Anita Malfatti retratista: estratégias de profissionalização no circuito artístico paulistano (1930-1940)

Morgana Souza Viana*

Como citar: VIANA, Morgana Souza. Anita Malfatti retratista: estratégias de profissionalização no circuito artístico paulistano (1930-1940).  19&20, Rio de Janeiro, v. XX, 2025. DOI: 10.52913/19e20.xx.09. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/19_20/artigo/anita-malfatti-retratista/

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Introdução

1. A trajetória de Anita Malfatti é frequentemente associada ao modernismo brasileiro e à célebre Semana de Arte Moderna de 1922, evento no qual seu nome se consolidou como símbolo da ruptura com os padrões acadêmicos da arte no Brasil. Contudo, nas décadas de 1930 e 1940, Malfatti seguiu uma trajetória distinta daquela usualmente atribuída à vanguarda artística. Atuando de maneira estratégica como retratista em São Paulo, ela conciliou suas ambições estéticas com as necessidades do mercado e com as expectativas sociais e de gênero impostas às mulheres artistas. Neste período, o retrato – muitas vezes considerado um gênero menor, periférico às inovações da arte moderna – constituiu, para Malfatti, não apenas um meio de subsistência, mas também um espaço de construção de sua identidade profissional e de inserção ativa no circuito artístico paulistano.

2. Este estudo propõe um deslocamento do olhar tradicional sobre Anita Malfatti, privilegiando a análise de sua produção como retratista profissional durante os anos 1930 e 1940 – momento marcado pela crescente profissionalização e institucionalização do campo artístico em São Paulo, com o fortalecimento dos salões de arte, das associações de artistas, da crítica especializada e das relações com o mercado. A investigação parte de um conjunto de 35 retratos a óleo realizados pela artista no período e abrange também fontes documentais, como correspondência pessoal, catálogos de exposições e matérias jornalísticas.

3. A partir desse corpus, três eixos principais estruturam a pesquisa. O primeiro traz uma breve história do retrato na carreira de Anita Malfatti, desde suas primeiras experimentações no início do século XX até a consolidação do gênero em sua prática nos anos 1930. Essa reconstrução evidencia como o retrato, longe de representar um recuo ou concessão à tradição, revela uma artista atenta às demandas do campo artístico e às possibilidades de negociação simbólica e material que o gênero oferecia.

4. O segundo eixo investiga os vínculos sociais e profissionais entre a artista e seus retratados, classificados em três grandes grupos: amigos próximos, alunos e figuras públicas. A análise dessas redes de sociabilidade revela como Malfatti acionava relações pessoais, afetivas e institucionais para garantir visibilidade, acesso a comissões e participação em exposições. Comparações pontuais com a atuação de Candido Portinari, também retratista no período, permitem destacar tanto as semelhanças quanto as especificidades da experiência feminina no mercado de arte – sobretudo em relação à construção da autoridade artística e à distribuição de prestígio entre os gêneros.

5. O terceiro eixo focaliza a presença dos retratos de Malfatti em exposições coletivas e individuais, identificando as estratégias adotadas pela artista para manter-se em evidência no circuito paulistano. A pesquisa mostra que, mesmo diante das dificuldades de inserção plena num campo ainda dominado por homens, Malfatti participou ativamente da vida artística da cidade, seja expondo em salões oficiais e privados, seja atuando como professora e mentora de jovens artistas.

6. Do ponto de vista teórico-metodológico, a pesquisa articula contribuições da sociologia da arte, especialmente a partir de Pierre Bourdieu, com os estudos de gênero e a história social da arte. Tal abordagem permite compreender a atuação de Anita Malfatti como um processo complexo de negociação entre autonomia e condicionamentos estruturais – sociais, econômicos e simbólicos. A artista emerge, assim, não como figura marginalizada pela história da arte moderna, mas como agente lúcida, que soube manejar com inteligência os recursos disponíveis para afirmar sua presença em um campo em transformação.

