensação de alegria indefinível, fiquei impressionado com o domínio técnico absoluto com que as inusitadas “imagens locais” do iconóstase foram pintadas […] e pelo que eu chamaria de “inteligência inspirada” com a qual [Vrubel] restaurou os antigos afrescos bizantinos […] e criou os inteiramente novos […]. Em todos os lugares, uma profunda reverência pela antiguidade combinavam-se harmoniosamente com as explosões criativas de uma imaginação livre.[37]

33. Se Vrubel, em vez de Vasnetsov, tivesse sido capaz de executar em escala monumental as suas ideias [para a Catedral de São Vladimir] […] então, provavelmente, […] teríamos sido o único lugar no mundo no qual, em tempos contemporâneos, um logos verdadeiramente vivo e inspirado surgiu nas paredes da catedral de Deus.[38]

34. Escrevendo mais de duas décadas depois de Benois, o crítico de arte esquerdista Nikolai Tarabukin foi mais longe, afirmando que Vrubel foi responsável, sozinho, por provocar uma reavaliação estética do idioma representacional dos ícones no século XX:

35. Na altura em que Vrubel começou os seus trabalhos [em Kiev], não havia as descobertas arqueológicas […] e estudos sobre pintura mural antiga [russo-bizantino], que nos são acessíveis hoje. A mudança nas atitudes em relação ao passado remoto da arte russa ocorreu depois de Vrubel. Em sua obra, o próprio Vrubel revelou-se um pioneiro da arte russo-bizantina, fazendo com que que a arte do passado aparecesse ao olhar do mundo contemporâneo sob uma luz totalmente diferente.[39]

36. A afirmação de Tarabukin era, obviamente, imprecisa, uma vez que estudiosos como Nikodim Kondakov e Prakhov tinham começado a publicar as suas pesquisas sobre a arte e arquitetura medieval bizantina e russa ainda nas décadas de 1870 e 1880. No entanto, como mencionado, naquele momento o gosto público estava largamente enraizado em uma tradição naturalista de pintura, e foi só no século XX que os ícones começaram a gozar de uma apreciação estética muito mais ampla. Consequentemente, tal como Dmitriev sugerira uma década antes, Tarabukin não estava totalmente errado ao afirmar que a consciência artística e a visão do mundo de Vrubel já pertenciam ao século XX, e não ao século XIX.

37. A exposição de Vrubel aos mosaicos e afrescos medievais em Kiev não só influenciou estilisticamente a sua obra, mas também teve um impacto temático duradouro em sua arte, levando o artista a recorrer a temas misteriosos e à exploração dos aspectos mais sombrios da psicologia humana. De fato, no decurso das obras de restauro, Vrubel passou grande parte do seu tempo estudando e desenhando os doentes mentais de uma pequena clínica psiquiátrica instalada em alguns dos edifícios abandonados do antigo mosteiro, não muito longe da igreja. Ele descobriu que a expressão física de turbulência interior dos pacientes estabelecia um paralelo útil com as cenas de êxtase religioso que ele retratava nos afrescos de São Cirilo.[40] Por outro lado, durante seus anos de estudante na Academia, Vrubel havia pintado predominantemente obras literárias, históricas, e temas clássicos. Foi só depois da passagem por Kiev que o artista se dedicou quase exclusivamente a temas sobrenaturais. Mesmo muito depois da conclusão do projeto em São Cirilo, Vrubel continuou a retratar temas bíblicos e religiosos, desenvolvendo seu próprio tipo particular de simbolismo, repleto de seres sobrenaturais e mitológicos, de fadas, de criaturas da floresta, de anjos e de demônios. Desta forma, o seu encontro com a tradição artística medieval russo-bizantina contribuiu não somente para a evolução do seu estilo pictórico, mas também para a sua abordagem conceitual e teórica da arte. Com efeito, após a rejeição dos seus esboços do projeto de São Vladimir, Vrubel parece ter transferido suas aspirações frustradas de pintura religiosa monumental para a sua série do Demônio. Numa carta reveladora à irmã de Vrubel, o pai do artista explicou que este último conceituou o Demônio não tanto como um “espírito maligno,” mas como um “que sofre e é insultado, mesmo assim um espírito que é poderoso […] [e] nobre” – uma caracterização do Demônio que os biógrafos e críticos subsequentes de Vrubel viriam a adotar como um avatar do próprio artista.[41]

38. Vrubel produziu seus primeiros esboços do Demônio em 1885, enquanto ainda trabalhava na restauração da Igreja de São Cirilo. Em sua monografia sobre o artista, Tarabukin argumentou que havia uma correlação direta entre a série do Demônio e os afrescos de São Cirilo, até mesmo no nível da iconografia. De acordo com Tarabukin, a fisionomia da Virgem em São Cirilo gradualmente evoluiu para a do Demônio, e ele afirmou que este último se tornou a antítese da primeira.[42] Na verdade, uma comparação entre esboços da cabeça da Virgem [Figura 13] e do Demônio [Figura 14], feitos por Vrubel, revela características faciais comuns, como os olhos redondos, grandes e expressivos, voltados para baixo; a ponte longa e irregular do nariz; os lábios carnudos; e até mesmo a inclinação da cabeça.

