Paisagem, Monumento e Crítica Ambiental na Obra de Félix-Émile Taunay

Claudia Valladão de Mattos [1]

MATTOS, Claudia Valladão de. Paisagem, Monumento e Crítica Ambiental na Obra de Félix-Émile Taunay. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_fet_cvm.htm>.

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                     1.            A pintura de paisagem tornou-se, desde o século XVIII, um espaço privilegiado para projeções de identidades nacionais, em grande parte graças às ideias de uma ligação essencial entre clima, paisagem e povo, propagada, entre outros, pelos escritos de Winckelmann. Nesta chave interpretativa, as características peculiares da paisagem de um país eram tratadas como constituindo a base do caráter moral de seu povo. Representar a paisagem significava, portanto, exaltar a singularidade da nação.

                     2.            A pintura de paisagem produzida no Brasil, ao contrário daquela realizada na América do Norte e em alguns outros países latino-americanos, nem sempre foi marcada por tal repertório romântico. Como observa Luciano Migliaccio (MIGLIACCIO, 2000), nos tempos da colônia, as representações da paisagem brasileira associavam-se frequentemente a fins militares, ou econômicos e, mesmo após a independência, elas foram fortemente marcadas pelo universo da ilustração científica, característico da maior parte da pintura de viajantes europeus que transitavam pelo país. Apesar disso, entre as décadas de 1840 e 1850 podemos identificar alguns artistas que usaram a paisagem como veículo para a constituição de um discurso sobre o Brasil. Dentre eles, Félix-Émile Taunay (1795-1881) ocupa uma posição de destaque, entre outras razões, por ter sido por um longo tempo diretor da Academia Imperial de Belas Artes, uma instituição que, ao lado de outras como o SAIN (Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, criada em 1827) e o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838), tinha como programa fundamental contribuir para a introdução da jovem nação brasileira no hall dos países civilizados.[2] Na década de 1840, Félix-Émile Taunay realiza dois quadros intitulados respectivamente Vista da Mãe D’Água (Exposição Geral de Belas Artes, 1840) [Figura 1] e Vista de um mato virgem que está se reduzindo a carvão (Exposição Geral de Belas Artes, 1843) [Figura 2], que se concentram na temática da natureza brasileira. De acordo com Migliaccio (MIGLIACCIO, 2000: 76), as duas obras demonstram a intenção do artista em fazer do embate entre natureza selvagem e civilização o verdadeiro tema de uma pintura de caráter nacional.[3] Sem descordar em princípio dessa interpretação, o presente artigo pretende apontar para um vínculo entre os projetos de Taunay para uma pintura de paisagem nacional e um importante debate sobre o destino das florestas brasileiras que tinha sido reavivado nas décadas após a independência, especialmente nos círculos intelectuais do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ao qual pertencia Félix Taunay. Um dos pontos centrais desse trabalho será propor uma interpretação mais detalhada e talvez mais “política” das obras Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão e Vista da Mãe D’Água, entendendo-as como uma tomada de posição do artista com relação a debates específicos que marcaram o período entre o final do primeiro reinado e o início do Segundo Império. Demonstraremos que o compromisso de Taunay com esses debates levou-o a desenvolver um conceito bastante original de monumento, desenhado para responder a questões específicas da realidade brasileira.

                     3.            Em seu livro Um sopro de Destruição, José Augusto Pádua (PÁDUA, 2004) aponta para a existência de um debate ambiental no Brasil que remonta à influência de Domenico Vandelli sobre diversos membros da elite colonial que estudaram na universidade de Coimbra ao longo do século XVIII. Alvo principal da crítica de Vandelli e seus discípulos eram as formas rudimentares adotadas na agricultura brasileira, especialmente a prática das queimadas, que, de acordo com eles, levaria inevitavelmente ao rápido esgotamento dos abundantes recursos naturais da colônia lusitana. A crítica à destruição da natureza, não aparecia, portanto, num viés romântico, como consequência de um respeito, ou veneração à natureza, mas por razões utilitárias e políticas. Diria Vandelli, por exemplo:

