Dois panoramas da América em Londres: Cidade do México (1826) e Rio de Janeiro (1828)

Carla Hermann [1]

HERMANN, Carla. Dois panoramas da América em Londres: Cidade do México (1826) e Rio de Janeiro (1828). 19&20, Rio de Janeiro, v. X, n. 2, jul./dez. 2015. https://www.doi.org/10.52913/19e20.X2.04a [English]

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1.      Sem o título Description of a view of the city of St. Sebastian, and the Bay of Rio Janeiro... [Figura 1] nos tomaria mais tempo entender que cidade é essa ao fundo de um panorama exibido em Londres em 1828. Os aspectos fisionômicos destacados, diminutos, exigem alguns segundos de observação. O Pão de Açúcar e o Corcovado, marcos mais importantes da cidade do Rio de Janeiro, aparecem de maneira tímida. A organização da composição claramente dividida em dois planos tem um objetivo: enfatizar a distância entre a cidade que fica ao fundo, estática, e as embarcações, que estão na baía e que, apesar de ancoradas, são livres para partir. São meios de transporte de mercadorias e ideias, equipamentos capazes de levar homens de negócio, inovações e modernidade para a cidade que os espera ao fundo. Fica difícil nos desligarmos da noção de que se trata de uma fragata estrangeira de frente para a cidade que, antes colonial, está aberta para navios estrangeiros e para o mundo. Assim, o Rio de Janeiro era apresentado aos londrinos como um lugar a ser explorado. Uma terra passível de novas trocas comerciais e produção de conhecimento, que está à altura do olho do espectador posicionado no centro do edifício da rotunda, que abriga a enorme tela circular.

2.      Comparando a outro panorama americano exibido em Londres, em 1826, que tem como protagonista a Cidade do México [Figura 2][2], percebemos modos de pensar a natureza e o espaço tão distintos, que nos levam à necessidade de pesquisa de contextualização histórica. As semelhanças são restritas ao local de exibição e ao espaço temporal das exposições: ambos foram ampliados na forma panorâmica para rotundas por Robert Burford e exibidos na mesma construção em Leicester Square, na capital britânica, no curto espaço de tempo de dois anos. Além disso, de acordo com informações fornecidas pelos próprios títulos, os dois foram feitos a partir de desenhos tomados “in situ” nas respectivas cidades, em 1823. Mas as coincidências param por aí. Formalmente temos duas vistas bastante distintas. O Rio de Janeiro é visto de fora da cidade ou, mais especificamente, a partir de uma embarcação ancorada na Baía de Guanabara. O autor dos esboços tomados a partir da nau permanece desconhecido. Já a Cidade do México é retratada do telhado de sua catedral, na praça mais importante da cidade. A autoria, de W. Bullock, além de estar identificada, desempenha importante papel na escolha da Cidade do México como tema.

3.      Colecionador interessado por história natural e promotor de exposições de suas coleções, William Bullock chegou a Veracruz, no México, em 1823, para passar seis meses visitando a capital e o centro do país. Nessa viagem patrocinada por investidores ingleses, dedicou-se a coletar exemplares da fauna e artefatos indígenas para sua coleção, enquanto seu filho documentava os ambientes e pessoas que encontravam. Regressando à Grã-Bretanha com muitos artefatos e desenhos, logo preparou uma exposição focalizando o México antigo e o moderno, aberta ao público em abril de 1824. A mostra foi montada na Sala Egípcia, de sua propriedade, um dos mais importantes espaços de exibição em Londres nessa época. Na parte dedicada ao mundo moderno foram exibidos animais dissecados pelo próprio Bullock, plantas, frutas, flores, minerais, vestimentas, artesanatos, uma cabana indígena e até mesmo um jovem indígena levado por ele. Um catálogo descritivo, também de sua autoria, explicava ao público tudo que havia diante dos seus olhos. Poucas semanas depois, publicou seu livro de memórias de viagem, intitulado Six Months Residence and Travels in Mexico.