39. O rosto da Virgem transformou-se, assim, no rosto ligeiramente endurecido e mais viril do Demônio. Por outro lado, Iaremich argumentava que as características faciais do Moisés de Vrubel, e não da Virgem, foram diretamente incorporadas nas primeiras versões do Demônio.[43] Em ambos os casos, parecia haver uma ligação explícita entre os tipos iconográficos que Vrubel havia desenvolvido para a encomenda de Santo de Cirilo e o do Demônio. Nos anos de 1887 a 1900, ocorreu uma singular evolução estilística e temática na obra de Vrubel, durante a qual a figura do Demônio se tornou um amálgama de todas as experiências anteriores do artista com a arte religiosa e a pintura monumental pública. As linhas de demarcação entre o angélico, o demoníaco e o cristológico foram se tornando cada vez mais indistintas nestes anos, a ponto de serem totalmente intercambiáveis.

40. Por exemplo, o tipo iconográfico e fisionômico do Anjo [Figura 15], que Vrubel desenvolveu inicialmente para o projeto de São Vladimir em 1887, foi gradualmente transformado pelo artista em protótipo para o Demônio. Com efeito, estudiosos subsequentes rotularam de várias maneiras o Estudo de Cabeça mostrado na Figura 16: como Cabeça de Anjo, datada de 1887, ou, alternativamente, Cabeça de Demônio, datada de 1890.[44] Da mesma forma, um mesmo desenho a lápis de 1904 foi variadamente intitulado como O Demônio ou O Serafim em diferentes publicações, indicando os deslizamentos em termos de significado iconográfico fixo.[45] Obviamente, dado o fato de que o Demônio foi ele próprio um anjo até certo momento, tal continuidade iconográfica era certamente apropriada ao tema e à dualidade que já estava implícita na natureza do anjo “caído.” Não é, portanto, surpreendente que os temas se sobreponham na obra de Vrubel desde o início até ao fim da sua carreira artística, o que se torna mais proeminente em suas últimas pinturas. Por exemplo, a maior das últimas pinturas de Vrubel, O Serafim de Seis Asas, de 1904 [Figura 17], está intimamente relacionada com a sua magnum opus de 1902, Demônio Caído [Figura 18], tanto no que diz respeito aos traços faciais quanto na ênfase nas estupendas asas coloridas que envolvem ambas as figuras.

41. No entanto, Demônio Caído também alude ao sofrimento e sacrifício de Cristo, ao mostrar o Demônio usando o que parece ser uma coroa de espinhos na cabeça – um símbolo tradicional da Paixão. Além disso, de acordo com relatos dos seus amigos, Vrubel planejava expor essa obra em Paris sob o título Icône, alinhando-a assim claramente aos domínios espiritual e estético da arte religiosa.[46] No próprio nível formal, Vrubel queria que Demônio Caído se assemelhasse com um ícone, e ele aplicou meticulosamente pó metálico de bronze nas asas do demônio, o que captaria a luz ambiente, produzindo o efeito brilhante e reflexivo típico de um ícone. O pintor Konstantin Bogaevsky lembrou que, quando viu a pintura no primeiro dia de sua exibição na exposição de Mundo da Arte (Mir Iskusstva) em 1902,

42. [Ela] Produziu em mim uma forte impressão, que não posso comparar com nenhuma outra. A obra brilhava como se fosse feita de pedras preciosas, de modo que tudo ao seu redor parecia cinzento e sem substância […]. O “Demônio” de Vrubel escureceu severamente, as cores que antes brilhavam na tela empalideceram; o pó de bronze que foi usado para as penas do pavão tornou-se verde […].[47]

43. Referências a Cristo também foram lidas no Demônio Sentado de Vrubel, cuja intensa autorreflexão, mãos entrelaçadas e comovente isolamento em uma paisagem vazia foram frequentemente comparadas à pintura de Ivan Kramskoi intitulada Cristo no deserto (1872), que mostra um Cristo de corpo emaciado e olhar abatido, imerso em pensamentos e contemplando seu destino oneroso em um cenário rochoso e desértico.[48] Em seus últimos anos, Vrubel afirmou admirar muito esta obra, bem como Cristo no Jardim do Getsêmani (1888), de Nikolai Ge, por causa do as qualidades “demoníacas” deste último.[49] A fusão não convencional de Vrubel das fronteiras conceituais e formais entre Cristo e Satã, entre o angélico e o demoníaco, entre o icônico e o profano, bem como entre os temas da redenção e condenação refletem uma mentalidade particularmente moderna e fin-de-siècle, caracterizada pelo sentimento de alienação da experiência cristã e de desintegração de identidades e instituições anteriormente fixas e estáveis, incluindo as da moralidade convencional e do establishment religioso.