7. Ao centrar-se no período menos estudado da trajetória de Malfatti, esta investigação contribui para uma compreensão mais ampla e matizada da profissionalização das mulheres nas artes visuais no Brasil. Mais do que um “recuo” da vanguarda, sua atuação como retratista nos anos 1930 e 1940 evidencia a complexidade das trajetórias artísticas femininas, frequentemente atravessadas por exigências sociais contraditórias, mas também marcadas por criatividade, estratégia e resistência.

Referencial teórico

8. Para compreender a atuação de Anita Malfatti como retratista em um momento de transição no campo artístico brasileiro, este artigo dialoga com três vertentes principais: a sociologia da arte, os estudos de gênero e a história social da arte no Brasil.

9. A abordagem sociológica é ancorada nos conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu, especialmente sua teoria dos campos sociais.[1] O campo artístico é entendido como um espaço relativamente autônomo, estruturado por disputas simbólicas entre agentes que buscam legitimidade por meio da acumulação de diferentes formas de capital: econômico, cultural, social e simbólico. A noção de habitus também é fundamental para pensar como as disposições individuais de Malfatti – suas estratégias, escolhas estéticas e trajetórias – se articularam com as estruturas do campo artístico paulistano em processo de profissionalização.

10. Complementarmente, os estudos de gênero são mobilizados para problematizar o lugar ocupado por mulheres no meio artístico, especialmente em um período em que os espaços institucionais ainda eram marcadamente masculinos. Autoras como Linda Nochlin[2] – que questiona “por que não houve grandes artistas mulheres?” – e Griselda Pollock,[3] com sua crítica à invisibilização das mulheres nas narrativas da história da arte, oferecem fundamentos teóricos para analisar os obstáculos e as estratégias que mulheres como Malfatti utilizaram para afirmar-se profissionalmente.

11. Por fim, a história social da arte brasileira fornece o pano de fundo necessário para situar a atuação de Malfatti no tempo e no espaço. Pesquisadoras como Ana Paula Cavalcanti Simioni[4] tem contribuído para uma releitura crítica do modernismo brasileiro, evidenciando tanto sua dimensão institucional quanto suas contradições internas – especialmente no que se refere à atuação das mulheres no movimento. Essas autoras ajudam a compreender como o modernismo, longe de ser um projeto homogêneo, envolvia diferentes agentes, linguagens e estratégias, muitas vezes contraditórias entre si.

12. Essa triangulação teórica permite analisar Malfatti não apenas como uma figura isolada, mas como uma agente inserida em um campo de forças, onde as fronteiras entre arte e mercado, vanguarda e tradição, visibilidade e marginalização, eram constantemente negociadas.

Anita Malfatti no circuito artístico paulista

13. Durante as décadas de 1930 e 1940, o campo artístico paulistano passou por um processo de profissionalização e institucionalização marcado pela consolidação de galerias, salões oficiais e escolas de arte.[5] Nesse contexto, Anita Malfatti encontrou formas de se manter ativa como artista, mesmo afastada dos círculos modernistas mais hegemônicos da época. Sua atuação nesse circuito não seguiu o percurso da vanguarda, mas tampouco foi periférica: ela assumiu uma posição singular, aliando competência técnica, prestígio simbólico e rede social para ocupar um lugar relevante como retratista.

14. Embora associada à ruptura estética promovida nos anos 1920, a artista passou a frequentar salões tradicionais e espaços que valorizavam o retrato como gênero artístico comercialmente apreciado pela elite paulistana. Malfatti manteve relações com instituições, como a Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM), ao mesmo tempo em que se aproximava de círculos sociais que demandavam retratos como forma de distinção e memória familiar.