4.      A visualidade panorâmica não se restringia apenas aos panoramas per se, e também precisa ser entendida nas narrativas de viagem e exposições de museus, complementando a representação de questões particulares bastante específicas com sugestões de totalidade.[3] Nesse sentido, podemos pensar que Bullock buscou oferecer aos londrinos uma experiência total do México. Foi dentro desse espírito que ocorreu a exibição do panorama da Cidade do México.

5.      A relação entre paisagem e poder, muito evidente em ambas as vistas, é apontada por Willian J. Thomas Mitchell, que propõe pensar a paisagem como verbo, e não como substantivo.[4] Na condição de processo pelo qual se formam identidades sociais e subjetividades, a paisagem não só significa ou simboliza relações de poder, como é, em si mesma, um instrumento de poder cultural. E mais: realiza essa condição de meio cultural justamente porque naturaliza as construções sociais e culturais. Pode, portanto, ser um instrumento que estabelece determinadas relações ou ideologias. Robert Aguirre trata especificamente dos interesses britânicos sobre exploração mineral no México como motivação para a exibição do panorama na rotunda londrina, ao repassar informações que transmitissem segurança aos investidores ingleses por volta de 1825-1826 quando, depois do entusiasmo inicial pelas jazidas mexicanas, surgiu o medo com relação a seu esgotamento.[5] Curioso notar que o próprio Bullock havia comprado, em sua estada no México, uma mina de prata em Temascaltepec, distante 150 km da Cidade do México, chegando, aliás, a vender todos os seus negócios em Londres (incluindo a coleção pré-hispânica e a Sala Egípcia) em 1825 a fim de mudar-se para a América e se dedicar à atividade mineira.[6]

6.      Para entender a exibição de ambos os panoramas precisamos entender aquilo que alguns historiadores chamam de informal empire, ou seja, a política imperialista britânica do século XIX. Trata-se da prática de um conjunto de ações expansionistas que significou uma colonização cultural de países ou colônias com as quais a Inglaterra mantinha relações comerciais ou possuía interesse em fazê-lo. Chama-se de “informal” porque o projeto imperialista não era explicitado, sendo antes mascarado por interesses simplesmente comerciais. Luciana de Lima Martins[7] observa que, apesar de o Rio de Janeiro ter sido, a partir de 1808, sede do quartel-general de uma base naval da Marinha Real Britânica na América do Sul, e da manutenção de um esquadrão posicionado para patrulhar uma zona de interesses, a confluência de estratégias geopolíticas com as mercantis caracterizava a “ausência de um projeto imperialista definido” por parte dos ingleses. A verdade é que a partir do século XIX a importância estratégica do Rio de Janeiro para a Inglaterra foi aumentando gradativamente. A cidade, tornada capital do Brasil em 1763, apresentava rápido crescimento populacional e comercial, e seguia sendo o segundo centro naval mais importante do Império português, perdendo em importância e volume de trocas apenas para Lisboa. Ademais, o porto da cidade se mostrava lugar ideal para escalas e abastecimentos: havia água potável proveniente das montanhas que rodeavam a cidade, madeira de suas matas e uma variedade de provisões como charque, açúcar e tabaco.[8] Na rota da navegação para os mares do sul, a cidade se tornou parada praticamente obrigatória para as embarcações que se dirigiam à Índia, Austrália, Cidade do Cabo e China.

7.      Dito isso, começamos a dissolver a estranheza inicial da opção por uma vista marítima do Rio de Janeiro com poucos elementos característicos da cidade e de sua natureza aparentes, muito alimentada na contraposição com o mais famoso panorama da cidade, realizado por Félix-Emile Taunay e exibido em 1824 na rotunda da Passage des Panorames em Paris. Pensado para descortinar uma cidade urbanizada e em equilíbrio entre a montanha e o mar, esse panorama ampliado e mostrado na capital francesa obedecia à outra lógica de demonstração de poder: a apresentação da jovem nação brasileira recém-independente de Portugal e o reconhecimento, pela França, do Brasil como nação independente.

8.      Já o panorama britânico coloca a cidade como pano de fundo, pequenina diante das fragatas. Embora o Pão de Açúcar e o Corcovado, ainda que diminutos, tenham recebido certo destaque na composição (com o primeiro ocupando o centro da primeira parte da gravura do panorama reproduzida no folheto explicativo), fica evidente que a obra não quer simplesmente apresentar o Rio de Janeiro, mas sobretudo a presença dos navios diante dele.

