A reflexão impossível: uma nova abordagem sobre os temas africanos na arte de Wifredo Lam

Bárbaro Martínez-Ruiz*

Como citar: MARTÍNEZ-RUIZ, Bárbaro. A reflexão impossível: uma nova abordagem sobre os temas africanos na arte de Wifredo Lam. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVIII, 2023. https://doi.org/10.52913/19e20.xviii.08

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1. O tumultuoso século XIX em Cuba testemunhou a emancipação da comunidade afro-cubana, a independência com relação ao domínio colonial espanhol e o surgimento da República em 1901, após uma breve ocupação estadunidense. No sistema pseudodemocrático de uma Cuba recém-liberta, a nacionalidade tornou-se essencialmente uma ficção jurídica, uma condição política e subjetiva[1] de um país que enfrentava novos desafios econômicos. Simultaneamente, novos grupos sociais e culturas foram rapidamente incorporados nesta visão nacional, nomeadamente os descendentes de africanos emancipados e as ondas de imigrantes de Espanha, do Oriente Médio, da Europa de Leste, da Índia e da China.[2]

2. Neste contexto, ao procurar modernizar suas estruturas políticas e sociais, Cuba olhou para as transformações que vinham ocorrendo na Europa ao longo de séculos. Essas mudanças acabaram por influenciar todos os aspectos da sociedade, e foram abraçadas e expressas pelo movimento modernista nas artes. À medida que o modernismo foi se espalhando gradualmente por Cuba, os artistas ganharam novas ferramentas para expressar e desafiar aquilo que os cercava, bem como reinterpretar a sua história.

3. Charles Harrison, em um ensaio intitulado Modernism, argumentou que esse termo é mais amplamente utilizado “para se referir à caraterística distintiva da cultura ocidental desde meados do século XIX até, pelo menos, meados do século XX: uma cultura em que os processos de transformação e urbanização são concebidos como os principais mecanismos de transformação da experiência humana”.[3] Esta transformação não foi aceita de modo unânime por todos, e o termo avant-garde [lit. vanguarda] tornou-se rapidamente uma forma de descrever a arte moderna, vista como um “campo de batalha onde certos artistas se lançavam em direção a novos territórios enquanto as forças conservadoras se mantinham firmemente atrelados à tradição.”[4] Essa luta não era totalmente externa e um traço central do modernismo tornou-se a sua capacidade de desenvolver uma atitude autocrítica, constituindo sua própria essência “o uso dos métodos característicos de uma disciplina para criticar a própria disciplina – não para a subverter, mas para a entrincheirá-la mais firmemente na sua área de competência.”[5] O movimento modernista na América Latina foi representativo deste tipo de auto encontro, e exigiu a construção de um novo ideal de sociedade, em parte através da tradução e do reconhecimento – pelo menos superficial – da diversidade étnica e cultural da região.

4. Juan A. Martínez, um estudioso da arte cubana, argumentou que “os conceitos de progresso (‘movimento, mudança, avanço’) e independência caracterizaram a vanguarda cubana.”[6] Martínez identificou três fases importantes no desenvolvimento dessa vanguarda:

5. Em um período inicial ou embrionário, de 1924 a 1927, a nova geração começou a expor em Havana. As pinturas dessa época mostravam o abandono das práticas acadêmicas em prol de uma tentativa de aproximação ao impressionismo e ao pós-impressionismo franceses. A vanguardia ou primeira fase do modernismo ocorreu entre 1927 e 1938, quando estes mesmos pintores se apropriaram de formas e conceitos do modernismo francês para interpretar e afirmar lo cubano nas suas manifestações mais evidentes. A década de 1940 marcou a fase clássica do modernismo cubano, quando uma nova geração de artistas, juntamente com alguns da anterior, avançou para uma expressão mais íntima do ethos cubano.[7]

