Melancolia à brasileira: A aquarela Negra tatuada vendendo caju, de Debret

Leila Danziger [1]

DANZIGER, Leila. Melancolia à brasileira: A aquarela Negra tatuada vendendo caju, de Debret. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/melancolia_ld.htm>.

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JEAN-BAPTISTE DEBRET: Negra tatuada vendendo caju, 1827

Aquarela sobre papel

                     1.            Nos comentários que acompanham as pranchas de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, é ambíguo o olhar que Jean-Baptiste Debret lança aos negros. Embora reconheça que neste país “tudo assenta no escravo negro” e condene os castigos públicos - “revoltantes para um europeu” (DEBRET: 1954,85-86) -, o pintor segue descrevendo os negros sob a ótica racista própria ao século XIX. Em suas aquarelas, contudo, há uma empatia com os escravos, uma decidida humanidade. Se nos comentários, o negro é tratado de forma genérica, em várias pranchas, sua singularidade é notável.

                     2.            Em comentário sobre os castigos dados aos escravos, destacado por vários autores, Debret diz que “o negro é indolente, vegeta onde se encontra, compraz-se na sua nulidade e faz da preguiça sua ambição; por isso a prisão é para ele um asilo sossegado, que pode satisfazer sem perigo sua paixão pela inação.” (idem, 256-257) Essa descrição cruel corresponde, na verdade, a uma patologia. Rubim de Pinho, psiquiatra que pesquisou doenças mentais em sua relação com a cultura, lembra que a vocação para a tristeza era de fato própria aos negros importados da África. “A partir da viagem até a chegada às nossas costas, [os africanos] apresentavam estados de definhamento, ficavam parados, e a própria expressão Banzo, suposta de procedência angolana, reflete seguramente uma nostalgia, uma saudade da terra”.

                     3.                                                  [...] o banzo é apresentado como um tipo de nostalgia ou melancolia mortal dos negros da África, se tomados cativos e ausentes de suas pátrias. O antecedente do africanismo “banzar” é encontrado [...] no verbo cubanza, de língua angolana, significativo de “pensar”. (DE PINHO: 1982, 20)

                     4.            A descrição dos males do banzo corresponde àqueles que acometem os melancólicos, mencionados desde a Antiguidade. A teoria humoral de Hipócrates definiu durante séculos os sintomas da melancolia: “ânimo entristecido, sentimento de um abismo infinito, extinção do desejo e da fala, impressão de hebetude”. (ROUDINESCO: 1998, 506) Nas primeiras décadas do século XIX, Esquirol quis livrar-se da palavra melancolia, que considerava demasiado literária e vaga. Chamou-a “lipemania,” pretendendo em vão confiná-la ao domínio médico (PIGEAUD: 1988, 62).

                     5.            Mas a melancolia só pode ser compreendida como doença da cultura, e, por sua vez, doença culturalizante. O banzo é assim um dos nomes da melancolia, que na Idade Média adquiriu contornos particulares sob o termo acedia (que atingia os monges e era vista como pecado) ou spleen, indissociável da poesia de Baudelaire e do Romantismo. A melancolia já despertara, de forma positiva, o interesse de Aristóteles, e a melaina kholé  - a bile negra - faz parte da teoria dos humores de Galeno, físico que viveu em Roma no primeiro século da Era Cristã, e sintetizou conhecimentos que foram surgindo ao longo dos cinco séculos anteriores. Embora tenha sido vista como um desequilíbrio provocado pelo excesso de bile, a melancolia parece insubordinar-se à separação entre a matéria e o espírito.  Para Yves Bonnefoy, ela é um “estilhaço na carne da modernidade” que desde os gregos não teria cessado de nascer (BONNEFOY: 1989, 7-8).

                     6.            Sua mais célebre representação é certamente a gravura de Dürer, Melencolia I [Figura 1], realizada em 1514, que possui exaustiva fortuna crítica. Em 1989, Raymond Klibansky escrevia que o número de publicações relativas a essa obra é tal que um bibliotecário penaria em classificá-las. “A quantidade de escritos é proporcional à dificuldade das explicações” (KLIBANSKY e al.:1989, 13). Essa afirmação é extraída da nota introdutória da tradução francesa da imensa obra que Klibansky escreveu junto a Erwin Panofsky e Fritz Saxl - Saturno e Melancolia - cujo processo de criação estende-se ao longo de cerca de cinco décadas e domina a recepção da obra no século XX.