15. Essas relações não eram apenas artísticas, mas também econômicas e sociais. A artista transitava entre o prestígio simbólico de sua trajetória modernista e a necessidade de adaptar sua produção ao gosto de uma clientela conservadora. O retrato, nesse sentido, tornou-se uma estratégia de inserção no mercado e uma forma de reafirmar sua posição como mulher artista em um meio restrito e majoritariamente masculino.

16. Ao adotar esse caminho, Malfatti reafirmou sua condição de agente ativa dentro do campo artístico, negociando entre inovação e tradição, arte e mercado, em uma cidade marcada pela modernização urbana e pelo crescimento de sua burguesia industrial. Sua atuação evidencia as complexas mediações que artistas – especialmente mulheres – precisavam realizar para garantir visibilidade e sobrevivência profissional.

O retrato como estratégia de sobrevivência

17. Durante as décadas de 1930 e 1940, Anita Malfatti adotou o retrato como uma estratégia de sobrevivência profissional no campo artístico paulista. Embora tenha sido uma das pioneiras do modernismo no Brasil, sua produção retratística nesse período revela uma adaptação às demandas do mercado e às expectativas da elite paulistana. Essa fase de sua carreira demonstra sua habilidade em transitar entre a vanguarda e a tradição, utilizando o retrato como meio de afirmação artística e profissional.

18. A produção de retratos por Malfatti nesse período foi significativa, refletindo sua inserção no circuito artístico da época. Obras como o Retrato de A.M.G (1933), Retrato de Dora (1934) e Retrato de Nonê (1935) [ Figura 1 ] exemplificam essa fase. Essas pinturas apresentam características estilísticas que dialogam com influências de Cândido Portinari, evidenciando uma transição em sua abordagem artística. O uso de formas robustas e cores vibrantes, típicas do estilo portinaresco [ Figura 2 ], é evidente nessas obras, indicando uma adaptação de Malfatti às tendências artísticas da época.

19. Um exemplo notável é o referido Retrato de Nonê, onde Malfatti apresenta uma figura com proporções exageradas, destacando a cabeça em relação ao corpo. Essa escolha estilística confere à obra uma monumentalidade que remete ao estilo de Portinari, ao mesmo tempo em que mantém a sensibilidade e a delicadeza características de Malfatti. A pintura transmite uma sensação de introspecção e profundidade psicológica, características que se tornaram marcas registradas de sua produção retratística.

20. Além das influências estilísticas, a escolha dos modelos também reflete a estratégia de Malfatti em se inserir no mercado artístico. Retratar membros da elite paulistana e figuras proeminentes da sociedade local não apenas ampliava sua rede de contatos, mas também garantia a demanda por suas obras. Essa abordagem estratégica permitiu a Malfatti manter sua relevância no cenário artístico, mesmo em um período de transição e desafios econômicos.

21. Um exemplo é o retrato de Carolina da Silva Telles [ Figura 3 ]. Carolina era filha da famosa mecenas do campo artístico de São Paulo, Dona Olívia Guedes Penteado,[6] e esposa de Goffredo da Silva Telles que, em 1932, se tornaria prefeito da cidade de São Paulo. Carolina, ao recontar como seu retrato foi realizado, menciona um incidente em que interveio junto ao Mackenzie College para que Anita fosse contratada como professora. Desta forma, é possível visualizar os processos de negociação que Malfatti estava inserida dentro de seu campo social.

22. Em suma, o retrato, assim como as aulas, tornou-se para Anita Malfatti não apenas uma fonte de sustento, mas também uma plataforma para afirmar sua identidade artística em um contexto de mudanças e desafios. Sua habilidade em adaptar-se às demandas do mercado, sem perder sua essência criativa, é um testemunho de sua resiliência e visão artística.

Gênero e profissionalização

23. A trajetória de Anita Malfatti como retratista nas décadas de 1930 e 1940 precisa ser compreendida também à luz das dinâmicas de gênero que moldavam o campo artístico brasileiro da época. Apesar de ser uma das figuras centrais do modernismo nacional, sua condição de mulher impôs obstáculos específicos à sua plena inserção e valorização no meio artístico. A atuação como retratista, além de uma estratégia de sobrevivência econômica, pode ser vista como um caminho possível e socialmente aceitável para que uma mulher artista garantisse sua presença pública e profissional.

