FONTES – Burle Marx e o jardim moderno: a vegetação como elemento estético e de identidade

Pollyana Martins da Silva[1] e Joelmir Marques da Silva[2]

Como citar: SILVA, Pollyana Martins da; SILVA, Joelmir Marques da. Burle Marx e o jardim moderno: a vegetação como elemento estético e de identidade. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVIII, 2023. https://doi.org/10.52913/19e20.xviii.01 

•     •     •

[…] a variedade immensa de plantas que nos offerecem nossas matas magnificas […] urge que se comece, desde já, a semear, nos nossos parques e jardins, a alma brasileira. (Roberto Burle Marx, in Diario da Tarde, 1935, p.1)

Com Roberto Burle Marx, nasce, no Recife, o jardim moderno. São produtos, conforme, Sá Carneiro et al. (2005), de sua formação artística, que inclui conhecimentos sobre história, botânica (principalmente da vegetação nativa), pintura, escultura, música e arquitetura e de suas impressões sobre a paisagem [Figura 1].

Michel Racine (1994), ao analisar as obras de Burle Marx ressalta que elas são um meio para a retomada do fio da história dos jardins. Ele lança pontes sobre a fratura de uma época em que a paisagem e o jardim, e principalmente esse último, só tinham sentido para um número restrito de pessoas:

[…] Na medida de sua evolução, de seu conhecimento das plantas e da evolução da ideia de natureza […] aumenta ele [Burle Marx] sem cessar a paleta vegetal do jardineiro chegando mesmo a tornar-se portador, em seu país, de um olhar ecológico. (RACINE, 1994, p. 114)

A vegetação nativa, mais precisamente as cactáceas, foi largamente empregada e exaltada no Brasil durante o movimento moderno de forma a imprimir a brasilidade (a “alma brasileira,” referida por Burle Marx na epígrafe acima). Essa representação está na literatura de Manuel Bandeira, nas pinturas de Tarsila do Amaral e Lasar Segall, assim como no paisagismo de Mina Klabin Warchavchik para as casas modernistas de Gregori Warchavchik [Figura 2] (SILVA, 2020), e, anos mais tarde, figuraria nas obras de Burle Marx [Figura 3]. Para Tarsila do Amaral, “a natureza é nossa maestra: quanto mais o artista se aproxima dela, tanto mais perfeito será. Sem a pretensão de imitar [a natureza] criamos humildemente, nos limites de nossa capacidade intelectual. Fazendo assim, continuamos apenas o trabalho da natureza” (UMA PINTORA, 1928, p. 3).

Com Burle Marx, o Brasil intensificou a produção de jardins, principalmente na década de 1930, evocando os princípios de movimento moderno. Tal condição marcou um período da história da arte dos jardins a ponto de Racine (1994, p. 114) dizer que o “[…] mais surpreendente no modernismo brasileiro é que é um movimento-modernista com jardim”. Como afirma o próprio Burle Marx:

Um jardim é um complexo de intenções estéticas e plásticas; e a planta para um paisagista, não é somente uma planta – rara, inusitada, banal ou destinada a desaparecer – porque é também côr, fôrma, volume ou um arabesco em si mesma. É uma pintura para um quadro de duas dimensões que faço para um jardim na prancheta de meu atelier; é a escultura ou o arabesco para um jardim […] A grande diferença entre a pintura, bidimensional, e a paisagem construída em três dimensões é que a última não é estática. O próprio ciclo da folhagem, floração, das sementes, ou um golpe de vento, uma nuvem, um aguaceiro, ou uma tempestade encarregam-se de alterar sua côr ou a própria estrutura. (MARX apud MAURÍCIO, 1962, p.1) [Figura 4]

É nesse sentido, que apresentamos abaixo a transcrição de um texto inédito online de Roberto Burle Marx, presente na Revista Municipal de Engenharia de 1949, mantendo a norma culta da língua portuguesa da época. O texto revela um Burle Marx mergulhado nas questões da arquitetura moderna com jardim, onde o paisagismo assumia, para além da função estética, a de aproximar as pessoas da natureza, assim como de preservar as espécies nativas.

MARX, Roberto Burle. Jardins. Revista Municipal de Engenharia, Distrito Federal, v. 16, n. 1, jan.-mar. 1949, p. 13.

JARDINS

Roberto Burle Marx

Paisagista

Não se faz, cria-se um jardim. É, como em toda criação artística, deve-se trabalhar com os elementos formas, côres, ritmo e volume, cheios e vazios. Daí, minha idéia do que deveria e poderia ser um jardim, do ponto de vista estético, vindo da pintura abstrata. Na criação de meus jardins, a planta toma um valor puramente plástico, pela côr, textura e volume. Muitas vezes também, encaro a planta como uma escultura, um volume lançado no espaço. Para melhor compreendê-la sob estes aspectos, basta mudarmos de ponto de observação, a fim de melhor sentir as formas variadas de seus perfis.

Entretanto, o jardim deve preencher funções outras, além das puramente estéticas.