                     7.            O que nos interessa aqui é tomar a gravura como matriz para olharmos a aquarela de Debret, Negra tatuada vendendo caju, de 1827 [Figura 2], que não foi incluída em seu livro célebre Voyage pittoresque et historique au Brésil. Aluno e sobrinho de Jean-Louis David, com passagem pela Academia Real de Pintura e Escultura, em Paris, formado em contado com as idéias de Winckelmann e Mengs, não há de se duvidar que Debret conhecesse essa gravura de Dürer.

                     8.            Em Melencolia I, o anjo imóvel e de rosto sombrio parece não suportar o próprio peso, sustentando a cabeça inclinada sobre o punho, na postura característica do melancólico. Ao seu redor, os objetos do conhecimento, que deveriam medir o tempo e o espaço, jazem obscurecidos e inertes. O espaço da gravura é constituído pelo acúmulo, pela descontinuidade entre os objetos, que estabelecem nexos obscuros entre si, levando-nos a constituir uma lista para nomeá-los: o anjo, o compasso, o livro, o quadrado mágico, a ampulheta, o cão, o putto, o morcego, a escada, o poliedro, a esfera, o cometa, e vários outros elementos. Há uma desordem que é fruto de um embate silencioso que envolve todas as coisas. No lado esquerdo, os objetos sugerem instabilidade e perigo: o mar em suas mudanças incessantes, a esfera instável, a sombra de um crânio na face do poliedro, a escada, que oferece o risco de queda no abismo. No lado direito, predomina o aspecto sólido e estável, em que prevalece a forma arquitetônica que sugere uma torre e a figura maciça da mulher alada - alegoria da geometria para Klibansky, Panoksky e Saxl (1964) e da astronomia para Peter-Klaus Schuster (2005). Para esse último autor, Dürer retoma, na composição, minuciosamente construída, a antítese Virtus-Fortuna, recorrente no repertório alegórico humanista. Para Schuster, Melencolia I é uma exortação à virtude, endereçada ao melancólico para que seu espírito superior se forme e se eleve, apesar de todas as adversidades. A dignidade do homem no humanismo consiste em ser criador de si mesmo e, “pelo uso virtuoso de seus dons intelectuais, pela prática das artes e das ciências guiada na medida justa, só assim se faz verdadeiramente justo à imagem de Deus” (SCHUSTER: 2005, 93-94).

                     9.            A interpretação de Schuster concilia a leitura de Aby Warburg às realizadas pelo círculo de seus alunos Klibansky, Panofsky e Saxl. Segundo Warburg, a gravura de Dürer mostra a personificação da melancolia ao sair vitoriosa na luta com as sombras potentes que a habitam: a loucura, a aflição, a preguiça e o luto. A mulher alada conseguiria superar todos os males que a afligem, explorando as disposições particulares do temperamento saturnino para as ciências e as artes. A ligação entre a melancolia, a filosofia, a poesia e as artes já aparece em Aristóteles, que perguntava: “Por que razão todos os que foram homens de exceção [...] são manifestamente melancólicos?” (PIGEAUD: 1988, 81) Para o filósofo e também para Marsilio Ficino, fundador da Academia Platônica de Florença, o temperamento melancólico é a condição de todo grande espírito.

                  10.            Retornando a Warburg, ele defende que Melencolia I é uma obra reconfortante, pois mostra justamente a vitória do temperamento melancólico sobre o seu lado sombrio e a superação da aflição que o ameaça em permanência. Ao longo de uma minuciosa análise iconográfica, Panofsky e Saxl vêem, por sua vez, a personificação da melancolia resignada, vencida em sua aspiração ao conhecimento, pois percebe os limites de seu espírito em relação ao Divino e, assim recai no abatimento e no desespero.