6. A experiência cubana com a modernidade pode ser contrastada com os movimentos modernistas históricos na Europa, que tiveram um sentido mais holístico e informaram outros aspectos da sociedade e da produção cultural. Em Cuba, as transformações ocorridas são percebidas mais nitidamente nas artes, e não conseguiram efetuar mudanças maiores e duradouras em domínios como secularização, democratização, reformas educacionais, industrialização e descoberta científica. Esta falta de um impacto mais amplo levou alguns acadêmicos a argumentar que a modernidade nunca amadureceu enquanto movimento em Cuba e em outros locais da região. Por exemplo, Néstor Garcia Canclini, em seu ensaio Modernity after Postmodernity – uma crítica clássica sobre a modernidade e a pós-modernidade na América Latina -, descreveu essa modernidade como um projeto incompleto, sublinhou os problemas inerentes de sua introdução sem modernização e a descreveu como uma espécie de máscara, um sistema de enganos adotado pelo Estado para perpetuar e promover as culturas de elite, ignorando as populações indígenas e camponesas enquanto agia como se estivesse criando a cultura nacional.[8]

7. Embora os historiadores da arte contemporâneos estejam mais sensibilizados para a ideia de que a crença em um patrimônio cultural comum é prejudicial para uma compreensão adequada da diversidade cultural, étnica e racial dentro de um país, os acadêmicos e outros árbitros culturais da época de atuação de Wifredo Lam estavam concentrados em promover uma ideia geral de Cuba em detrimento da riqueza de seus componentes. No âmbito desta promoção, o apoio cubano às artes centrou-se em formas tradicionais de representação visual, como a pintura, a escultura, a gravura, o desenho e a fotografia. Certos artistas, dos quais Lam é um exemplo muito apreciado, foram selecionados como representativos do que constituía uma forma legítima de arte para a nação. A exposição de arte cubana no Museum of Modem Art de Nova Iorque, in 1944, foi um evento culminante neste período de nacionalismo. Além de conferir certo grau de reconhecimento internacional aos artistas cubanos modernos, a exposição ecoou a agenda da vanguarda cubana, notavelmente pontos como: a independência e rejeição da Academia de San Alejandro,[9] a adaptação das vanguardas europeias e a apresentação de uma identidade cubana nacional e unificada.

8. A identidade unificada de uma Cuba moderna que foi então apresentada ao mundo não excluía totalmente os elementos afro-cubanos, mas procurava simultaneamente exotizar, marginalizar e misturar não só as suas contribuições para a sociedade cubana em geral, mas também a diversidade e a riqueza das culturas afro-cubanas. O movimento vanguardista cubano, embora aparentemente promovesse um certo grau de preservação e promoção de temas africanos através da adoção de motivos subjacentes e da incorporação de sensibilidades africanas, na realidade se baseava em amplas generalizações e sugeria que todos os descendentes de africanos nas Américas partilhavam a mesma cultura, história, língua, religião e sentido de identidade. Certos artistas modernistas – dos quais Lam foi durante muito tempo apresentado como o paradigma, devido, em boa medida, à sua filtragem de temas afro-cubanos -, cooperaram neste processo de homogeneização, vendo e apresentando as culturas afro-cubanas como um corpus único e coeso, como um discurso estético exótico, ainda que constante.

9. Lam foi visto como um protagonista da construção moderna da visualidade afro-americana.[10] Sua arte e legado têm sido caracterizados como o exemplo por excelência de uma visão do africano nas Américas,[11] e como “uma construção em que, a partir dos aspectos barrocos do Cubismo, descobriu os contornos sensuais de uma natureza simultaneamente vegetal e religiosa.”[12] No entanto, qualquer compreensão mais profunda da obra de Lam e do contexto em que ela floresceu tem de confrontar e refutar seus pressupostos específicos, bem como as generalizações e estereótipos incorporados na sua arte.

10. Para criar as suas representações da cultura visual afro-cubana, Lam não partiu da realidade empírica, mas sim de uma visão do modernismo europeu, que ele procurava contradizer e repudiar. Embora procurasse exprimir uma nova visão de Cuba através de uma nova forma de arte, Lam permaneceu muito informado e limitado por uma visão europeia do mundo. Gerardo Mosquera, descrevendo uma entrevista com Lam, admitiu que: “Certa vez ele me surpreendeu […] quando me mostrou a reprodução de uma obra, de aspecto claramente africano, e comentou: ‘É preciso ter visto muito Poussin para fazer isto’.”[13] Estas palavras sugerem até que ponto Lam repudiava a noção de hibridismo e exemplificam um reconhecimento dos valores culturais africanos apenas através dos olhos dos artistas ocidentais.