                     4.                                                  Entre as plantas das conquistas existem muitas espécies desconhecidas dos botânicos, principalmente árvores de muita utilidade, ou para a construção de navios, casas e trastes, ou para a tinturaria. Porém, no Brasil muitas delas com o tempo se farão raras e dificultoso o seu transporte. Pelo costume introduzido de queimar grandes bosques nas bordas dos rios para cultivar a maior parte do milho ou mandioca, e acabando-se a fertilidade deste terreno em poucos anos passam a fazer novas queimas, deixando inculto o que antes foi cultivado. E assim se destroem árvores úteis e de fácil condução. (VANDELLI apud PÁDUA, 2004: 43)

                     5.            Ao longo de todo o século XIX, a crítica ambiental no Brasil seguiu esse mesmo curso pragmático. Apesar da autoridade de intelectuais românticos com Humboldt, ou Chamberlain, por vezes citados pelos autores brasileiros envolvidos com a questão, a preocupação com a natureza permaneceu marcada pela necessidade de implementar um uso racional dos recursos do país de forma a permitir um progresso seguro no presente e no futuro.

                     6.            Como demonstra Pádua, ainda que, desde os tempos da colônia, houvessem vozes dispostas a protestar contra a destruição dos recursos naturais do Brasil, as questões referentes à preservação e correta utilização desses recursos voltaram à pauta durante os anos imediatamente anteriores e posteriores à Independência. Naturalmente, o novo país precisava considerar o uso de seus recursos naturais e alguns intelectuais empenharam-se no sentido de promover mudanças políticas que pusessem fim às práticas de desperdício. Certamente o principal militante desta causa foi José Bonifácio de Andrada e Silva, um ex-aluno de Domenico Vandelli que, ao retornar ao Brasil em 1819, após 36 anos na Europa, procurou utilizar sua posição de grande influência para levar adiante algumas reformas que pudessem colocar o país nos trilhos do progresso.

                     7.            José Bonifácio compartilhava a visão utilitarista de seu professor italiano, porém suas vastas leituras de outros autores europeus e em especial de Alexander von Humboldt, ampliara muito a sua compreensão dos problemas ambientais a serem enfrentados pela jovem nação. Em seu livro sobre as Américas, com o qual Bonifácio estava bastante familiarizado, Humboldt havia feito observações importantes a respeito da relação entre a destruição das matas nativas e a diminuição das águas vivas de uma região, fornecendo uma visão dinâmica dos efeitos devastadores dessa prática:

                     8.                                                  Ao cortar as árvores que cobrem o topo e as encostas das montanhas, os homens de todos os climas produzem de uma só vez duas calamidades: a falta de combustível e a escassez de água. Quando as florestas são destruídas, como o são em toda parte da América pelos plantadores europeus, com uma imprevidente precipitação, as fontes de água secam e se tornam menos abundantes; os leitos dos rios, ficando secos uma parte do ano, se convertem em torrentes sempre que uma forte chuva cai nas suas cabeceiras. [...] Desta forma o desflorestamento, a falta de fontes e a existência de torrentes são três fenômenos estreitamente conectados. (BONIFÁCIO apud PÁDUA, 2004: 49)

                     9.            Essa mesma visão sistêmica que vemos em Humboldt aparece muito cedo na obras de José Bonifácio. Em 1815, quatro anos antes de retornar ao Brasil, ele escreveria em defesa das matas europeias: “Se os canais de rega e navegação aviventam o comércio e a lavoura, não pode havê-los sem rios, não pode haver rios sem fontes, não há fontes sem chuva e orvalho, não há chuva e orvalhos sem umidade, e não há umidade sem matas.” (JOSÉ BONIFÁCIO apud PÁDUA, 2004: 139).