9.      O livreto vendido junto com o ingresso para a rotunda, e que acompanha a vista naval em questão, traça um apanhado histórico que vai desde o descobrimento do Brasil até a independência, em 1822. De acordo com o texto, desde então o Brasil vinha “superando com felicidade suas principais dificuldades e subindo rapidamente em distinção e prosperidade”[9] - um indicativo de que o país seria terreno fértil para negócios. As informações impressas também nos dão conhecimento de que o desenho foi tomado da fragata de Lord Cochrane, convidado para comandar a frota e que para esse propósito chegou à Baia de Guanabara em 13 de março de 1823.

10.    Além de alguns dados e muitos elogios, o texto se encerra com a enumeração e descrição dos lugares e acidentes naturais que são mostrados na vista. Há dos mais frequentemente citados pelos viajantes dessa época (como Forte de Santa Cruz, Pão de Açúcar, Baía de Botafogo, Glória, Corcovado) até outros, mais incomuns, como botes e embarcações parados na baía (incluindo a de Lord Cochrane, havendo, aliás, na descrição uma nota a esse respeito)[10], e informações sobre a distância entre locais da cidade e o ponto de vista a partir do qual são tomados. Da mesma maneira que o panorama de Bullock, para direcionar a leitura que os visitantes faziam da pintura, reforça a “estética de dominação visual ao situar a imagem pintada com referências a antecedentes históricos cuidadosamente escolhidos,”[11] o panorama carioca também direciona nosso olhar, mas de maneira linear. Tudo que deve ser visto está além da linha das embarcações, e o segundo plano se mostra como algo a ser conquistado pelos elementos presentes no primeiro.

11.    De acordo com o autor do folheto, essa vista do porto, distante uma milha da cidade é a melhor e a mais compreensiva que se poderia obter; de onde se veem suas terras altas, coroadas com conventos, e belas montanhas ao redor, entremeadas com residências e jardins de aparência rica e magnífica.[12] É como se a vista do fundo da baía fosse de fato a ideal, e isso é defendido como maneira de garantir a melhor e mais real experiência para o espectador que vê a obra ampliada na rotunda londrina.

12.    É preciso ainda considerar que a vista do Rio de Janeiro realizada pelos britânicos se insere numa tradição de vistas topográficas e mapeamentos costeiros elaborados por tripulantes de embarcações inglesas e também portuguesas. Por conta de a descrição visual ser considerada superior a qualquer descrição verbal e de as vistas topográficas desempenharem o papel de guias para os marinheiros, a formação de estudantes de navegação dava grande ênfase aos ensinamentos cartográficos e ao desenho, fazendo, aliás, com que certa sensibilidade visual se desenvolvesse em meio aos membros de diversos escalões da Marinha Real Britânica. Foram tantos os oficiais britânicos a retratar o Rio de Janeiro como pano de fundo para os navios que os transportaram, que podemos, em termos de pesquisas futuras, pensar num conjunto de representações anteriores tomadas do funda da Baía de Guanabara[13] e que tenham instruído o desenho descrito no folheto. Sob esse aspecto, podemos pensar que tanto as vistas aquareladas ou tornadas gravuras realizadas pelos marinheiros viajantes quanto o panorama de Leicester Square desempenharam igual função: tornar as formas geográficas montanhosas da costa carioca conhecidas por amplo público leigo britânico, ansioso por viajar sem sair de suas cidades.

13.    Os locais escolhidos como ponto de vista nos apresentam mais dessa relação entre paisagem e poder. No caso do Rio de Janeiro, a vista tomada da água retoma o que já explicamos da relação com o olho do espectador, que é colocado na situação de explorador. A visão radial tomada do fundo da baía não procura abarcar o todo (ao contrário da vista tomada do alto da catedral mexicana, como veremos adiante). Ela planifica o horizonte, no intuito de simplificá-lo para o espectador. O primeiro e o segundo plano, retificados, aparecem em escalas diferentes. São alinhados para satisfazer o ponto de vista central do “deck” de observação da rotunda. Curioso observar a coincidência entre a palavra “deck” utilizada nesse caso e a parte mais superficial do navio. O formato da plataforma da rotunda parece mesmo com alguns observatórios de mastros de embarcações. Consonâncias à parte, quando colocado em posição superior, com a linha do horizonte panorâmico na altura do olho, o espectador londrino se sentia no centro da baía e, possivelmente, dentro de uma embarcação ali ancorada. Ao mesmo tempo, estava ciente de estar em lugar nenhum, dado que seu ponto de vista não correspondia a nenhum lugar real.