24. O campo das artes plásticas no Brasil, ainda fortemente dominado por homens nas primeiras décadas do século XX, oferecia às mulheres oportunidades limitadas. Como apontam estudiosas como Griselda Pollock e Linda Nochlin, a construção histórica da figura do “gênio artístico” estava profundamente ligada à masculinidade, o que relegava às mulheres uma posição secundária – frequentemente associada à prática amadora ou à arte aplicada. Nesse contexto, a escolha de Malfatti pelo retrato pode ser interpretada não apenas como uma adequação ao gosto da elite, mas também como uma estratégia de inserção possível dentro dos limites socialmente impostos às mulheres.

25. Além disso, a prática do retrato estava historicamente ligada ao espaço doméstico e à intimidade familiar, o que tornava essa forma de arte mais “aceitável” para mulheres. Malfatti soube explorar essa brecha, transformando o retrato em uma linguagem profissionalizada e capaz de circular em salões, exposições e coleções particulares. Sua produção nesse gênero contribuiu para reconfigurar as fronteiras entre arte pública e arte privada, ao mesmo tempo em que afirmava sua presença no mercado artístico.

26. O retrato, nesse caso, era também um espaço de negociação simbólica: permitia que Malfatti preservasse aspectos de sua identidade como artista moderna – em sua liberdade cromática e expressividade formal – enquanto respondia às convenções sociais que exigiam discrição e contenção da mulher artista. A construção de uma carreira sustentada por retratos revela, portanto, as formas pelas quais as mulheres conseguiam profissionalizar-se em um campo que historicamente lhes era hostil, mediante a combinação de talento, rede social e adequação estratégica às normas de gênero.

27. Por fim, o apagamento posterior de sua atuação como retratista nos discursos hegemônicos sobre o modernismo brasileiro também pode ser lido como um sintoma dessas tensões de gênero. A valorização da ruptura, da inovação formal e da “grande arte” – critérios frequentemente mobilizados para legitimar as vanguardas – acabou por marginalizar produções vistas como mais “convencionais” ou “comerciais”, especialmente quando realizadas por mulheres. Recuperar essa dimensão da trajetória de Malfatti é, portanto, não apenas um gesto historiográfico, mas também político, no sentido de ampliar o reconhecimento das múltiplas formas de atuação profissional das mulheres no sistema da arte.

Considerações finais

28. A análise da atuação de Anita Malfatti como retratista entre as décadas de 1930 e 1940 permite reavaliar sua trajetória para além do lugar consagrado – e muitas vezes cristalizado – como ícone do modernismo brasileiro. Longe de se tratar de um momento de declínio artístico, esse período evidencia uma artista estrategicamente inserida no circuito cultural de São Paulo, atenta às exigências do mercado e às possibilidades de afirmação profissional em um meio ainda restrito às mulheres.

29. O retrato, enquanto linguagem artística e produto cultural, foi mobilizado por Malfatti como instrumento de sustentação financeira e também como veículo de expressão estética. A escolha por esse gênero não pode ser lida apenas como submissão a convenções tradicionais, mas como resposta inteligente às tensões que perpassavam o campo artístico naquele momento. A artista soube conciliar sua formação moderna com os códigos de representação mais aceitáveis para uma clientela conservadora, o que lhe garantiu certa estabilidade e visibilidade no circuito artístico.

30. Além disso, o artigo mostra que a profissionalização de mulheres artistas como Malfatti envolvia a constante negociação entre talento, redes sociais e limitações de gênero. Em um contexto no qual os espaços de consagração e as narrativas históricas eram dominados por homens, o sucesso de uma mulher no campo da arte exigia não apenas competência técnica, mas também uma cuidadosa leitura das possibilidades simbólicas e sociais à sua disposição.