44. Além disso, foi precisamente nos anos em que Vrubel começou a trabalhar em seu Demônio, em meados da década de 1880, que ele também produziu uma série de pinturas ilustrando a Paixão de Cristo, que posteriormente destruiu, deixando apenas um esboço a carvão de Cristo no Jardim de Getsêmani (1888). Foi neste momento que Vrubel experimentou pela primeira vez uma espécie de crise religiosa pessoal. Escrevendo à sua irmã Anna em dezembro de 1887, ele queixou-se de que, enquanto trabalhava nas suas pinturas de Cristo “com todas as suas forças,” começou a sentir um profundo sentimento de mal-estar em relação à sua identidade cristã – uma emoção que continuou a atormentá-lo até o final de sua vida e especialmente durante sua doença.[50] Dado o interesse de Vrubel pelos escritos de Nietzsche, parece que, em suas concepções de Cristo, do Demônio e da figura do profeta, ele imaginava um tipo heroico de indivíduo – até mesmo de mártir – cuja rebelião contra a moralidade convencional e as tendências dominantes de sua época espelhariam suas próprias lutas artísticas. Desde os seus anos de universidade, Vrubel rejeitou a religiosidade dominante e especialmente a sua formulação nas obras e teorias de Leo Tolstoy, que, para Vrubel, conduziam à opressão do espírito humano e do impulso criativo. Não está claro se Vrubel se via ou não em termos proféticos como um mártir vanguardista com relação aos gostos artísticos conservadores, mas ele foi certamente compreendido como tal por muitos dos seus contemporâneos, como Aleksandr Blok, Benois e Muratov. Dois dos artigos de Blok – “À Memória de Vrubel” e “Sobre o Estado Atual do Simbolismo Russo” -, implicam a fusão do auto sacrifício e da visão profética como condição para a arte de Vrubel; a mesma ideia foi expressa por Muratov no seu ensaio, “Sobre arte erudita.”[51] De modo similar, no seu artigo de 1910 sobre Vrubel para a revista Rech’, Benois concluiu que “Vrubel era mais do que apenas um artista – ele era um profeta, um vidente, um demônio.”[52]

45. A dedicação de Vrubel ao profético, ao visionário e ao icônico atingiu seu apogeu nos anos que antecederam sua morte prematura em 1910, e quase todas as suas principais obras tardias tratam exclusivamente de assuntos bíblicos e sobrenaturais. Nos anos de 1904 a 1905 ele pintou O Serafim de Seis Asas (1904) [Figura 17], Anjo com Espada (1904), Cabeça de Profeta (1904–05), Profeta (1904–05), Cabeça de João Batista (1905) [Figura 19], e A Visão do Profeta Ezequiel (1906) [Figura 20], entre outras obras. De muitas maneiras, este ciclo final de pinturas religiosas pode ser interpretado como um somatório simbólico, ou culminação, das preocupações estilísticas e temáticas centrais que caracterizaram toda a carreira de Vrubel. Por exemplo, em sua frontalidade icônica, linearidade pronunciada e paleta vívida, a aquarela da Cabeça de João Batista [Figura 19] lembra novamente os murais de São Cirilo, como seu afresco de Moisés e Cabeça de Cristo.

46. De modo análogo, O Serafim de Seis Asas – também conhecido como Azrael ou Anjo da Morte [Figura 17] – remete às pinturas do Demônio de Vrubel em sua impressionante grandeza, monumentalidade e ambígua dualidade. Em termos de iconografia, O Serafim de Seis Asas se assemelha muito ao Demônio Sentado, com seus longos cabelos negros, poderoso pescoço, pele azul-acinzentada, olhos fundos e grandes asas de pavão. Assim como o Demônio de Vrubel, Azrael é uma figura ambígua e conflituosa: coroado com um diadema brilhante e segurando um incensário vermelho brilhante na mão esquerda, o anjo é, por um lado, uma fonte de luz celestial e de salvação; por outro lado, no entanto, ele é simultaneamente o arauto da morte, empunhando uma grande e sinistra adaga na mão direita, que denota sofrimento e intenção destrutiva. Assim como o Demônio que já foi um anjo, Azrael aparece como uma figura liminar que está entre o céu e o inferno, incorporando tanto o angélico quanto o demoníaco, ou a redenção e a danação. Em um nível formal, O Serafim de Seis Asas combina muitas das técnicas que Vrubel usou pela primeira vez em Demônio Sentado e Demônio Caído: o modelado das formas do rosto e pescoço do anjo repete as manchas de cores contrastantes e entrelaçadas que ele usou para construir o corpo volumoso do Demônio Sentado. Em sua regularidade e geometria, esses blocos de tinta lembram ainda mais tesselas de mosaico, e parecem ter sido aplicados com uma espátula, em vez de um pincel [Figura 17, detalhe].

47. Enquanto isso, o redemoinho expressivo de pinceladas cristalinas nas asas e vestimentas do anjo lembra a massa fragmentada e caótica de penas de pavão em Demônio Caído. Medindo 131 por 155 cm, esta obra é uma das maiores pinturas tardias de Vrubel – sua penúltima e comovente tentativa de produzir uma arte religiosa monumental.