Segundo os arquitetos modernos, o jardim pode ser considerado como a continuação, o prolongamento da habitação e é na verdade o que se pode chamar a habitação ao ar livre. Assim, o jardim condensa, naturalmente, a transição perfeita da arquitetura à natureza não disciplinada, estabelecendo ao mesmo tempo uma ligação entre o homem e a paisagem que o circunda, pelo emprego de plantas características da região. Devido ao seu tipo, traço de união entre a arquitetura e a natureza de um lado, e entre o homem e a paisagem do outro, faz-se necessário que o jardim corresponda ao panorama local.

Isso não significa que o jardim seja uma imitação da natureza, mas também exclue a idéia de “um jardim à francesa”, aqui no Brasil. Evidentemente, quanto aos jardins, também, as idéias não são mais aquelas dos tempos de Luiz XIV e o jardim moderno deve acompanhar e exprimir o pensamento contemporâneo.

Existem elementos absolutamente indispensáveis a um jardim, tais como a pedra, a água, etc.

Não utiliso a água unicamente como elemento estático (espelho) ou essencialmente arquitetônico (repuxo), mas de um modo bem mais dinâmico como corresponde a sua função vivificante e regeneradora.

Atribuo uma grande importância ao efeito de uma estátua, porque sua imobilidade serena se acentúa, contrastando com o dinamismo e as transformações perpétuas da vegetação.

Jamais poderia ser criado um jardim, tratando-se de maneira isolada os diversos elementos que compõem o conjunto.

Há plantas cujas características essenciais não se revelam senão quando colocadas em grandes massas; outras, exigem isolamento. As relações de dimensões e formas, côres e “materiais”, devem ser observadas rigorosamente, para que se obtenha os contrastes ou as harmonias desejadas. Nada de mais apaixonante que formar um conjunto cromático perfeito, pelo emprêgo judicioso dos elementos de côres diversas; o que quer dizer que visto cada um, isoladamente, ficaria inexpressivo ou de um efeito pouco harmonioso.

Não falemos senão de passagem do alto valor educativo de um jardim bem realizado e o quanto pode revelar de amor à natureza. Mas, insistamos no papel importante que o jardim pode ter para a preservação de numerosas espécies, infalivelmente condenadas ao desaparecimento, pelo espirito de lucro e especulação da sociedade de nossos tempos, que, dia a dia, concorre mais para a diminuição das formações naturais.

Entre as múltiplas e importantes funções que possue um jardim, o papel conservador não é o mais desprezível de todos.

Como em tôdas as artes, o jardim também obedece, na sua criação, aos mesmos princípios básicos do fator mínimo de equilíbrio, compreensão e harmonia, o que se pretende obter é um máximo efeito quanto ao seu resultado prático. Há uma radiação de determinados efeitos, que, tal como se procede num quadro, num poema ou numa sinfonia, percebe-se que atingem seu ponto máximo e florescem para a cristalização definitiva da obra de arte: neste momento, captadas essas forças de harmonia, côr e rítmo, o jardim está pronto. Não monótono nem passivo à vista; ao contrário, há nele um elemento de surpresa que garante seu mistério e sua vida.

Referências

MARX, Roberto Burle. A vida na cidade: a reforma dos jardins públicos do Recife. Diario da Tarde, Recife, 22 abr. 1935, p. 1.

MARX, Roberto Burle. Jardins. Revista Municipal de Engenharia, Distrito Federal, v. 16, n. 1, jan.-mar. 1949, p. 13.

MAURÍCIO, Jayme. Burle Marx e a renovação do jardim. Correio da Manhã, 18 jul. 1962, p. 1.

MODERNIZA-SE a nossa architectura: Uma realização completa que representa muito bem o conceito de renovação artística. Diario Nacional, 17 jun. 1928, p. 8.

RACINE, Michel. Roberto Burle Marx, o elo que faltava. In: LEENHARDT, Jacques (org.). Nos jardins de Burle Marx. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 105-117.

SÁ CARNEIRO, Ana Rita; SILVA, Aline Figuerôa; MAFRA, Fátima. A paisagem do sertão no jardim de Burle Marx. Olinda: Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada – textos para discussão (Série Identificação do Patrimônio), 2007.

SILVA, Joelmir Marques da. O restauro da Praça Euclides da Cunha: a paisagem sertaneja de volta ao jardim. Revista patrimônio e memória. v. 16, n. 2, p. 221-243, 2020.

UMA PINTORA paulista em Paris: Tarsila do Amaral faz vehemente defesa do modernismo. O Jornal, 9 dez. 1928, p. 3.

[1] Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Pesquisadora do Laboratório da Paisagem (UFPE). Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco. E-mail: pollyana.martins123@gmail.com

[2] Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano. Pesquisador do Laboratório da Paisagem. Membro do International Scientific Committee on Cultural Landscapes (ISCCL – ICOMOS-IFLA), do CIPA Heritage Documentation e do International Council of Monuments and Sites (ICOMOS-BRASIL). E-mail: joelmir_marques@hotmail.com