11. Neste contexto, novos temas – como a representação de frutos tropicais, animais, povos e divindades religiosas locais – transformaram-se em paisagens, que tomavam de empréstimo o partido europeu de um perceptível formalismo expressivo. Esta abordagem não era meramente visual. O próprio Lam perpetuou expressamente visões estereotipadas da vida em Cuba, afirmando, por exemplo:

12. Naquela altura, Havana era uma terra de prazer, de música açucarada, rumbas, mambos e por aí fora. Os negros eram considerados pitorescos. Eles próprios imitavam os brancos e lamentavam o fato de não terem pele branca. E eles estavam divididos – os negros renegavam os mulatos, enquanto os mulatos detestavam a sua própria pele porque já não eram como os seus pais, mas também não eram brancos. Quanto às mulatas, estas eram bastante procuradas e, muitas vezes, tornavam-se prostitutas.[14]

13. Trabalhando apenas dentro das coordenadas do discurso da história da arte ocidental, Lam adoptou uma estratégia de apropriação de motivos africanos e destacou a África como uma ideia, em vez de abraçar e transmitir os traços culturais africanos específicos que desempenharam um papel crucial na gênese da cultura cubana contemporânea, tais como as práticas do Palo Monte derivadas da cultura Kongo de Angola, Cabinda e Congo Brazzaville; as práticas de Ocha derivadas da cultura iorubá da Nigéria, da República do Benim e do Togo; as práticas Abakuá derivadas da cultura Ejagham da região do Rio Cross, no sudeste da Nigéria e sudoeste dos Camarões; e práticas Arara derivadas da cultura Mandé no Mali e países vizinhos.[15] Falhando na  apreciação da diversidade e riqueza da cultura afro-cubana, Lam baseou-se, durante toda sua obra, em número limitado de figuras centrais para as práticas iorubás – principalmente Exu-Eleguá[16] and Xangô[17] -, sem incorporar elementos ou personagens centrais de qualquer uma das outras tradições afro-cubanas pelas quais afirmava falar.

14. Um exemplo da maneira como Lam projetou elementos culturais genéricos em uma espécie de vácuo é o seu tratamento – comum em muitas de suas obras – das máscaras africanas. Estas máscaras, embora genericamente emblemáticas de África, tinham pouca relação com as crenças ou práticas culturais e religiosas dos descendentes de africanos em Cuba. Tal como Picasso tinha feito quando produziu suas obras africanizantes de 1906-1907,[18] Lam via as máscaras africanas como parte de uma exposição etnográfica. Ele ficou impressionado com elas por razões puramente estéticas e espirituais, e depois delas apropriou-se e as representou por meio da técnica ocidental da pintura a óleo. Embora pretendendo retratar as realidades afro-cubanas, ao adotar esse tipo de abordagem Lam essencialmente ignorou a cultura visual, a cultura material e os princípios estéticos afro-cubanos, ocultando a natureza destes como o produto de uma realidade cultural muito específica e diferente, enquanto simultaneamente os reificou e desconstruiu em uma série de códigos formais básicos.

15. É difícil discutir a arte de Lam e a sua abordagem aos temas africanos que incorporou sem olhar para a sua própria identidade étnica e cultural. A história da arte tende a posicionar Lam como o exemplo por excelência de um artista afro-cubano,[19] mas esta perspectiva é diferente da adoptada pelo próprio Lam que, sendo filho de um imigrante cantonês e de uma mulata, se identificava como mestiço ou mulato.[20] Com esta visão de si próprio, Lam nunca conheceu ou participou da comunidade afro-cubana, e não reconhecia a diversidade visual e religiosa da mesma. Em vez disso, ele produziu representações, percepções e realidades impossíveis, que emergem de uma pseudo-representação da estética Africana, não de princípios culturais afro-cubanos efetivos. A difundida visão de Lam como representante da comunidade afro-cubana não foi, contudo, publicamente rejeitada por ele próprio. Em vez disso, Lam capitalizou a noção, expressando abertamente os seus planos de “tomar a arte africana e fazê-la funcionar no seu próprio mundo, em Cuba. Preciso exprimir em uma obra a energia combativa, o protesto dos meus antepassados.”[21]

16. Três obras realizadas por Lam no início da década de 1940 são particularmente úteis para ilustrar o paradigmático legado visual do artista. A forma como eles abordou os temas é contrária à natureza das noções afro-cubanas de arte, espaço e representação, e ela também ignora a maneira como as religiões afro-cubanas incorporam e comunicam formas complexas de filosofia.

