Roberto Burle Marx e a Praça Euclides da Cunha: uma expressão de arte, cultura e bom senso no Recife de 1935

organização de Alda de Azevedo Ferreira[1], Joelmir Marques da Silva[2], Fernando de Carvalho Ono[3] e Michele dos Anjos de Santana[4]

FERREIRA, Alda de Azevedo; SILVA, Joelmir Marques da; ONO, Fernando de Carvalho; SANTANA, Michele dos Anjos de (org.). Roberto Burle Marx e a Praça Euclides da Cunha: uma expressão de arte, cultura e bom senso no Recife de 1935. 19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 2, jul./dez. 2013. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/fp_rbmarx.htm>.

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ROBERTO BURLE MARX (1909-1994): Projecto do Parque da Futura Praça Euclides da Cunha, de autoria do Paysagista Roberto Burle Marx (sic). Nanquim sobre papel.

Fonte: Diario da Tarde, Recife, 14 mar.1935.

Ao longo de sua trajetória, o brasileiro Roberto Burle Marx (1909-1994) dedicou-se a variadas expressões artísticas, tendo sua obra alcançado maior destaque na arte paisagística. Ele é considerado o criador da linguagem moderna do jardim, onde uniu seus conhecimentos de arte e botânica, e os traduziu através do uso da exuberante flora brasileira. Iniciou sua produção aos 25 anos, quando foi convidado por Carlos de Lima Cavalcanti, então Governador de Pernambuco, para assumir a chefia do Setor de Parques e Jardins da Diretoria de Arquitetura e Construção do Estado, em 1935[5].

Nesta época, segundo Sonia Gomes Pereira[6], instalava-se no Brasil o projeto de modernização fomentado pelo Estado, incentivando as reformas das cidades. Assim, Burle Marx se encarregou de implementar na cidade do Recife o plano de aformoseamento, concebendo seus primeiros jardins públicos e privados, dentre os quais: o Jardim da Casa Forte e a Praça Euclides da Cunha, ambos de 1935.

No projeto para a Praça Euclides da Cunha, para a escolha temática da concepção, Burle Marx se inspirou no livro ‘Os Sertões’ do escritor Euclides da Cunha, publicado em 1902, e o homenageou ao nomear o logradouro. O jardim então “conta uma história”, narrando uma imagem idealizada da paisagem da caatinga, e conduz o caráter específico da criação: trata-se de um jardim de cactáceas[7].

Para a coerência entre tema e forma, Burle Marx rompeu com padrões culturais pré-estabelecidos, e propôs novos paradigmas para a estrutura formal e os elementos compositivos, como o uso da vegetação autóctone, e a utilização de escultura simbolizando o homem comum, como a personificação do sertanejo através do “Homem de Tanga”, de autoria do artista Celso Antonio, que foi seu professor na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA).

Antes de sua vinda a Recife, Burle Marx estudou Música, durante breve período na Alemanha, e Artes na ENBA. Sabe-se que sua formação acadêmica foi de grande importância para a construção de seus princípios compositivos, como por exemplo, pela influência do pintor expressionista alemão Leo Putz, professor responsável pela Disciplina de Pintura na ENBA. O professor Putz, que durante muito tempo foi adepto do impressionismo, foi responsável pelo ensino de técnicas para a percepção do meio ambiente. A percepção de Burle Marx, aflorada pelos conhecimentos musicais, proporcionou maior sensibilidade para reger a composição paisagística de maneira integrada[8].

Neste sentido, pretende-se elucidar alguns dos princípios adotados pelo paisagista para a concepção da Praça Euclides da Cunha, através da transcrição do seu depoimento para o Diario da Tarde, publicado em 14/03/1935, intitulado ‘Jardins e Parques do Recife’. Este documento pertence ao acervo do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano localizado na Cidade do Recife, Pernambuco, e está retido para restauro desde o ano de 2010. Até onde se sabe, este é o único exemplar. A transcrição seguiu fielmente a ortografia da época, conforme empregada pelo autor.

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Recife, 14 de março de 1935

JARDINS E PARQUES DO RECIFE

ROBERTO BURLE MARX PARA O DIARIO DA TARDE

[Página 1]

Cidade é, segundo Lecorbusier, um utensílio de trabalho. O jardim sendo parte integrante do seu aspecto deve preencher uma funcção. Uma só, não, muitas; hygienica, educacional e artística.

Um jardim, desde que alcance esses objectivos, localiza o gráo de cultura de um povo.

O jardim tropical, antes de tudo, nos deve proteger de um sol excessivo, fornecendo sombra como corretivo.

O nosso paiz possue evidentemente uma flora riquissima e, desse modo, não nos será difficil encontrarmos em qualquer cidade elementos que solucionem essa necessidade. Até então, não tem sido assim o que, entre nós, se tem feito nesse sentido. As ruas arborizadas quasi que exclusivamente com ficus benjamim, além de resolver mal os problemas de arborização urbana, deixam uma impressão de pobreza de nossa flora, o que não é verdadeiro.