                  10.            O retorno de Bonifácio ao Brasil e seu envolvimento político com os rumos do país tornou o seu pensamento ainda mais complexo. Ao lado da dinâmica da natureza, José Bonifácio passou a considerar as estruturas sociais que contribuíam para o estado das coisas no Brasil, dando o que talvez tenha sido a sua mais importante contribuição para a crítica ambiental do período, através da associação entre destruição das florestas e o sistema escravocrata. Essa relação apareceria de forma explícita em alguns de seus textos dos anos de 1820, como o sobre a “Necessidade de uma academia de agricultura no Brasil”, publicado em 1821, ou “Representação à Assembleia Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravidão”, de 1823. Em uma importante passagem deste último texto, lemos, por exemplo:

                  11.                                                  Se os senhores de terras não tivessem uma multidão demasiada de escravos, eles mesmos aproveitariam terras já abertas e livres de matos, que hoje jazem abandonadas como maninhas. Nossas matas preciosas em madeiras de construção civil e náutica não seriam destruídas pelo machado assassino do negro e pelas chamas devastadoras da ignorância. [...] e desse modo se conservarão, como herança sagrada para a nossa posteridade, as antigas matas virgens que pela sua vastidão e frondosidade caracterizam o nosso belo país. (JOSÉ BONIFÁCIO apud PÁDUA, 2004: 150).

                  12.            A campanha de José Bonifácio pela abolição da escravatura e pela reforma agrária foi, de acordo com Pádua, um dos principais motivos para sua perseguição e exílio, ocorridos em 1823, pouco depois de sua ascensão ao cargo de ministro do Império. Sua volta ao poder em 1831, como tutor dos filhos de D. Pedro I e em seguida como deputado, em 1835, marcaram o retorno de Bonifácio à defesa pública da causa ambiental, porém sem a energia e a eficácia de antes. Nas décadas após a sua morte, no entanto, ao mesmo tempo em que ocorria a regeneração de sua imagem e sua ascensão à posição de herói da independência, suas ideias preservacionistas foram ganhando popularidade, até chegarem a seu auge exatamente nos anos 40 e 50.

                  13.            As décadas posteriores à independência do Brasil marcam também o momento de fundação de algumas instituições que se tornaram “instâncias coletivas de atuação cultural e social”, contribuindo grandemente para o aquecimento do debate crítico sobre o desperdício de recursos naturais com os sistemas de queimadas adotados no Brasil. Dentre essas instituições, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), fundada em 1827, e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que iniciou atividades em 1838, tiveram papel de destaque. É importante mencionar os estritos laços existentes entre essas duas instituições, pois o IHGB nasce de um desdobramento da SAIN, e lembrar novamente que Félix Émile Taunay era membro fundador do Instituto, assim como outros artistas, como Araújo Porto-Alegre. No contexto dessas duas instituições, houve uma importante inovação quanto ao pensamento sobre a questão das florestas nacionais: os novos autores que ali atuavam deixaram de preocupar-se apenas com a questão agrícola, para abordar com maior frequência e coerência temas diretamente relacionados à cidade do Rio de Janeiro. Januário da Cunha Barbosa, primeiro diretor da SAIN, publica, por exemplo, em 1833 um texto intitulado: “Discurso sobre o abuso das derrubadas de árvores em lugares superiores de vales, e sobre o das queimadas”, onde o problema da destruição das matas não era mais visto como um fato prejudicial apenas para a realidade rural, mas estava muito mais próximo, prejudicando a vida da cidade. Para comprovar tal fato, de acordo com o autor, bastava escutar:

                  14.                                                  as observações de pessoas inteligentes encarregadas do encanamento das nossas águas para as fontes públicas, que a sua notável diminuição procede em grande parte de se haverem destruído as matas nos terrenos de sua nascença e passagem. O que vemos ... confirma o princípio de que o abuso da derrubada de árvores, em certas circunstâncias, concorre a esterilizar terrenos que têm sido férteis e que ainda poderão produzir como dantes, se lhes forem conservadas as águas ao abrigo das árvores que o homem tão insensatamente destrói. (CUNHA BARBOSA apud PÁDUA, 2004: 175)