14.    Primeiramente a volta de 360 graus privilegia a localização dos navios em relação à costa montanhosa, mostrando de maneira reduzida a abertura da Baía de Guanabara para o restante do mar, denunciando formalmente que se está diante de uma vista construída. O público a que esse panorama se destinava estava desejoso de novidades e de lugares a explorar e descobrir, o que explica a decisão por essa construção. Tratava-se de não desperdiçar espaço com aspectos que não mereciam destaque na descrição que o desenho pretendia transmitir a quem o visse. Importava o fato de ser uma baía repleta de navios e que esse espaço de contingência agenciava a comunicação entre o Rio de Janeiro e o mundo, e, mais ainda, era dominado pela grande embarcação de Lord Cochrane, colocada em destaque no canto esquerdo da segunda folha ilustrativa do folheto que hoje podemos analisar.

15.    Do mesmo modo, a visão “planificada” do horizonte permitia que, ao percorrer o ponto mais alto de observação, o espectador estivesse diante de uma figura sempre em perspectiva. A planificação como artifício técnico para correções da perspectiva e para marcação de dois planos distintos reafirma a visão de um estrangeiro, de um viajante diante do outro. Colocar o espectador na condição de viajante era uma característica das construções panorâmicas, consideradas verdadeiros substitutos de viagens. As rotundas eram não apenas lugares para entretenimento e educação, mas portais para mundos diferentes: cidades dentro de cidades, cenários exóticos e até para o passado.[14]

16.    Essa mesma condição de viajante é colocada no panorama mexicano, embora por recursos distintos. A manipulação perspectiva acontece no traçado do desenho, lançando mão de uma vista que mais se assemelha a como se estivéssemos olhando através de uma lente grande-angular. O recado que se quer passar é claro: daqui, do alto da catedral, localizada no Centro da cidade, é possível ver tudo. A ideia de que a visão pode ser ampliada de acordo com o lugar de onde ela parte é reforçada ao posicionar o observador sobre uma construção simbólica da dominação espanhola. A aniquilação do poder asteca preexistente naquele lugar, encarnada na vista tomada do topo da catedral, era passada ao público através dessa representação. Mesmo que se soubesse tratar-se, novamente, de uma vista construída e manipulada para caber numa só mirada, era possível se sentir conquistador daquele espaço. A Cidade do México era apresentada como lugar longínquo, exuberante e exótico em suas cores, e colocado aos pés dos novos “conquistadores”. O México de Bullock aparece como um lugar que já nasceu panorâmico, como se sua própria natureza e topografia o tivessem feito assim.

17.    O ponto de vista tomado a partir da arquitetura e com destaque geralmente dado aos marcos construtivos buscava levar ao conhecimento do público britânico a vastidão da herança do espaço espanhol no México. Isso era colocado como condição para o sucesso da cidade quanto às possibilidades de com ela comerciar. Como se os espanhóis já tivessem domesticado a cidade e a tivessem deixada pronta para o contato com os ingleses. Segundo Aguirre, a organização racional do espaço citadino do México, mostrado tal como e das cidades europeias, foi importante para apresentar a nação como lugar seguro para o capital britânico.[15] Ao mesmo tempo, ao aludir de maneira sutil, tanto na imagem quanto no guia, à história de um passado colonial de conquista, o panorama de Bullock também enfatizava a longa história de submissão mexicana à Europa. Assim, a cidade era vista como lugar de tempos diferentes e sobrepostos, aquele da cultura indígena que foi dominado e que está sob a cidade colonial agora moderna.