48. A Visão do Profeta Ezequiel [Figura 20] é considerada a última obra de Vrubel e aproxima-se da abstração em sua dissolução radical da forma. Executado sobre papelão em técnica mista – carvão, aquarela e guache – retrata uma visão celestial conforme descrita no Livro de Ezequiel do Antigo Testamento. No canto inferior direito da imagem, o rosto de um homem barbudo – presumivelmente Ezequiel – é retratado olhando para um anjo alto e temível, que segura na mão direita uma espada apontando para baixo. Ao lado do anjo está outro rosto masculino que flutua sem um corpo claramente identificável. A pronunciada ambiguidade espacial deste trabalho é produzida por uma multiplicidade de mutáveis fragmentos em camadas, que se estilhaçam em profundidades infinitas e, mesmo assim, insistem em retornar à superfície do plano pictórico. Uma explosão de formas angulares e facetadas desestabiliza a relação figura-fundo, de modo que se torna difícil dizer onde uma forma se projeta para frente e outra recua para o fundo, produzindo um dinâmico efeito geral. A única âncora visual estável em toda a composição é a cabeça escura do anjo no registro central superior da imagem. Se ela não existisse, a mistura de fragmentos de asas, membros e rostos em dissolução criaria uma complicada e desorientadora teia de formas, que se aproxima da abstração mais do que qualquer outra obra tardia de Vrubel.

49. Na verdade, é como se a experimentação inicial de Vrubel com as qualidades “abstratas” da arte russo-bizantina na Igreja de São Cirilo tivesse fechado um círculo e alcançado a sua conclusão mais lógica, tanto em termos de estilo como de tema, anunciando uma nova era na arte russa. O filho de Adrian Prakhov, Nikolai, chegou ao ponto de ver os primórdios do Raionismo – um dos primeiros movimentos de arte abstrata inaugurado por Mikhail Larionov por volta de 1913 – nos estilhaços fragmentados, energéticos e lineares de A Visão do Profeta Ezequiel. Na verdade, o próprio Larionov afirmou que Vrubel exerceu mais influência sobre ele do que Cézanne.[53] Como vários estudiosos escreveram, muitos membros da geração mais jovem de artistas passaram por Kiev no início de 1900 e foram profundamente afetados por seus encontros com as obras de Vrubel em São Cirilo. A visita de Liubov Popova à igreja em 1909 deixou-a “fulminada” pelo talento “incinerador” de Vrubel.[54] Da mesma forma, Aleksandr Rodchenko afirmou que, no início da década de 1910, ele “pintava como Vrubel,” enquanto Vladimir Tatlin valorizava e colecionava avidamente suas obras.[55] Outros talentos da vanguardas em ascensão que encontraram o trabalho de Vrubel em Kiev no início de 1900 incluem Natalia Goncharova, Aleksandra Ekster, Aleksandr Archipenko, David Burliuk e Kazimir Malevich, entre outros.

50. No entanto, é quase impossível determinar em que medida as obras religiosas de Vrubel contribuíram para o advento da abstração na Rússia no novo século. O que fica claro é que a reescrita radical do idioma artístico russo-bizantino por Vrubel, bem como a sua combinação de transcendentalismo formal com inovação visionária, abriu o caminho para artistas como Malevich e Kandinsky, para quem a espiritualidade e a abstração passaram a representar dois lados da mesma moeda modernista. Dmitriev resumiu isso, ao descrever Vrubel como

[…] um artista que conseguiu elevar acima das cabeças de seus contemporâneos a “necessidade” futura da arte […] ele percebeu o seu significado antes, e com mais astúcia, do que qualquer outra pessoa. […] Vrubel, nos últimos anos de sua vida, já havia chegado a uma concepção de arte da qual só agora começamos a nos aproximar. Consequentemente, nossa reavaliação não é o resultado de uma moda do dia. Estamos meramente tentando seguir o caminho que Vrubel nos indicou.[56]

51. Por mais paradoxal que possa parecer, ao abraçar as tradições artísticas do passado, Mikhail Vrubel foi capaz de antecipar muitas das inovações formais e conceituais do futuro. Além disso, na sua natureza taciturna e pouco ortodoxa, as suas pinturas apócrifas resumiam o movimento moderno de afastamento da religião institucionalizada em direção a novas possibilidades espirituais e filosóficas, que seria posteriormente abraçado por uma geração mais jovem de escritores e pensadores como Blok, Mikhail Kuzmin, Dmitry Merezhkovsky, Zinaida Gippius, e Mikhail Bulgakov. De acordo com isso, ao discursar no funeral de Vrubel em 1910, Blok afirmou poeticamente que, em sua arte e em sua vida, Vrubel seguiu “os sons do céu” em vez das “tediosas canções da terra” – sons que inspiraram o artista a produzir o seu icónico Demónio, um “símbolo de sua época.”[57]

Tradução do inglês por Arthur Valle


 

* Maria Taroutina é professora associada de história da arte no Yale – NUS College, em Singapura, e é especializada na arte da Rússia Imperial e do início da União Soviética. Ela doutorou-se em História da Arte pela Universidade de Yale em 2013, onde também concluiu sua graduação em 2006. O presente artigo foi originalmente publicado como: TAROUTINA, Maria. From Angels to Demons: Mikhail Vrubel and the Search for a Modernist Idiom. In: HARDIMAN, Louise; KOZICHAROW, Nicola (ed.). Modernism and the Spiritual in Russian Art. New Perspectives. Cambridge, UK: Open Book Publishers, 2017, p. 37-66.