                  15.            É nesse contexto que surge o personagem que talvez esteja mais próximo de Félix-Émile Taunay, fazendo a ponte (se é que não existiram outras) entre seu pensamento sobre paisagem e o grupo de intelectuais empenhados em preservar as matas do Brasil. Em 1837, Carlos Taunay, um dos irmãos de Félix-Émile Taunay, escreveu um pequeno livro intitulado Manual do Agricultor Brasileiro, no qual ele dedicava longas passagens às consequências da destruição das matas nativas, em especial nas regiões em torno do Rio de Janeiro. Este livro nos parece uma fonte de extremo valor para analisarmos aspectos importantes dos dois quadros de Félix-Émile Taunay: Vista da Mãe D’Água e Vista de um mato virgem que está se reduzindo a carvão.

                  16.            Em seu Manual, Carlos Taunay assume um tom de denúncia urgente contra a destruição das matas próximas ao Rio de Janeiro. Ele recomendava aos agricultores “não abusar deste manancial de riqueza quase inesgotável que a natureza nos outorgou, não só pela razão da economia a favor dos nossos vindouros, como mesmo para a boa conservação da terra e temperamento da nossa atmosfera”, criticando “o sistema permanente de devastação que assola e desguarnece as fraldas da serra do Corcovado e das serras da Tijuca.” (CARLOS TAUNAY apud PÁDUA, 2004: 239) Ainda em sua opinião, a devastação das florestas estava destruindo o clima na capital:

                  17.                                                  a grande extensão que a cultura tomou nas vizinhanças da cidade, e o indiscreto corte de matas que causou, originaram sem dúvida esta alteração. O calor está notavelmente mais intenso. As trovoadas, outrora diárias, são raríssimas, e finalmente, de tantas fontes próximas à cidade, umas já secaram de todo e outras correm mais escassas. (CARLOS TAUNAY apud PÁDUA, 2004: 239)

                  18.            Em seu texto, Carlos Taunay enfatizava o importante papel das matas no processo de fertilização dos solos, bloqueio de ventos, conservação das fontes de água e purificação da atmosfera, papel que era ainda mais crucial nos morros, pois o “descortinamento de grande porção deles pode ocasionar uma sensível alteração do clima e notável diminuição das águas.” (CARLOS TAUNAY apud PÁDUA, 2004: 238).

                  19.            A leitura dessas passagens do Manual do Agricultor Brasileiro não deixa dúvidas quanto à afinidade de Félix-Émile Taunay com as ideias defendidas por seu irmão. O quadro Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão põe diante dos olhos de seu público o próprio drama da destruição das florestas, causadora de todos os males descritos no livro. O quadro divide-se em duas partes. À direita encontramos uma floresta majestosa e centenária, de configuração complexa e repleta de espécies úteis (podemos ver, por exemplo, um grande jatobá no canto superior direito do quadro). Vindo de dentro da mata densa, e desembocando em um poço natural em primeiro plano, corre um rio de águas límpidas.

                  20.            À esquerda, essa bela parcela de mata atlântica é contraposta a uma paisagem desoladora, onde homens negros trabalham sem cessar derrubando a mata a machado e empilhando os enormes troncos para queimá-los. A relação entre escravidão e derrubada das matas tornou-se, como vimos, um tema recorrente da crítica ambiental, desde José Bonifácio. Carlos Taunay também enfatiza essa ligação, ainda que não defendesse como Bonifácio, a abolição imediata dos negros.[4] Félix-Émile, por sua vez, incorpora em seu quadro, essa mesma crítica ao efeito nocivo do trabalho cativo. A brutalidade dos movimentos dos machados e a indiferença dos negros com relação ao destino da floresta torna-se ainda mais evidente pela presença, no quadro, de um único homem branco, de braços estendidos que, como bem observou Elaine Dias (DIAS, 2005: 405), medindo-se com a imponente obra da natureza, evoca concepções românticas do sublime.