18.    Não apenas as espacialidades dos dois panoramas analisados aqui são diferentes. O mesmo acontece com as temporalidades: enquanto o Rio de Janeiro aparece como promessa de futuro para todos aqueles que o veem de dentro da sua baía, mas de fora da cidade, o México D.F. aparece como lugar de acúmulo de tempos pregressos. O tempo asteca, rico e conquistado,[16] e o tempo espanhol, dominador e preparatório para o uso que pode ser dado a partir do agora.

19.    Apesar de o panorama mexicano se inserir numa tradição visual pensada pelo classicismo, há algo da tradição não-ocidental que perpassa a representação e pode ser percebida pela toponímia, que carrega a memória pré-hispânica. Mesmo na organização ocidental do espaço urbano que nos é aparente, há referência a alguns marcos construtivos e naturais feitos e significados pelos mexicanos. Por exemplo, a própria catedral é indicada como estando “construída precisamente no espaço antes ocupado pelo grande Teocalli del Huitzilo Pochtl”,[17] indicando que o mais importante edifício, aquele do poder da Igreja e através do qual se deu a dominação espanhola, se sobrepunha àquele que era a centralidade do poder asteca, o templo dedicado ao principal deus, Huitzilopochtli. Outras territorialidades apropriadas pelos espanhóis são indicadas no panorama, como a Calzada de Guadalupe, “en la árida roca de Tepeyacac [...] donde se alzaba antiguamente el templo de la Ceres mexicana, Tonantzin, sítio en donde hoy se yergue la magnífica iglesia de Nuestra Señora de Guadalupe”,[18] e as Piramides de San Juan (Teotihuacan), ao fundo da primeira lâmina de gravura. Esses topônimos mexicanos operam dentro da construção de uma noção de modernidade, uma vez que representam a dominação desse império asteca, se relacionando com o que foi dito a respeito da temporalidade e da demonstração de poder.

20.    Outro aspecto digno de nota é a presença de espaços sem construções no primeiro plano desse panorama. O vazio de edificações é exacerbado pelas distorções sofridas pelas fachadas dos edifícios para que eles se adequem à mirada de “grande-angular” que mencionamos. O artifício de fazer sobressair o chão nu, mesmo a partir de esboços tomados de um ponto central e superior, tem a função de marcar a centralidade daquela praça em relação à cidade e ao país [Figura 3].

21.    Quando observamos mapas anteriores ao século XIX, vemos que a ausência de construções no centro do plano ortogonal da nova cidade hispânica é decorrência da apropriação do espaço de poder central que Tenochtlitlan, a capital do império asteca no período pós-clássico possuía, e que pode ser vista já no mapa de 1524 atribuído a Hernan Cortés, conhecido como Mapa de Nuremberg [Figura 4]. A sucessão de mapas que colocam o Zócalo vazio chega a nosso panorama do século XIX com a função de que a vista proporcionada ao espectador é a síntese de todo o país, devido a sua centralidade construída e dominada ao longo dos séculos. É interessante pensar que o panorama retoma algo que o mapa de Cortés já havia feito séculos antes: o “aproveitamento” da lógica espacial asteca. Afinal, apesar de ter sido executado por europeus e de acordo com as convenções europeias (casas em perspectiva, as cidades circundantes transfiguradas em fisionomia de torres medievais e domos renascentistas), nele sobrevive uma visão de Tenochtitlan como centralidade mítica e cósmica. A distorção planimétrica, que coloca a cidade no centro de um lago circular (quando já se sabia que se tratava em realidade de dois lagos, um de água doce e outro de água salgada, interligados por um canal) reflete o entendimento indígena de centro de um Império, além de estar relacionada à ideia asteca de tempo cíclico e padrão histórico.[19] É possível que o mapa europeu tenha sido orientado por uma representação espacial pré-hispânica ou mesmo que o gravador responsável pela xilogravura tenha sido orientado por desenhos indígenas. Faz-se necessário pensar ainda que essa representatividade asteca tenha servido às necessidades hispânicas de representar o México como uma grande conquista da Coroa, com aspectos de planejamento urbano e canais escavados sobressalentes nos mapas, efeitos que o rei Carlos I e os europeus pudessem entender como indicadores de civilidade, reforçando a capacidade espanhola de subjugar um povo desenvolvido.