[1] Mikhail Vrubel, citado em: IAREMICH, Stepan. Mikhail Aleksandrovich Vrubel’; zhizn’i tvorchestvo. Moscou: Knebel’, 1911, p. 55. No original: “Вот к чему в сущности я должен бы вернуться.”

[2] Entre 1887 e 1889, Vrubel produziu muitos esboços para a decoração do interior da Catedral de São Vladimir, em Kiev. Infelizmente, o júri que supervisionou este projeto rejeitou quase todos os desenhos de Vrubel.

[3] PUNIN, Nikolai. Krisunkam M. A. Vrubelia. Apollon, n. 5, mai. 1913, p. 7. Disponível em: https://www.v-ivanov.it/apollon/apollon_1913_05.pdf No original: “В этих работах художник коснулся такой силой духа и прозрения известных проблем живописи, что те немногии страницы которые повествуют о киевском периоде творчества Врубеля, должны, на наш взгляд, возрасти в громадную литературу, всецело посвященную смыслу и значению именно этих композиций.”

[4] Ver: ISDEBSKY-PRITCHARD, Aline. The Art of Mikhail Vrubel (1856–1910). Ann Arbor, MI: UMI Research Press, 1982; DMITRIEVA, Nina. Mikhail Aleksandrovich Vrubel′. Leningrado: Khudozhnik RSFSR, 1984, p. 32–56 e 67–90; ALPATOV, Mikhail. Zhivopisnoe masterstvo Vrubelia. Moscou: Lira, 2000, p. 87–112; GUSAKOVA, Viktoria. Viktor Vasnetsov i religiozno-natsional′ noe napravlenie v russkoi zhivopisi kontsa XIX–nachala XX veka. São Petersburgo: Aurora, 2008, p. 121–49.

[5] Por exemplo, ver a discussão de Dmitrieva sobre as obras religiosas tardias de Vrubel em: DMITRIEVA, op. cit., p. 82–84.

[6] Nas duas primeiras décadas do século XX, muitos artistas russos voltaram-se para a tradição dos ícones como fonte de inspiração pictórica e conceitual. O envolvimento da vanguarda com os ícones oscilou entre uma apropriação primitivista de suas formas, e empréstimos temáticos e iconográficos. Para uma descrição pormenorizada da difundida influência dos ícones na arte russa do início do século XX, consultar: SPIRA, Andrew. The Avant-Garde Icon: Russian Avant-Garde Art and the Icon Painting Tradition. Aldershot, Hampshire; Burlington, VT: Lund Humphries, 2008; GATRALL, Jefferson J. A.; GREENFIELD, Douglas (ed.). Alter Icons: The Russian Icon and Modernity. University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 2010; SHARP, Jane A. Russian Modernism Between East and West: Natal′ia Goncharova and the Moscow Avant-Garde. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 143–95, 221–53; BETZ, Margaret. The Icon and Russian Modernism. Artforum, v. 15, n. 10, verão 1977, p. 38–45; BOWLT, John. Neo-Primitivism and Russian Painting. The Burlington Magazine, v. 116, n. 852, mar. 1974, p. 133–40; MILNER-GULLAND, Robin. Icons and the Russian Modern Movement. In: SMYTH, Sarah; KINGSTON, Stanford (ed.). Icons 88. Dublin: Veritas Publications, 1988, p. 85–96.

[7] Em uma carta à sua irmã Anna, Vrubel menciona que ia à missa católica com o seu pai. Carta de Mikhail Vrubel a Anna Vrubel, out. 1872. Reimpressa em: GOMBERG-VERZHBINSKAIA, P. Vrubel’: Perepiska, vospominaniia o khudozhnike. Leningrado: Iskusstvo, 1976, p. 23.

[8] Anna Vrubel, “Reminiscências sobre o artista,” em: Ibid, p. 154. No original: “Искусство – вот наша религия.”

[9] IAREMICH, op. cit., p. 22

[10] O eminente bizantinista Nikodim Kondakov publicou, em 1881, um álbum fotográfico com cem imagens de mosaicos e miniaturas de manuscritos iluminados oriundos das coleções do Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai. Ver: KONDAKOV, N. P. Vues et antiquités du Sinai par M. le professeur Kondakoff et photographe J. Raoult. Odessa: [s. n.], 1881. No entanto, não é claro se Vrubel teve acesso a essa publicação. Para uma análise mais pormenorizada da carreira e das publicações de Kondakov, ver: SALMOND, Wendy. Ellis H. Minns and Nikodim Kondakov’s The Russian Icon (1927). In: HARDIMAN, Louise; KOZICHAROW, Nicola (ed.). Modernism and the Spiritual in Russian Art. New Perspectives. Cambridge, UK: Open Book Publishers, 2017, p. 165-193.