Alem disso, já é tempo de evitarmos o erro da má comprehensão, e não repetimos, aqui, o que se fez no Rio, e sua Praça Paris, onde os jardins não conseguem nem ao menos ser francezes pelo ridiculo dos seus arbustos cortados em gallinhas, perús, cadeiras, cabeças de cavallos, saturnos, etc., com excepção de Adão e Eva, que fôram substituidos por estatuas representando as quatro estações européas.

Desses varios typos de jardins devemos aproveitar apenas a idéa básica, com bem comprehendidas perspectivas, e subordinada a determinadas formas: architectonica ou classica, paysagista ou romantica, ou ainda uma outra intermediaria, comportando elementos das duas primeiras e usando, entretanto, de material exclusivamente tropical.

A variedade immensa de plantas que nos offerecem nossas mattas magnificas, e as que embora exoticas já se tenham adaptado integralmente ao nosso clima, nos facilitarão enormemente a tarefa. Urge que se comece, desde já, a semear, nos nossos parques e jardins, a alma brasileira.

Foi com esse pensamento que resolvemos estudar para o Largo do Viveiro, na Magdalena, um jardim que embora nos protegendo com grandes sombras nos deixasse ver tambem alguma coisa de nossa flóra tão curiosa do Nordeste brasileiro: os cactos.

Para isso, tencionamos crear um cactario e reunir nelle o maior numero possivel de generos brasileiros da familia das cactaceas, como sejam: Cereus, Melocactus, Opuntia, Pilocereus, etc. Blocos de pedra e plantas das famílias das Bromeliaceas e Euforbiaceas completarão o ambiente nordestino.

Como figura central, será collocada uma estatua do fino cinzel do grande artista brasileiro Celso Antonio. Essa estatua, talhada em granito pollido, representa um homem de tanga.

Fóra de qualquer idéa litteraria, possue ella o valor intrinseco de ser verdadeira esculptura, quer pela força da sua forma, quer pela singeleza das suas linhas. Além disso, si lhe quizermos emprestar um significado literario, ainda assim estará ali bem ambientada, pois concretiza, em sua expressão de força, a figura racial do brasileiro do norte em harmonia perfeita com o conjuncto dos cactos tão constructivos e definidos em suas formas. Circundando o cactario, haverá um passeio de Lages collocadas sem ligação, de modo a permitir o crescimento de gramma nos espaços. Este passeio facilitará a observação mais proxima dos diversos especimens do cactario. Duas alamedas de arvores autochtonas do sertão, tais como: Unbuzeiros, Joazeiros, Páos d’arco, etc., envolverão a praça pela parte mais externa, encontrando-se numa das extremidades onde formarão um pequeno bosque. Sob a copa frondosa dessas arvores serão collocados bancos de granito pollido.

Essas alamedas, além de fornecerem abundante sombra, servirão ainda, como effeito de perspectiva para accentuar a luminosidade, do cactario.

Ter-se-á accesso ao passeio interno, por meio de tres pequenas escadas que acompanharão uma rampa grammada.

Ao lado dessas escadas vistos alguns exemplares de cactos de grande porte.

Como se tenha estabelecido nesse projecto, um jardim com elementos colhidos nas nossas caatingas e nos nossos sertões, e attendendo a ter sido Euclides da Cunha, dos nossos escriptores o que mais vivamente descreveu essas regiões, cogita-se de indicar o seu nome para essa praça, como um preito de admiração e veneração a quem tão patrioticamente agiu, com tão grande senso de brasilidade. Esperamos, deste modo, haver alcançado o nosso objectivo, isto é: doar a Pernambuco um jardim em que se achem alliadas a hygiene e a arte, ao par da educação e cultura, o que equivale diser que Pernambuco actual possuirá, em matéria de jardim, alguma coisa de solido e de definitivo com que se apresentar á posteridade, dentro de uma expressão de arte, cultura e bom senso.

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[1] Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco (DAU/UFPE). Mestre em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (MDU/UFPE). Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa. aldazevedo@yahoo.com.br

[2] Biólogo pela Universidade de Pernambuco (UPE). Mestre e Doutorando em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (MDU/UFPE). Pesquisador do Laboratório da Paisagem/ UFPE. Bolsista CAPES. joelmir_marques@hotmail.com

[3] Licenciado em Educação Artística e em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV-EBA). fono_6@yahoo.com.br

[4] Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco (DAU/UFPE).  Mestre em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE). Professora de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Ciências Humanas - ESUDA. E-mail: michelesantana@gmail.com

[5] [1] SILVA, Joelmir Marques da. Arqueologia botânica dos Jardins de Burle Marx: a praça de Casa Forte e a Praça Euclides da Cunha, Recife/PE. 2012. 124f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Urbano) - Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.

[6] PEREIRA, Sonia Gomes. Arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C/ Arte, 2008.

[7] SÁ CARNEIRO, Ana Rita. Parque e paisagem: Um olhar sobre o Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010.

[8] FERREIRA, Alda de Azevedo. A permanência da paisagem: os princípios do projeto paisagístico de Haruyoshi Ono. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2012.