                  11.            Independente das eventuais falhas nas interpretações iconográficas de Panoksky e dos demais historiadores, apontadas por Schuster, a recepção da gravura pela arte e pela literatura contemporâneas parece ter esquecido o debate humanista - a oposição entre a Virtude e a Fortuna - e percebe-a como um signo da fragmentação e da consciência da incompletude, tão próprias à modernidade. Contudo, para um artista formado na poética neoclássica como Debret, a recepção da gravura na chave da Virtude é certamente muito atrativa. Sua expressão é o cumprimento do dever cívico, a heróica superação dos afetos pessoais, temas de suas obras na França.

                  12.            Em Negra tatuada vendendo caju, Debret traduz a observação da paisagem humana do Rio de Janeiro em termos conceituais. Embora o formato da aquarela - horizontal, como todas as pranchas dedicadas aos escravos - seja distinto da gravura de Dürer, mantém-se, em sua ideação, fiel à divisão entre duas partes opostas como em Melencolia I. O pintor francês situa a escrava à direita da imagem, em um espaço externo e urbano, próximo a elementos sólidos e estáveis, como os degraus de uma escada, à frente de uma construção semelhante a uma casa. E o que lhe confere particular estabilidade é o marco vertical de pedra, que a supera em altura, da mesma forma que a torre é mais alta que a mulher alada na gravura alemã. A negra foi representada na postura tradicional da melancolia: o braço esquerdo sustenta o peso da cabeça e a mão direita descansa ociosa sobre a saia. Mas sua atitude é toda mais frontal, ereta, clara e aberta do que a criada por Dürer.

                  13.            A representação da cabeça apoiada sobre a mão é muito antiga e aparece até mesmo em sarcófagos egípcios, para significar a tristeza e o luto, mas aparece em outros momentos associada ao cansaço ou ao pensamento criador. (KLIBANSKY: op.cit., 450) Este motivo teria sido quase esquecido durante a Idade Média; manteve-se, contudo, presente em várias representações de Cronos, e ressurge com vigor nos séculos XV e XVI. 

                  14.                                                  Ao melancólico dos manuscritos e gravuras germânicas posando com a cabeça sobre a mão, responde, na Itália, por um lado, a figura de Heráclito, na Escola de Atenas de Rafael, e, por outro, Saturno numa gravura de Campagnola: eis a encarnação majestosa da contemplação de um Deus, o que apenas mais tarde influenciaria os retratos da contemplação humana em geral. (Idem, 452)

                  15.            Ao criar Melencolia I, Dürer extrai elementos de diversas tradições e os reorganiza em uma nova configuração, que dá forma e inteligibilidade aos intensos conflitos que atravessavam a Europa do Norte e do Sul. A menção à imensa fortuna crítica da obra inclui não apenas a sua recepção no campo das disciplinas humanistas, mas também aquela realizada por inúmeros artistas, que ao longo de cinco séculos enfrentaram o caráter enigmático da obra e atestaram sua contínua atualidade.

                  16.            Em Negra tatuada, a figura da mulher, sentada diretamente ao solo, inscreve-se num quadrado, o que potencializa a sensação de peso próprio à melancolia. O panejamento volumoso da saia, em tonalidades escuras, confere maior estabilidade à negra, que parece inamovível. À esquerda da composição, o céu da recém-fundada nação brasileira é completamente esvaziado das referências simbólicas presentes na representação do céu do Renascimento alemão. Nenhum sinal da reconciliação de Deus com os homens, simbolizada pelo arco-íris, tampouco a ambigüidade do morcego e a deriva do astro errante, como eram chamados os cometas, cuja trajetória não era ainda passível de ser calculada em 1514, o que era causa de angústia e prova dos limites do conhecimento humano.

                  17.            A presença do mar na aquarela é mais importante do que na gravura. Debret mostra uma vista da baía de Guanabara, e suas águas falaciosamente tranqüilas e pacíficas. Como escreveu Roberto Conduru, ao analisar a pintura Pesca da baleia, de Leandro Joaquim: “A baía de Guanabara foi o berço de uma cultura da violência” . Desde o extermínio dos índios e da expulsão das baleias, instalou-se “um processo contínuo de destruição e construção de referências culturais”. (CONDURU: 2004,1).