[11] Para uma história do museu da Academia e de sua coleção, ver: PIATNITSKII, A.  Muzei drevnerusskogo iskusstva Akademii khudozhestv. In: SHANDROVSKAIA, V. S. (ed.). Vizantinovedenie v Ermitazhe. Leningrado: State Hermitage Museum, 1991, p. 14–19.

[12] Para um relato detalhado das expedições de Sevastianov ao Monte Athos e de sua coleção de arte bizantina, ver: PIATNITSKII, A.  P. I. Sevastianov i ego sobranie’, em: Ibid., p. 19–24.

[13] DIDRON, Adolphe; DURAND, Paul. Manuel d’iconographie chrétienne grecque et latine; traduit du manuscrit byzantin “Le Guide de la Peinture.” Paris: Imprimerie Royale, 1845. Ver: KORNILOVA, Anna. Iz istorii Ikonopisnogo klassa Akademii Khudozhestv. In: RAZDOL’SKAIA, Vera (ed.). Problemy razvitiia zarubezhnogo i russkogo iskusstva: sbornik nauchnykh trudov. St Petersburg: Institut Imeni I. E. Repina, 1995, p. 76 [N. do T.: uma versão do manual se encontra disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k112062s]

[14] FURNOAGRAFIOT, Dionisii. Erminiia ili Nastavlenie v zhivopisnom iskusstve, sostavlennoe iermonakhom i zhivopistsem Dionisiem Furnoagrafiotom, 1701–1733 god. Kiev: Tip. Kievopecherskoi Lavry, 1868. Para uma edição mais recente em inglês, ver: HETHERINGTON, Paul (ed.) The “Painter’s Manual” of Dionysius of Fourna: An English Translation [from the Greek] with Commentary of Cod. Gr. 708 in the Saltykov-Shchedrin State Public Library, Leningrad. London: Sagittarius Press, 1974.

[15] GUSAKOVA, op. cit., p. 123.

[16] Há discordância quanto à fonte original destes anjos. Iaremich afirma que Vrubel baseou a composição em fotografias dos mosaicos de Torcello da coleção de Adrian Prakhov. No entanto, o próprio Prakhov conta que Vrubel pintou os anjos depois de ter regressado da sua viagem à Itália, onde tinha visto os mosaicos de Torcello in situ. Ver: IAREMICH, op. cit., p. 54, e PRAKHOV, Nikolai. Stranitsy proshlogo: Ocherki-vospominaniia о khudozhnikakh. Kiev: Obrazotvorchogo-Mistetsva i Muzichnoi Literatury U.S.S.R., 1958, p. 284.

[17] Carta de Mikhail Vrubel para Adrian Prakhov, verão de 1884. Reimpressa em: GOMBERG-VERZHBINSKAIA, op. cit., p. 71.

[18] GABO, Naum. Of Diverse Arts. New York: Pantheon Books, 1962, p. 168–69.

[19] Ibid., p. 48.

[20] MURATOV, Pavel. Vrubel. Moskovskii ezhenedel′ nik, n. 15, 10 abr. 1910, p. 45–50.

[21] Ibid., p. 48.

[22] Ibid.

[23] IAREMICH, op. cit., p. 52. No original: “[…] при помощи орнаментального раположения форм усилить плоскость стены.”

[24] ISDEBSKY-PRITCHARD, op. cit., p. 86.

[25] Ibid., p. 257, nota 51. Sobre coleções russas de arte moderna francesa, ver: KEAN, Beverly Whitney. French Painters, Russian Collectors: The Merchant Patrons of Modern Art in Pre-Revolutionary Russia. Londres: Hodder & Stoughton, 1996; KOSTENEVICH, Albert. Impressionist Masterpieces and Other Important French Paintings Preserved by the State Hermitage Museum. São Petersburgo: Harry N. Abrams, 1995; Morozov, Shchukin: the Collectors: Monet to Picasso: 120 Masterpieces from the Hermitage, St Petersburg, and the Pushkin Museum, Moscow. Bonn: Bild-Kunst, 1993 (catálogo de exposição).

[26] Para uma discussão detalhada do papel cultural e conceitual da moldura e de suas mutáveis funções na arte russa, ver: TARASOV, Oleg. Framing Russian Art: From Early Icons to Malevich. London: Reaktion Books, 2011; para saber mais sobre a moldura em relação ao ícone, ver: TARASOV, Oleg. Spirituality and the Semiotics of Russian Culture: From the Icon to Avant-Garde Art. In: HARDIMAN, Louise; KOZICHAROW, Nicola (ed.). Modernism and the Spiritual in Russian Art. New Perspectives. Cambridge, UK: Open Book Publishers, 2017, p. 115-128.

[27] Para uma discussão detalhada deste assunto, ver SHARP, op. cit., p. 238–253.