Mulher com cana-de-açúcar (Mujer con cana)

17. Mulher com cana-de-açúcar (1942) [Figura 1] é um exemplo particularmente fértil a partir do qual se pode analisar a maneira como Lam transformou as suas atitudes em relação à cultura afro-cubana no seu trabalho visual. Esta obra, em que o tema é definido através da fantasia da perda um apêndice, é um exemplo claro de como a visão imaginativa de Lam tinha prioridade sobre a realidade perceptiva e o conhecimento em primeira mão. Com limitadas fontes pessoais sobre as quais ele podia se basear no que dizia respeito às práticas religiosas afro-cubanas, Lam  se valeu da pintura para projetar suas próprias fantasias e ilusões em sua prática, sem se responsabilizar pela apresentação, acidental ou deliberada, da arte africana como vocabulário visual da cultura afro-cubana.

18. O traço visual mais impressionante desta pintura é a utilização do motivo de uma máscara africana para representar o rosto e a identidade de sua personagem central. É interessante que, para a imagem semelhante a uma máscara africana, uma que pretende claramente representar um sujeito afro-cubano genérico, Lam utilizou um tipo de máscara que poderia assemelhar-se ao perfil facial de uma terracota de Djenné; ao rosto de figuras Kongo Nkisi Nkondi; ou a máscaras tipicamente vistas entre as culturas Baulê, Kota, Kwele, Fang, Grebo, Kete e Songye. Vale notar, porém, que máscaras africanas não têm lugar na cultura afro-cubana, e o uso central e icónico de Lam faz de um exemplo estereotipado de uma delas não tem qualquer relação com os princípios religiosos de Palo Monte, Ocha ou Abakuá, que ele afirmava estar representando.

19. O recurso de Lam a objetos africanos genéricos não surgiu de modo totalmente surpreendente. Em sua época, a arte africana tinha-se tornado um tema com algum fascínio entre certas classes da Europa, e o interesse por ela era particularmente difundido entre a comunidade artística moderna. À medida que os artistas começaram a constituir coleções individuais de objetos africanos e os museus expandiram suas coleções, Lam pôde familiarizar-se pessoalmente com os estilos e características dos objetos africanos que encontrou.[22] Ao contrário da sua familiaridade e conforto (ainda que marcados pela falta de compreensão mais profunda) com objetos de arte africana, Lam parecia menos confortável em seus encontros com as tradições afro-cubanas. Num excerto de uma entrevista com Lam publicada em Exploraciones en la plástica cubana, de Mosquera, o artista recorda que: “ O som dos tambores chegava à minha casa. Eu assistia, com medo, às danças violentas e ao colorido dos rituais dos negros.” Reconhecendo o seu estatuto de agente “de fora,” as palavras de Lam se conectam ao estereótipo autoconsciente que vê as práticas públicas afro-cubanas – tais quais as performances de música de rua -, como um tema pitoresco, mas que suscita medo no observador mais refinado. Nada nos relatos de Lam indica qualquer compreensão do objetivo dos rituais observados, ou dos sistemas de crenças que motivaram a sua realização. Esta ausência de conhecimento e de qualquer desejo aparente de compreensão também se reflete na discussão mais específica que Lam faz sobre a religião afro-cubana, na qual, referindo-se a uma tradição verbal complexa que engloba um grande conjunto de provérbios do Palo Monte, Ocha e Abakuá, ele afirma:

20. Perto dali havia um rio e aletraram-me para não me aproximar demasiado ou então el güije[23] me pegaria. Era tudo muito enigmático para mim e tentei imaginar como seria el güije. Em cada esquina da rua, espalhavam-se grãos de milho e galinhas mortas com anéis colorido à volta do pescoço […] [24]