                  21.            O horizonte livre de árvores, na parcela esquerda da obra, deixa entrever uma região montanhosa que faz lembrar as serras ao redor da cidade do Rio de Janeiro. Estamos certamente em um lugar elevado, acima do vale que se delineia no plano médio da obra, local que, de acordo com o texto de Carlos Taunay, deveria permanecer intocado. A região central do quadro configura-se como o espaço de fronteira entre a floresta e os campos devastados pelos machados dos negros e pelo fogo. É nesse espaço que se acumula alguns dos elementos centrais à narrativa proposta pelo artista. Salta aos olhos, em primeiro lugar, a grande figueira, cuja frondosa copa ocupa quase toda a parte superior direita do quadro. Ela é o “personagem principal” do drama. Ao seu lado, como a ampará-la, vemos um pau-mulato, uma árvore cuja madeira era muito usada na fabricação de móveis. A posição estratégica que as duas árvores ocupam no quadro lhes dá um aspecto de resistência heroica. Um pouco mais à esquerda, já ocupando a região da queimada, encontramos um riacho que corre com dificuldade entre pedras e entulhos, exposto ao sol e ao vento, em direta contraposição ao leito invisível, porque protegido pela densa mata, do rio à direita. Entre a enorme figueira e o rio agonizante à esquerda, vemos uma estrada lamacenta por onde caminha um negro ao lado de um jumento arqueado sob o peso de sua carga. A dramática narrativa descortina-se diante dos nossos olhos. Escravos negros derrubam as matas nativas nas cercanias do Rio de Janeiro, provavelmente visando o estabelecimento de uma lucrativa lavoura de café e nem mesmo a mata é abatida e já podemos intuir suas consequências nefastas: a esterilidade do terreno, representado pelo aspecto espinhoso que ele adquire com a presença dos restos de tronco abatidos, a diminuição das águas expostas a céu aberto e a lama que corre pela estrada, como se ela mesma fosse um rio ameaçador.

                  22.            Confrontado com a tradição de crítica às práticas agrícolas brasileiras, o quadro de Taunay e seu projeto para a construção de uma paisagem brasileira a partir de elementos locais, parecem adquirir um sentido menos abstrato e mais político já que tocava em questões que atingiam diretamente a vida da população do Rio de Janeiro. A inscrição que acompanhou o quadro na sua primeira apresentação na Exposição Geral de 1843 parece confirmar essa hipótese: “A desaparição dos mais belos exemplares do reino vegetal nos arredores da cidade ameaça a esta, segundo cálculos irrefutáveis, com diminuição das águas vivas e elevação do grau médio de calor, dois males reciprocamente ativos.

                  23.            Desde o século XIX a crítica de arte sempre tendeu a considerar este quadro em uma relação de proximidade com a obra de Taunay Vista da Mãe D’Água. De fato, suas temáticas são semelhantes, assim como as datas em que provavelmente foram criados. O quadro Vista da Mãe D’Água representa o mais antigo reservatório de água da cidade do Rio de Janeiro, situado no alto do morro de Santa Teresa. O que domina, no entanto a paisagem não é a construção, mas a mata virgem que rodeia o reservatório e sua tubulação. À semelhança do outro quadro de Taunay, também essa obra fez-se acompanhar de uma “notícia” no momento de sua primeira aparição na exposição Geral da Academia em 1840, com o seguinte conteúdo:

                  24.                                                  Lê-se a seguinte inscrição sobre a caixa, na qual principia o encanamento das águas: ‘Reinando El-Rei Dom João V, nosso Senhor, e sendo Governador o Capitão General desta Capitania e das Minas Gerais, Gomes Freire de Andrade, do Seu Conselho, Sargento-mór de batalha dos seus Exércitos. Ano de 1744. Outra inscrição lapidar sobre um dos arcos de Santa Teresa diz assim: El-Rei Dom João V, nosso Senhor, mandou fazer esta obra pelo Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Gomes Freire de Andrade, do Seu Conselho, Sargento-mór de batalha dos seus exércitos, Governador e Capitão Geral das Capitanias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ano de 1750’. A grandeza das obras e magnificência sem par dos sítios que elas atravessam, correspondem aos paternais desvelos dos reis da Casa de Bragança, atestados pelas muitas Cartas Régias e Provisões que existem a respeito daquelas águas, desde 1672 até o mencionado ano de 1759.

                  25.            A presença dessa inscrição, que reapareceu também na exposição de 1841 levou a crítica, desde o século XIX a ver no quadro uma celebração do importante monumento arquitetônico doado pela casa de Bragança ao povo do Brasil. A aparência do quadro, no entanto, não corresponde à inscrição. Vários elementos apontam em outra direção: a construção, que é supostamente o tema principal, encontra-se deslocada do centro da obra e desvalorizada, parecendo mais um casebre simples do que um “monumento duradouro”. As figuras dos escravos descansando ao redor do reservatório também não parecem corresponder a ideias celebrativas.[5] E, principalmente, por que Taunay não representou os Arcos da Lapa, citado na “notícia”, este sim, uma obra passível de ser considerada “monumental?

                  26.            Devemos nos perguntar, portanto, como seria possível conciliar a visualidade do quadro e a nota explicativa que o acompanha desde sua primeira aparição pública. Talvez uma forma eficiente de abordar a questão seria indagarmos a respeito dos interlocutores de Félix Èmile Taunay. Para quem ele teria pintado esse estranho quadro? Se pensarmos nas data da obra, a resposta só pode ser uma: Para o imperador D. Pedro II que em 1840 adquirira sua maioridade e assumira o comando da jovem Nação. A 12 de Dezembro de 1840, o próprio Taunay acompanhou D. Pedro II em sua visita oficial à primeira exposição Geral da Academia, fazendo o seguinte comentário diante da Vista da Mãe D’Água:

                  27.                                                  Se, como fora o nosso intento, aparecesse mais extenso a notícia do encanamento da Carioca, não ligaria ela à lembrança atual de um passado de benefícios ao justo amparo que testemunham os fluminenses para a descendência dos príncipes de Bragança?[6]

                  28.            O próprio Taunay explicitava, com essas palavras portanto a ligação entre o tema da obra e a ascensão de D. Pedro II ao trono.

                  29.            Sabemos que Félix-Émile Taunay tornara-se professor de desenho e de francês de D. Pedro II e suas irmãs em 1835 e que em meados de 1839 foi nomeado sub-preceptor do futuro imperador, ao lado do bispo de Chrysopolis. De acordo com o testemunho de seu filho, Alfredo Taunay (o Visconde de Taunay), que publicou em 1916 alguns fragmentos de memórias do seu pai na revista do IHGB, no cumprimento dessa tarefa, a natureza brasileira desempenhou um papel central: “Ao imperador menino, então, foram os desvelos de meu pai inexcedíveis e, ajudado pelos esplendores da natureza brasileira, em cuja adoração viveu sempre, por aí é que buscou e conseguiu impingir na alma do jovem soberano o culto do Belo [...].” (TAUNAY, 1916: 96) De fato, tais memórias de Félix Èmile revelam um programa pedagógico de inspiração roussoniana. Em vários trechos percebemos a convicção de Taunay de que o desenvolvimento de uma sensibilidade com relação à natureza levaria à possibilidade de apreciação das artes e ao refinamento cultural em geral. A narração de um pequeno episódio ocorrido durante um passeio ao jardim botânico com seus pupilos, em que D. Francisca, irmã de D. Pedro II, rira de suas exclamações constantes de admiração diante da natureza, serve bem para ilustrar sua posição:

                  30.                                                  Então lhes expliquei que a admiração pelos grandes espetáculos da natureza e a manifestação das impressões que eles nos incutem, são só próprias do homem civilizado. Os selvagens e entes primitivos não as sentem ou, se as sentem, tem especial cuidado em ocultá-las. (TAUNAY, 1916: 97)

                  31.            A observação da natureza também seria um caminho privilegiado para o aperfeiçoamento moral. Taunay relata que deixou um marimbondo pousar sobre sua mão, diante dos jovens pupilos, para provar que ele era inofensivo quando não se sentia ameaçado, concluindo:

                  32.                                                  D’aí a reconhecer que o mal para o mal pouco se produz na natureza, não há grande distância. Assim também a desconfiança ou o temor de ser molestado gera mais violências e crimes do que a maldade inata, a malignidade gratuita...” (TAUNAY, 1916: 98)

                  33.            Poderíamos aventar a hipótese dessa ideia de educação através da natureza, tal como ela aparece nas memórias de Félix Èmile Taunay, encontrar-se também na origem das duas paisagens de Tauany que estamos analisando. O artista teria concebido-as pensando em seu pupilo e no importante papel que ele estava para assumir à frente da nação. Podemos imaginar que Vista de uma mata virgem reduzida a carvão visava atrair a atenção do jovem imperador para a voraz destruição da natureza brasileira que ocorria em todo o país e também nos arredores do Rio de Janeiro, como consequência do plantio da monocultura do café, abrindo uma porta de comunicação direta entre o poder imperial e os intelectuais do SAIN e do IHGB que lutavam pela preservação das florestas. Nesse contexto é importante também lembrar que 1843 está em discussão a primeira lei de terras para o Brasil.

                  34.            Ainda que igualmente comprometido com as ideias preservacionistas às quais ele era simpático, o quadro Vista da Mãe D’Água parece desenvolver um discurso mais complexo. Nessa obra, Taunay preocupa-se em indicar um caminho viável para conciliar o desenvolvimento da nação brasileira, sua entrada plena para a comunidade de países civilizados, e uma política de preservação das matas nativas ainda intocadas. Como o próprio Taunay, enquanto diretor da Academia, reiteradamente afirmara, a medida e a história de uma civilização estaria corporificada em seus monumentos e portanto era necessário pensar a tradição do monumento em sua relação com a realidade local. Nas cidades valia as regras da Europa: deveria-se construir monumentos imortais, de inspiração clássica, pois deles “dependem os destinos da fama das sociedades humanas [...] quando já quaisquer outros vestígios desapareceram.” (TAUNAY apud DIAS, 2005: 248)[7]. Porém ao lado desse conceito tradicional de monumento, em Vista da Mãe D’Água, Taunay parece conceber um outro, no qual ocorreria uma simbiose entre monumento e natureza, isto é, entre natureza e história. De acordo com essa concepção, a ocupação ponderada dos sítios naturais (da forma proposta por Bonifácio e seus discípulos), sem destruí-los, levaria à construção de um monumento, símbolo da grandeza de seu soberano. Como estratégia retórica, isto é, como forma de sugerir esse caminho como o mais legítimo para a atuação do próprio D. Pedro II, em Vista da Mãe D’Água, Taunay apresenta sua nova visão de natureza como monumento, sob as vestes de uma herança da casa Bragança a seu herdeiro. A simbiose entre construção (reservatório e aqueduto) e mata é assim louvada como o grande legado da casa de Bragança ao Brasil. A passagem da “notícia” que vincula “a grandeza das obras” à “magnificência sem par dos sítios que elas atravessam” parece muito relevante desse ponto de vista.