31. Revalorizar esse momento da carreira de Anita Malfatti implica expandir o entendimento do que constitui a “obra relevante” de uma artista. Significa também revisitar os critérios de julgamento adotados pela historiografia da arte, questionando os silêncios e apagamentos que recaem sobre produções ligadas ao mercado, ao retrato, ou ao universo feminino.

32. Por fim, o estudo contribui para a construção de uma história da arte brasileira mais ampla e inclusiva, que reconheça as múltiplas formas de atuação de suas artistas. O caso de Malfatti – ao mesmo tempo excepcional e representativo – convida a novas investigações sobre a presença feminina no sistema da arte e sobre os modos pelos quais elas resistiram, criaram e se afirmaram em espaços adversos. Seu legado como retratista, longe de ser marginal, deve ser incorporado de maneira integral à sua trajetória artística e ao próprio entendimento do modernismo brasileiro.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Crítica de arte no Brasil: séculos XIX e XX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

LOUREIRO, Maria Lúcia. A construção do campo artístico no Brasil: instituições, crítica e ensino de arte. São Paulo: EDUC, 2001.

MACHADO, Aracy A. Amaral. Artes plásticas na Semana de 22. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? In: MULVEY, Laura et al. Arte e feminismo. São Paulo: Cosac Naify, 2002. p. 145-158.

POLLOCK, Griselda. Vision and difference: feminism, femininity and the histories of art. London: Routledge, 1988.

REILY, Maura. Curadoria feminista e justiça social. In: OLIVEIRA, Ana Beatriz et al. (Org.). Arte, gênero e feminismos: debates contemporâneos. São Paulo: Zouk, 2016. p. 99-116.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres Modernistas: Estratégias de Consagração na Arte Brasileira. São Paulo: Edusp, 2023.

VIANA, Morgana Souza. Anita Malfatti retratista: viver de arte na São Paulo dos anos 1930-1940. 2020. Dissertação (Mestrado em Estudos Brasileiros) – Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

 


 

* Mestre pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Possui Graduação em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É formada pelo curso Técnico em Museologia do Centro Paula Souza. Atuou como documentalista no Arquivo IEB-USP nas coleções Marta Rossetti Batista, Mário de Andrade e Aracy Amaral. Atuou como documentalista pela empresa Expomus no Centro de Memória do Museu Judaico de São Paulo. De 2020 a 2022, foi assistente de museologia do setor de Processos Museológicos do Museu da Inclusão. E, mais recentemente, atuou como técnica em museologia na Almeida e Dale Galeria de Arte. Atualmente é prestadora de serviço como arquivista no Complexo Theatro Municipal. O presente artigo é uma versão mais resumida da dissertação intitulada Anita Malfatti retratista: viver de arte na São Paulo dos anos 1930-1940, defendida em 2020 sob orientação da Profª Drª Ana Paula Cavalcanti Simioni. Link da dissertação: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-10022021-180131/pt-br.php.

[1] A teoria dos campos sociais, desenvolvida por Pierre Bourdieu, propõe que a sociedade é composta por diferentes “campos” relativamente autônomos – como o campo artístico, o campo político, o campo jurídico – nos quais os agentes sociais disputam posições e formas de capital (econômico, cultural, social e simbólico). Cada campo possui suas próprias regras, hierarquias e mecanismos de consagração, sendo estruturado pela relação entre os que detêm maior poder ou prestígio e os que buscam ascender. No campo artístico, essa dinâmica se expressa nas disputas por legitimidade estética, reconhecimento crítico e inserção institucional. Aplicada à trajetória de Anita Malfatti, essa perspectiva permite compreender como a artista negociou sua posição num campo em processo de profissionalização, articulando estratégias de visibilidade, reconhecimento e sobrevivência financeira.