21. A falta de investigação de Lam sobre as tradições subjacentes às imagens e práticas que ele observou é paralela ao fato de suas representações visuais não apresentarem qualquer tentativa de realçar princípios visuais afro-cubanos ou traços religiosos específicos. Esta falta o distingue de muitos de seus contemporâneos vanguardistas europeus, incluindo Picasso, Alberto Giacometti, Max Weber, Fernand Léger, Max Ernst e Jean Lambert-Rucki, que reconheciam que suas representações do exótico eram uma componente consciente dos seus esforços para distinguir seus trabalhos do contexto europeu que os precedeu, e utilizavam motivos africanos não na tentativa de falar em nome de África, mas, antes, para questionar a sua própria linguagem de representação e usos do espaço. Em vez disso, Lam concentrou a sua atenção na visualização da cultura afro-cubana como uma representação bidimensional de objetos africanos, sem a mesma autoconsciência demonstrada por outros artistas modernistas. Nisso, ele foi bem-sucedido e, embora não seja claro qual era a sua intenção exata, Mulher com cana-de-açúcar é um exemplo revelador, na medida em que demonstra que Lam dava prioridade à imaginação em detrimento da percepção.

22. Também proeminente em Mulher com cana-de-açúcar é, obviamente, o próprio canavial, um motivo frequentemente utilizado para simbolizar o trabalho afro-cubano e realçar o seu papel crucial na construção da sociedade e cultura locais. A figura central da composição está quase completamente rodeada por cana-de-açúcar, uma estratégia compositiva que cria uma sensação de simetria e sugere que o corpo está a emergir do canavial, ou do desconhecido. A situação em que ela emerge é assombrada por múltiplas perspectivas: como mulher, pessoa negra ou símbolo da força de trabalho. Além disso, a figura da cena está posicionada como se estivesse a se fundir com o canavial, uma vez que o seu braço esquerdo assume o contorno das folhas de cana-de-acúcar. Embora nada indique que tenha sido essa a intenção de Lam, poder-se-ia ler um significado secundário na obra, que remete para um corpo associado ao reino da morte, que está a emergir do, ou mergulhar no, mundo espiritual. Este tipo de leitura seria ainda mais reforçado se o canavial tivesse sido substituído pela floresta, ou el monte, um local de grande significado metafórico em todas as religiões afro-cubanas.

A Selva (La Jungla)

23. Entre as obras mais abertamente políticas do artista, A Selva (1943) [Figura 2] é descrita por Lam como representando a identidade cubana, bem como retratando

24. […] a vingança de um pequeno país caribenho, Cuba, contra o colonizador [sendo] tramada. Utilizei a tesoura como símbolo de um corte necessário contra toda imposição estrangeira em Cuba, contra toda colonização […] Para pintar A Selva, me vali ao máximo as lições aprendidas com o estudo dos clássicos […] fiz meu trabalho como se de um ritual se tratasse, baseado em experiências adquiridas na Espanha e França.[25]

25. Esta pintura leva a um outro nível os princípios organizadores da narrativa pictórica utilizados no exemplo anterior. A obra de Lam associa a natureza (sob a forma de uma “selva” ou floresta) a pessoas que são representadas de uma maneira fantástica, incorporando numerosos traços iconográficos encontrados nas artes, figuras e máscaras africanas. Estas referências iconográficas, tal como na obra anterior, são deslocadas na tentativa de mostrar uma compreensão autêntica da cultura que está sendo apresentada.

26. A iconografia de Lam pertence a um contestado legado de agentes “de fora” que testemunharam eventos religiosos afro-caribenhos, e observaram e cooptaram a arte africana. As suas figuras fantásticas fundem características humanas com máscaras africanas – algo impossível, mas apresentado como emblemático da religião afro-cubana.

27. O cenário não é apenas uma selva, é também um canavial com figuras a emergir do seu interior. Tal como em Mulher com cana-de-açúcar, este cenário pode representar tanto a floresta, emblemática da religião afro-cubana, quanto o canavial, emblemático de uma situação sociopolítica em que os negros são vistos como pouco mais do que objetos pitorescos e força de trabalho disponível. Este duplo cenário faz com que o ritual retratado deixe de se realizar no espaço sagrado de um contexto religioso e seja em algo fixado pelo meio da pintura como uma obra de arte autônoma. As figuras em primeiro plano convidam o espetador a entrar neste mundo, enquanto o fundo mostra outras figuras imersas na natureza, e retrata pessoas e espíritos como símbolos de todo o poder vivo.