                  35.            A integração entre monumento e natureza é um tema romântico de grande relevância para a paisagem, tal como ela se reinventa ao longo do século XVIII. Caspar David Friedrich possui diversos quadros onde um pequeno túmulo incorpora-se ao cenário monumental da floresta, ou se esconde sob as pedras colossais de uma gruta [Figura 3]. Nesses quadros, o Stimmung, ou tom emocional da paisagem orienta nossa aproximação ao monumento. Uma compreensão talvez mais próxima da de Taunay, no entanto, parece ser a do artista Jacob Philipp Hackert. O importante paisagista, primeiro pintor de Ferdinando IV, rei de Nápoles, realiza em 1780, uma série intitulada Dez Vistas da Casa de Campo de Horácio [Figura 4] onde vemos ocorrer uma simbiose entre monumento clássico e paisagem.

                  36.            Porém aqui, ao contrário do que ocorre em Friedrich, é a presença do monumento histórico que dá significado e valor à paisagem. A questão ocupou o artista também do ponto de vista teórico. Em uma passagem de seu texto sobre “Pintura de Paisagem” podemos ler: “Muitas regiões agradam, em primeiro lugar, apenas por causa de condições morais, ainda que elas não sejam as mais belas, pois outras ideias do observador se juntam a elas.” (HACKERT apud MATTOS, 2008: 147-48)

                  37.            Em Vista da Mãe D’Água, também a obra dos Bragança tornou aquele trecho da natureza memorável, um monumento relacionado à grande história do país. Confrontado com a realidade brasileira e com todos os desafios envolvendo a construção da nova nação brasileira, Felix-Émile Taunay reinventa a pintura de paisagem propondo um conceito novo de monumento que pudesse servir também a seu engajamento político em defesa da bela natureza dos trópicos.

Referências bibliográficas

DIAS, Elaine Cristina. Félix-Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil. Tese de Doutorado defendida no Departamento de História do IFCH/Unicamp, 2005.

_____. A Pintura de Paisagem de Félix-Émile Taunay. Rotunda, n.1, abril, 2003, p. 5-18.

MATTOS, Claudia Valladão de (org.). Goethe e Hackert. Sobre a pintura de paisagem. São Paulo: Ateliê, 2008.

MIGLIACCIO, Luciano. A Arte do Século XIX, catálogo da Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal, 2000.

PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição. Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

TAUNAY, Alfredo. D. Pedro II e o Barão de Taunay. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 77, parte II, 1916, p. 94-102.

_________________________

[1] Doutora e História da Arte pela Universidade Livre de Berlin e professora de História da Arte do Instituto de Artes da Unicamp.

[2] Outro artista de igual importância é Manuel Araújo Porto Alegre, que sucedeu Taunay como diretor da AIBA em 1855.

[3] Elaine Dias propõe uma análise semelhante em sua tese de doutorado: Félix- Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil, defendida no IFCH/Unicamp em 2005.

[4] De acordo com Pádua, Taunay “criticou a imoralidade do trabalho forçado, sem defender a necessidade imperiosa da abolição.[...] Mesmo assim, apesar desses atenuantes, a realidade era que a escravidão contribuía para o atraso da agricultura.” O problema deveria ter uma solução paulatina, no futuro. A solução seria a adoção do arado. (p.241)

[5] Existe uma outra versão deste tema que se encontra no MASP, onde as figuras dos escravos estão ausentes e a construção recebe maior destaque.

[6] Félix-Émile Taunay, Discurso na visita do Imperador à Primeira Exposição Geral, 12 de dezembro de 1840.

[7] Taunay prevê um processo de adaptação dessa arquitetura europeia à realidade brasileira. Em discurso pronunciado na Sessão Pública da Academia em 1834, Taunay diria: “quem a ela se dedicar (à arquitetura), por esse simples fato, torna-se benemérito do Brasil, cujas cidades carecem tão evidentemente de construtores hábeis capazes de aplicar os princípios eternos do bom gosto consagrados na arte Grega às circunstâncias peculiares do clima brasileiro.” Taunay, apud. Elaine Dias, op.cit., p.248. (Grifo meu).