[2] Os trabalhos pioneiros de Linda Nochlin inauguraram uma virada crítica na história da arte ao questionarem as estruturas institucionais, sociais e ideológicas que historicamente marginalizaram a produção artística de mulheres. Em seu ensaio seminal Why Have There Been No Great Women Artists? (1971), Nochlin argumenta que a ausência de mulheres no cânone artístico não se deve à falta de talento individual, mas sim às restrições impostas pelo sistema patriarcal das artes – como o acesso desigual à formação, aos espaços de consagração e às redes de poder. Sua abordagem desafia a ideia de genialidade como categoria neutra e propõe uma reavaliação crítica das narrativas historiográficas tradicionais, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento dos estudos de gênero na história da arte.

[3] Griselda Pollock é uma das principais teóricas feministas da história da arte, cujas pesquisas aprofundam as relações entre gênero, poder e representação artística. Seu trabalho destaca como as estruturas patriarcais moldam não apenas a produção e recepção das obras de arte, mas também os discursos que definem o que é considerado arte legítima. Em obras como Vision and Difference (1988), Pollock investiga as maneiras pelas quais as experiências das mulheres – tanto artistas quanto espectadoras – são sistematicamente excluídas ou marginalizadas nas narrativas canônicas, propondo uma abordagem interdisciplinar que articula teoria feminista, psicanálise e estudos culturais. Sua contribuição é fundamental para entender a arte em seu contexto social e político, desafiando as categorias tradicionais e abrindo espaço para histórias mais inclusivas.

[4] Ana Paula Cavalcanti Simioni é uma importante historiadora da arte brasileira, reconhecida por suas contribuições no campo dos estudos de gênero e da arte moderna e contemporânea no Brasil. Seus trabalhos investigam as experiências e estratégias das mulheres artistas brasileiras, problematizando as relações entre arte, profissionalização e identidade feminina no contexto cultural nacional. Em obras como Mulheres, arte e poder (2008), Simioni analisa como as artistas negociam os limites impostos pelas instituições e pelas normas sociais, oferecendo uma reflexão crítica sobre a inserção das mulheres no campo artístico brasileiro e as dinâmicas de visibilidade, autoria e reconhecimento. Sua pesquisa contribui para a construção de uma história da arte mais plural e atenta às desigualdades de gênero.

[5] Durante as décadas de 1930 e 1940, o campo artístico paulistano passou por um significativo processo de profissionalização e institucionalização. Essa transformação envolveu a consolidação de diversas instituições culturais, como galerias de arte, salões oficiais de exposição, escolas de arte e associações de artistas, que passaram a regulamentar e estruturar as práticas artísticas na cidade. Esse novo cenário impôs regras e circuitos de circulação para as obras, além de mecanismos de legitimação que determinaram quais produções e artistas seriam reconhecidos. Em meio a essas mudanças, os artistas – especialmente as mulheres – enfrentaram desafios particulares para sua inserção, pois precisavam lidar com as expectativas sociais tradicionais que limitavam sua atuação, ao mesmo tempo em que buscavam espaço no mercado formalizado. Anita Malfatti destacou-se nesse contexto ao utilizar o gênero do retrato como uma estratégia profissional e estética, negociando sua posição dentro desse campo em transformação, sustentando sua prática artística e afirmando sua identidade enquanto mulher e artista moderna. Essa dinâmica reflete as complexas relações entre arte, mercado, gênero e instituições que moldaram o ambiente artístico paulistano no período.

[6] Olívia Guedes Penteado (1872–1934) foi uma importante mecenas do modernismo brasileiro. Vinda da elite paulista, apoiou artistas como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Lasar Segall, além de promover o contato entre a arte moderna europeia e o meio artístico paulistano. Sua residência serviu como espaço de exibição e encontro intelectual, e seu engajamento incluiu também causas feministas e políticas, como o sufrágio e a Revolução Constitucionalista de 1932.