22.    Para concluir, cabe observar que, quando vemos lado a lado os dois panoramas, estamos diante de vistas tão distintas, que obedecem a interesses diferentes, mas que estão condicionadas a uma só lógica: a do imperialismo informal. Ao mesmo tempo em que as rotundas buscavam cercar o observador da ilusão de uma vista totalizante, também o colocavam numa posição superior àquela da paisagem representada, utilizando artifícios psicológicos como a altura, já que o posto de observação deixava o olho de um homem de estatura mediana na altura da linha do horizonte. O observador era posto em destaque, e a visão promovida era a de que tudo aquilo que ele descortinava a sua frente estava sujeito a sua dominação e seu controle. O panorama, assim, simbolizava a relação entre centro e periferia, essencial para o Império britânico. Colocava uma centralidade dupla: a da plataforma de observação - tanto o indivíduo quanto Londres como centro do mundo - da qual se via todo o resto. Ao aproximar desse centro do mundo cidades longínquas e desconhecidas do público inglês, como Cidade do México e Rio de Janeiro, dava-se a ele a impressão de que o Império não tinha limites.

Referências bibliográficas

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[1] Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

[2] O nome completo é Description of a view of the city of the City of Mexico, and surrounding country: now exhibiting in the Panorama, Leicester-Square; painted by the proprietor, Robert Burford, from drawings taken in the summer of 1823, brought to this country by Mr. W. Bullock. Os dois panoramas mencionados neste texto levam o título dos folhetos que acompanhavam sua exibição na rotunda londrina. São esses folhetos os testemunhos dos traçados dos desenhos que sobreviveram até os dias atuais, visto que nenhuma das telas circulares monumentais em questão existe mais.

[3] AGUIRRE, Robert. Informal Empire – Mexico and Central America in Victorian Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005, p. 43.

[4] MITCHELL, W. J. T.. Landscape and power. Chicago: University of Chicago Press, 2002, p. 2.

[5] AGUIRRE, Op. cit., p. 44.

[6] COSTELOE, Michael. El Panorama de México de Bullock/Burford, 1823-1864: história de una pintura. Historia Mexicana, v. 59, n. 4, abril/junio de 2010, p. 1208.

[7] MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos navegantes - o olhar britânico (1800-1830). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.71.

[8] Ibidem, p. 70.

[9] Description of a view of the city of St. Sebastian, and the Bay of Rio Janeiro […]. London: Printed by J. and C. Adlard, 1828, p. 6.

[10] “Mais ou menos na mesma época a presente vista foi tomada, e o navio da sua senhoria, juntamente com outras embarcações que compunham a marinha brasileira, estão representados em várias partes da Baía.” Description of a view of the city of St. Sebastian, and the Bay of Rio Janeiro […], Op. cit., p. 9.

[11] AGUIRRE, Op. cit., p. 43.

[12] Description of a view of the city of St. Sebastian, and the Bay of Rio Janeiro […], Op. cit.,p. 6.

[13] Segundo Luciana de Lima Martins (Op. cit., p. 96) ao menos Harry Edmund Egdell, George Lothian Hall, Owen Stanley, Samuel Hood Inglefield e James Glen Wilson o fizeram.

[14] DELLA DORA, Veronica. Putting the world into a box: a geography of Nineteenth- Century 'traveling landscapes'. Geogr. Ann. 89B (4), p. 296.

[15] AGUIRRE, Op. cit., p. 44.

[16] O texto do folheto abre com a menção de que a Cidade do México seria “a cidade mais antiga da América de que se tem noticia (…), a esplêndida e pouco conhecida cidade de Tenochtitlán”, aludindo a um passado histórico importante e grandioso. (Description of a view of the city of the City of Mexico, Op. cit., p. 2).

[17] Description of a view of the city of the City of Mexico, Op. cit., p. 30.

[18] Ibidem, p. 31

[19] MUNDY, Barbara. Mapping the Aztec Capital: the 1524 Nuremberg Map of Tenochtitlan, Its Sources and Meanings. Imago Mundi, The International Journal for the History of Cartography, v. 50, issue 1, 1998, pp. 11-33.