28. Os enormes pés das figuras aludem ao poder espiritual, enquanto a meia-lua sugere um atributo da Eva original. Remetendo ainda à centralidade das mulheres na imagem, Lam representa-as com seios e nádegas de grandes dimensões, características comuns nas tradições artísticas africanas – mas não afro-cubanas -, onde elas são usadas para evocar a maternidade, a fertilidade, a proteção, a abundância, a complexidade da natureza e a ligação da mulher com a terra. Fiéis às suas raízes africanas, as máscaras apresentadas neste mundo sugerem proteção, transformação, remetem à ilusão do mundo fenomênico; quando são encontradas em um local sagrado (como a floresta), representam as forças das divindades. No entanto, interpretado com uma compreensão dos princípios religiosos afro-cubanos, a representação que Lam faz do híbrido, quase humano, poderia representar o papel cognitivo dos antepassados, que deixam o estado natural para aparecer na vida em todas as suas complexas manifestações. Simultaneamente, a fantástica combinação de princípios masculinos e femininos das figuras alude à fertilidade da totalidade do reino ali representado.

29. Embora existam vários elementos na obra que possam ser ligados a componentes da linguagem visual afro-cubana, e um certo grau de riqueza simbólica possa ser inferido de sua inclusão na pintura, não há provas – seja através das experiências de Lam que são conhecidas, de suas palavras descritivas ou da ambiguidade do emprego por ele feito dos próprios símbolos – de que o artista estivesse consciente dos múltiplos significados subjacentes.

A Presença Eterna (La Presencia Eternal)

30. A caraterística mais distintiva de A Presença Eterna [Figura 3], obra datada de 1944, é a representação de tradições religiosas de matriz iorubá, conhecidas em Cuba como Ocha (e popularizada como Santería). Quando de suas visitas a bembés nos bairros de Pogolotti e Regla em 1941, acompanhado por Lydia Cabrera, Lam testemunhou certos aspectos desta tradição afro-cubana, mas nunca se tornou dela um participante e não tinha uma compreensão completa dos significados culturais subjacentes a tais práticas religiosas.[26]

31. Embora A Presença Eterna, tal como os dois exemplos anteriores, repita a mesma composição de figuras sobre um fundo vegetal, a obra contém as referências mais específicas da narrativa visual de Lam. Em uma entrevista publicada no livro de Max-Pol Fouchet de 1976, Lam ofereceu uma interpretação do simbolismo desta pintura:

32. A personagem da esquerda é uma prostituta imbecil. Ela se sente ridícula com suas duas bocas. Do seu coração sai a perna de um animal. A sua natureza heterogénea evoca a mistura e a degradação da raça. A personagem da direita segura uma faca; é o instrumento de integração, mas ela não a usa, não luta. Isso sugere a indecisão do mulato, que não sabe para onde ir, nem o que fazer. O vaso à direita, que está cheio de arroz e de onde emerge uma cabeça, representa as religiões e os mistérios.  […] No canto superior direito […] coloquei o símbolo de Xangô, o deus do trovão, sustentado por uma mão.[27]

33. Embora, ao descrever a obra, Lam faça distintas referências a figuras e práticas religiosas, ele não consegue relacioná-las entre si, nem apresentar uma explicação holística da religião que procura retratar. A descrição que Lam faz da faca como instrumento de integração e símbolo de indecisão poderia bem ser substituída por uma compreensão mais específica da associação da faca a sacrifício e morte, bem como um emblema da divindade iorubá Ogum.[28] Em particular, a representação da divindade Exu-Eleguá assemelha-se claramente às figuras de Eleguá usadas entre os praticantes de Ocha, exceto no que diz respeito à adição de chifres, que por sua vez aludem à associação popular e não religiosa de Eleguá com o diabo.[29] O fato de Lam associar dois tipos de representações monstruosas desta divindade reitera o seu entendimento negativo da religião afro-cubana e demonstra, mais uma vez, que ele dava prioridade à imaginação e à arte em detrimento do conhecimento e da compreensão. Nenhum praticante sério de Ocha, nem qualquer observador com uma verdadeira compreensão do papel da divindade na religião, associaria Eleguá ao demônio. O que esse símbolo contraditório revela, em última análise, é não somente a incerteza de Lam sobre como retratar temas e personagens religiosos afro-cubanos, mas também sua confusão sobre a história verbal e sua falta de experiência imediata com as lições extraídas dos contos populares do imaginário público em Cuba.