[28] Para uma boa análise geral deste tópico, ver: GATRALL, Jefferson J. A. The Real and the Sacred: Picturing Jesus in Nineteenth-Century Fiction. Ann Arbor, MI: University of Michigan Press, 2014, p. 62–89.

[29] Carta de Viktor Vasnetsov para Adrian Prakhov, primavera de 1885. Reimpressa em: KOROTKINA, Liudmila (ed.). Viktor Vasnetsov: pis′ ma, novye materialy. São Petersburgo: Izdatel’stvo ‘ARS’, 2004, p. 58.

[30] SVECHNIKOV, V. Tvorchestvo V. M. Vasnetsova i ego znachenie dlia russkoi religioznoi zhivopisi. Svetil′ nik: religioznoe iskusstvo v proshlom i nastoiashchem, n. 67, 1913, p. 5.

[31] Ibid.

[32] NEWMARCH, Rosa, The Russian Arts. Nova iorque, NY: E. P. Dutton and Company, 1916, p. 224.

[33] DMITRIEV, Vsevolod. Zavety Vrubelia. Apollon, n. 5, mai. 1913, p. 15, Disponível em: https://www.v-ivanov.it/apollon/apollon_1913_05.pdf No original: “Мы – зрители и участники знаменательной переоценки: древнерусская иконопись, еще недавно бывшая для нас мертвой и ненужной, ныне все с большей и большей силой притягивает нас, как родник красоты живой и близкой. Эта переоценка, существенно изменившая наш вкус и требования, коснулась и Врубеля […]. Pосписи Кирилловской церкви, эскизы для Владимирского собора последние «византийские» работы Врубеля, прежде понимаемые только как вступление и заключение к главному московскому периоду творчества художника, нам хочется выдвинуть вперед как основное, как самое жизненное во Врубеле.”

[34] PRAKHOV, N. A. Mikhail Aleksandrovich Vrubel, reimpresso em: GOMBERG-VERZHBINSKAIA, op. cit., p. 187. No original: “Превосходные эскизы показал мне сегодня в соборе Михаил Александрович, но для них надо построить собор совершенно в особенном стиле.”

[35] Para um estudo aprofundado sobre o interesse que Vrubel manteve com relação à Nietzsche, ver: ISDEBSKY-PRITCHARD, Aline. Art for Philosophy’ s Sake: Vrubel Against “the Herd.” In: ROSENTHAL, Bernice Glatzer (ed.). Nietzsche in Russia. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1986, p. 219–48.

[36] BENOIS, Alexandre. Moi vospominaniia. Moscow: Nauka, 1980, v. IV e V, p. 275. No original: “Владимирским собором русские люди той эпохи гордились так, как разве только современники Рафаэля и Микеланджело могли гордиться фресками обоих мастеров в Ватикане […]. Однако, увидав роспись Владимирского собора на месте, я простился с какими-либо иллюзиями. Я был глубоко огорчен […] беда была в том, что [Васнецов] взялся за задачу, которая была ему не по плечу! […] Фальшь, присущая ‘стенописи’ Владимирского собора, не личная ложь художника, а ложь, убийственная и кошмарная, всей нашей духовной культуры. Еще более я был огорчен во Владимирском соборе своим ‘другом’ Нестеровым. Его запрестольная картина, изображающая ‘Рождество Христово’, выдает и ужасающий дурной вкус и нечто сладковатодряблое, что художник пытается выдать за нежно-благоухающее […]. Однако, пoсле того, что я увидал это ‘Рождество’, я понял, что Нестеров безвозвратно потерян для подлинного искусства.”

[37] Ibid., p. 276–77. No original: “Я побывал в […] Кирилловском монастыре, специально для того, чтоб ознакомиться в нем с работами Врубеля. Посвятил я этому обозрению часа три и если и не покинул собор в состоянии какого-то восторга, то все же я был поражен тем, с каким мастерством написаны очень своеобразные ‘местные образа’ в иконостасе […] и с каким, я бы сказал, ‘вдохновенным остроумием’ [Врубель] реставрировал древние фрески […] а местами заново сделал к ним добавления […]. Всюду пиетет к старине гармонично сочетается с порывами творчества свободной фантазии.”

[38] BENOIS, Alexandre. Vrubel′. Mir Iskusstva, n. 10–11, 1903, p. 179. No original: “Но, если-бы Врубелю, вместо Васнецова, досталось воплотить в грандиозных размерах свои замыслы […] то, наверное… единственно у нас, в настоящее время и в целом мире, появились-бы на стенах Божьего храма истинно-живые, истинно-вдохновенные слова.”

[39] Ver: TARABUKIN, Nikolai. Vrubel′. Moscou: Iskusstvo, 1974, p. 135. No original: “В то время, когда Врубель приступал к своим работам [в Kиеве], не было тех реставрационных открытий […], ни тех исследований о древней стенописи, которые доступны ныне нам. Перелом во взглядах на прошлое русского жусства произошел после Врубеля. В своем творчестве Врубель сам оказался пионером наследия русско-византийского искусства, в результате чего былое предстало взору современности совершенно в ином виде.”

[40] KOGAN, Dora. M. A. Vrubel′. Moscou: Iskusstvo, 1980, p. 72.