34. Como estes exemplos mostram, Lam, enquanto artista, deu prioridade à imaginação sobre o conhecimento em suas figurações da cultura afro-cubana. Sua imaginação brotava da sua relativa falta de conhecimento sobre o assunto, e informada por uma atitude em relação às práticas afro-cubanas baseada na simplificação do folclore, e agravada pelo seu orgulho como cubano e pela sua determinação em ser conhecido como alguém que falava em nome de outros Cubanos – tudo isto através do prisma da arte moderna. Através da imaginação de Lam, conseguimos ter uma ideia do que ele sentia em relação ao povo afro-cubano e sua cultura, mas é-nos negada a oportunidade de aprender efetivamente sobre o povo e as práticas que ele afirmava retratar.

35. Infelizmente, a passagem do tempo pouco fez para dissipar o mito de que Lam representava plena e efetivamente a cultura afro-cubana ou para promover uma compreensão mais complexa dessa cultura e dos seus contributos para a sociedade cubana em geral. A atual recepção dos temas africanos de Lam continua a exotizá-los e a fetichizá-los, pela dupla via da estética de alteridade e do afastamento que (incorretamente) se considerou que eles representavam com relação aos modos estéticos ocidentais existentes. Os pontos de vista teóricos atuais sobre a cultura afro-cubana e as contribuições das culturas africanas nas Américas também continuam a generalizar e a não apreciar a vasta diversidade cultural e a riqueza dessas tradições. Em vez disso, os investigadores concentram-se com demasiada frequência nos pontos de contato e de intercâmbio entre as culturas europeias e africanas, bem como nas formas de crioulização, mestiçagem e hibridismo daí resultantes. Esses conceitos, frequentemente utilizados de forma excessiva e incorreta, acabam por confundir processos heterogêneos de mistura, de sobreposição e de formação de novas práticas culturais.

36. Chegou a hora de a história da arte, enquanto disciplina dentro e fora de Cuba, reavaliar não só o manto que Lam há muito ostenta como representante da cultura afro-cubana, mas também de questionar a forma como tal cultura é e/ou deve ser expressa através da arte. É necessário considerar uma maior diversidade de tradições, seja em Cuba, de modo geral, seja na comunidade afro-cubana (inapropriadamente homogeneizada), de modo mais específico. Uma nova geração de historiadores da arte deve considerar a forma como as representações podem ser mais bem embasadas por uma compreensão do que está sendo retratado e de que maneiras pode ser criado um campo mais democrático, onde uma série de vozes são encorajadas e onde se proporciona espaço para que elas celebrem suas próprias tradições visuais e culturas materiais.

Tradução do inglês por Arthur Valle, revisão de Roberto Conduru


 

* Bárbaro Martinez-Ruiz obteve seu bacharelado na Universidade de Havana, em 1994, e seu doutorado na Universidade de Yale, em 2004. É historiador de arte com experiência em práticas artísticas, visuais e religiosas africanas e caribenhas, cujo trabalho desafia as fronteiras disciplinares tradicionais e examina os vários entendimentos de, e envolvimento com, “arte” e “cultura visual”. O presente artigo foi originalmente publicado como: MARTÍNEZ-RUIZ, Bárbaro. The impossible reflection: a new approach to African themes in Wifredo Lam’s art. In: Wifredo Lam. Miami: Miami Art Museum Press, 2008 (catálogo de exposição), p. 23-31.

[1] ECHERUO, Michael J. C. An African Diaspora: The Ontological Project. In: OKPEWHO, lsidore; BOYCE-DAVIS, Carole; MAZRUI, Ali A. (ed.). The African Diaspora: African Origins and New World ldentities. Bloomington: Indiana University Press, p. 4.

[2] ORTIZ, Fernando. Los negros esclavos. Havana: Editorial de Cencias Sociales, Instituto Cubano dei Ubro, 1915, p. 3, p. 8-40.

[3] HARRISON, Charles. Modernism. In: NELSON, Robert S.; SHIFF, Richard (ed.). Critical Terms for Art History. Chicago; London: The Chicago University Press, 2003, p. 188.

[4] BOZAL, Valeriano. Los origenes de la estética moderna. Madrid: La balsa de la Medusa, 1996, p. 38.

[5] HARRISON, op. cit., p. 193.

[6] MARTÍNEZ, Juan A. Cuban Art and National Identity. The Vanguardia Painters, 1927-1950. Gainesville: University Press of Florida, p. 10-11.

[7] Ibid, p. 5.

[8] CANCLINI, Néstor Garcia. Modernity after Postmodemism. In: MOSQUERA, Gerardo (ed.). Beyond the Fantastic. Contemporary Art Criticism from Latin America. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. 20-22.

[9] San Alejandro é a Academia de Belas Artes fundada em 1818 e dirigida pelo pintor francês Juan Bautista Vermay.

[10] GIUNTA, Andrea. Strategies of Modernity in Latin America. In: MOSQUERA, Gerardo (ed.). Beyond the Fantastic. Contemporary Art Criticism from Latin America. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. 63.

[11] MOSQUERA, Gerardo. Modernism from Afro-America: Wifredo Lam. In: MOSQUERA, Gerardo (ed.). Beyond the Fantastic. Contemporary Art Criticism from Latin America. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. 121.

[12] GIUNTA, op. cit., p. 63.

[13] MOSQUERA, op. cit., p. 122.

[14] Ver: FOUCHET, Mak-Pol. Wifredo Lam. Barcelona: Ediciones Poligrafa, 1976, p. 183; MARTINEZ, op. cit., p. 143.

[15] THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy. New York: Vantage Books, 1984, p. 14.

[16] Ibid, p. 18-20. “Exu-Elegba [sic] passou a ser considerado como a própria encarnação das encruzilhadas. Exu-Elegbara é também o mensageiro dos deuses […]”

[17] Ibid, p. 84-85.

[18] RUBIN, William. Picasso. In: Primitivism in 20th-Century Art: Affinity of the Tribal and the Modem, v. 1. New York: Museum of Modem Art, 1984, p. 244-251.

[19] Por exemplo, Mosquera (op. cit., p. 123) escreveu que a Lam representa a “diversidade ontológica na etnogênese das novas nacionalidades latino-americanas, das quais as do Caribe são paradigmáticas.”

[20] Ibid, p. 124.

[21] Citado em: JIMÉNEZ, Antonio Nunez. Wifredo Lam. Havana: Editorial Letras Cubanas, 1981: p. 173.

[22] Ver: RUBIN (ed.), op. cit., p. 111-267. Muitos artistas, marchands, escritores e etnógrafos ligados aos movimentos de vanguarda tinham coleções pessoais de arte africana, oceânica, pré-colombiana e indígena estadunidense, como Guillaume Apollinaire, Georges Battaille, Georges Braque, André Derain, Paul Guillaume, Erick Heckel, Wifredo Lam, Pierre Loeb, Michel Leiris, Henri Matisse, Edvard Munch, Pablo Picasso, Charles Raton, Ambroise Vollard, etc. Estas artes também compõem importantes colecções de museus e exposições internacionais na Europa, como o Musée de l’Homme; o Museu Etnográfico Imperial em Viena; a Exposição Universal em Paris, 1900; o Pavilhão da África Equatorial Francesa na Exposição Colonial, Paris, 1931.

[23] Ver: BARREIRO, José. The Guijiro Who Killed a Güij. Caribbean Amenindian Studies, VI, ago. 2004 – ago. 2005. Os güije são o povo dos pequeninos em Cuba. Em Camagüey, a palavra é güije; mais a leste, no Oriente, a palavra inverte para jigüe. Os güije vivem nas lagoas e nas margens dos rios e, na tradição mais antiga, são os espíritos auxiliadores dos velhos cernies dos Taino. Os güije podem aparecer como metade humano-metade peixe; podem ser castanhos, com feições sombrias e cabelos compridos – indito; podem ser negros e africanos – negrito; ou podem ser Canários – duende ou galego – dioga. Os güije são frequentemente guardiães das fontes de água e, por vezes, são parentes e ajudantes da “Madre de Aguas” ou mãe das águas (uma cobra malhada).

[24] MOSQUERA, op. cit., p. 186.

[25] JÍMÉNEZ, op. cit., p. 173-175.

[26] MARTÍNEZ, op. cit., p. 143.

[27] FOUCHET, op. cit., p. 204.

[28] THOMPSON, op. cit., p. 52. “As artes de Ogum refletem a sua natureza de ‘deus duro’: uma divindade da guerra e do ferro. Ele está nas chamas da forja do ferreiro, no campo de batalha e, mais particularmente, na ponta do ferro.”

[29] Ibid, p. 19.