[41] Carta de Aleksandr Vrubel para Anna Vrubel, 11 set. 1886. Reimpressa em:  GOMBERG-VERZHBINSKAIA, op. cit., p. 118.

[42] TARABUKIN, op. cit., p. 21.

[43] IAREMICH, op. cit., p. 54.

[44] Nina Dmitrieva data a obra de 1887 e chama-a de Cabeça de um Anjo (ver: DMITRIEVA, op. cit., p. 52). Petr Suzdalev também identifica esta obra como Cabeça de um Anjo, mas data-a de 1889 (ver: SUZDALEV, Petr. Vrubel′. Moscou: Sovetskii khudozhnik, 1991, p. 158). Enquanto isso, Irina Shumanova e Evgeniia Iliukhina identificam o mesmo desenho como Cabeça de Demônio, e datam-no de 1890 (ver: SHUMANOVA, Irina; ILIUKHINA, Evgeniia. “Prorok i mechtatel″: M. A. Vrubel′ i V. E. Borisov-Musatov. Nashe Nasledie, n. 77, 2006, p. 140–57. [N. do T.: Disponível em: http://www.nasledie-rus.ru/podshivka/7718.php].

[45] O desenho foi intitulado O Demônio na revista Apollon, n. 5 (maio de 1913), e O Serafim no catálogo da exposição de Vrubel na Galeria Estatal Tretyakov de 1957 (ZHIVOVA, O. A. (ed.). Mikhail Aleksandrovich Vrubel’: Vystavka Proizvedennii. Moscou: Iskusstvo, 1957 (catálogo de exposição), p. 160), e no catálogo de 1976 da exposição “Le Symbolisme en Europe” (Le Symbolisme en Europe: Exposition Rotterdam, Museum Boymans-van Beuningen. Paris: Editions des Musées Nationaux (catálogo de exposição), p. 240.

[46] KENNEDY, Janet. Lermontov’ s Legacy: Mikhail Vrubel’s Seated Demon and Demon Downcast. Transactions of the Association of Russian-American Scholars in the US, v. 15: On Russian Art. Nova Iorque: Association of Russian-American Scholars in the USA, 1982, p. 176.

[47] Carta de Konstantin Bogaevskii para Sergei Durylin, 12 jan. 1941. Citado em: DURYLIN, Sergei. Vrubel′ i Lermontov. Literaturnoe Nasledstvo, n. 45–46, 1948, p. 594. No original: “Впечатление она произвела на меня большое, ни с чем несравнимое. Она сияла точно драгоценными каменьями, и все остальное на выставке рядом с нею казалось таким серым и незначительным […]. ‘Демон’ Врубеля сильно почернел, сияющие когда-то краски на холсте потухли; бронзовый порошок, который был вкраплен в павлиньи перья позеленел […].”

[48] ISDEBSKY-PRITCHARD, op. cit., p. 100; ALLENOV, Mikhail. Mikhail Vrubel′. Moscou: Slovo, 1996, p. 87.

[49] ISDEBSKY-PRITCHARD, op. cit., p. 97.

[50] Ibid., p. 77.

[51] BLOK, Aleksandr. Pamiati Vrubel′ ia. Iskusstvo i pechatnoe delo, n. 8–9 1910, p. 307–309; BLOK, Aleksandr. О sovremennom sostoianii russkogo simvolisma. Apollon, n. 8, 1910, p. 21–30; MURATOV, Pavel. O vysokom khudozhestve. Zolotoe runo, n. 12, 1901, p. 75–84.

[52] BENOIS, Alexandre. Vrubel′. Rech, n. 91, abr. 1910. Reimpresso em: PODKOPAEVA, Iu. N. et al. (ed.). Aleksandr Nikolaevich Benua: Khudozhestvennye Pis′ ma, 1908–1917, Gazeta ‘Rech′’. Vol. I: 1908–1910. São Petesburgo: Sad Iskusstv, 2006, p. 411.

[53] ISDEBSKY-PRITCHARD, op. cit., p. 88.

[54] SARABIANOV, Dmitry; ADASKINA, Natalia. Popova. Nova Iorque: Harry N. Abrams, Inc., 1990, p. 14.

[55] KARGINOV, German. Rodchenko. London: Thames & Hudson, 1979, p. 10; RUDNEVA, Liubov′. Vladimir Tatlin – Tridtsatye gody. In: HARTEN, Jürgen (ed.). Vladimir Tatlin: Leben, Werk, Wirkung: ein internationales Symposium. Cologne: Dumont, 1993, p. 462.

[56] DMITRIEV, op. cit., p. 15. No original: “Художник, провидящий через головы современников будущее ‘нужное’ в искусстве […] он и раньше всех, и верней всех, осознал свое значение. […] Врубель в последние годы жизни подошел к тому же толкованию смысла искусства, к которому ныне подходим мы. Таким образом наша переоценка – не результат моды дня. Мы лишь пытаемся следовать по пути, указанному самим Врубелем.”

[57] BLOK, op. cit., p. 308.