                  18.            No plano intermediário, entre a vendedora de cajus e o mar, duas escravas conversam, fazem negócios, tratam de assuntos mundanos. Embora possuam o mesmo estatuto social e exerçam as mesmas funções de ambulante, as negras que conversam parecem pertencer a uma dimensão distinta à da vendedora de cajus, que permanece alheia e indiferente no primeiro plano da imagem. Como observou Rodrigo Naves, a quem devo a descoberta da obra central deste ensaio, a vendedora de cajus encarna perfeitamente “o alheamento tristonho dos escravos” (NAVES, 1996:77). Em seu rosto, traços de pintura branca sublinham os olhos, enquanto pequenos círculos marcam a linha que vai da testa ao queixo. Uma tatuagem em forma de bracelete é visível logo abaixo de seu ombro nu. Os contornos de seu corpo e sua sensualidade explícita destacam-se contra o fundo da paisagem. À sua frente, uma grande bandeja de cajus reforça a sua sensualidade triste e a exposição de seu corpo, que compartilha com a fruta - cuja iguaria é situada externamente - o mesmo destino: mostrar-se, expor-se, ou, mais exatamente, vender-se.

                  19.            A associação entre sensualidade e melancolia está presente numa pintura de Lucas Cranach que pertence ao raio de propagação da obra de Dürer. La Mélancolie, de 1532 [Figura 3] tem composição semelhante à Melencolia I e retoma vários de seus elementos: o cão, a esfera, o putto (que se tornam vários). Mas o anjo de Cranach possui acentuados seus atributos femininos e detém algo de lúbrico. Sobre a mesa a seu lado, uma grande travessa com frutas diversas possui afinidades com o prato de frutas na aquarela de Debret. Para Yves Hersant, a pintura de Cranach é uma alegoria do desejo, sempre ameaçado pelo pecado:

                  20.                                                  a melancolia, segundo Cranach, vem menos de Saturno do que de Satan; e longe de oferecer aos olhos do pintor, como aos de Marsílio Ficino, a promessa intelectual de uma realização criadora, ela é denunciada como a pior ameaça a pesar sobre a salvação dos homens. (HERSANT, 2005:117)  

                  21.            Creio que a postura altiva com que a negra, em sua tristeza, é retratada por Debret constitui-se num contraponto à sensualidade, e visa minimizar seu poder de sedução, em certa medida, ‘humanizar’ a escrava, posto que a sexualidade dos negros é descrita por Debret como algo fora de controle: “O amor é menos uma paixão do que um delírio indomável que induz [o escravo] muitas vezes a fugir da casa de seus senhores, expondo-se, subjugado pelos sentidos, aos mais cruéis castigos” (DEBRET: op.cit., 257).

                  22.            Observe-se que a escrava sentada leva à cintura um conjunto de amuletos, do mesmo modo que o personagem alegórico de Dürer leva em seu cinturão uma bolsa e um molho de chaves, à pena discernível nas reproduções da obra, pois se confunde às dobras do vestido do anjo. Sobre esses elementos temos a única anotação de Dürer. As chaves e a bolsa, atributos do vestiário feminino em Nüremberg, são associados pelo próprio artista ao poder e à riqueza. Em sua ‘tradução’ de Melencolia I, Debret substitui esses elementos por amuletos da cultura afro-brasileira - a vendedora tem à cintura uma ‘penca de balangandãs’. Entre os objetos que carrega, destaca-se visivelmente uma figa, associada à sexualidade e à fertilidade, cuja função é proteger contra as doenças físicas e espirituais.

                  23.            Práticas dos negros consideradas supersticiosas por Debret aparecem em outras imagens. Em O vendedor de arruda [Figura 4], o comércio da planta, à qual atribui-se variados poderes de proteção, é realizado numa esquina da cidade, entre o vendedor e três negras. Ao contrário da aquarela Os refrescos do Largo do Palácio, em que há negociação entre negros e brancos, em O Vendedor de arruda, as trocas se dão exclusivamente entre os negros, como a sugerir que aquele tipo de prática restringia-se a eles. Mas se a crença que envolve a arruda diz que esta teria sido introduzida no Brasil pelos africanos, estes são os transmissores de uma tradição bem mais antiga, que remonta à Antiguidade. Na gravura de Dürer, um dos temas centrais, é justamente a transmissão, a permanência e o conflito entre diferentes formas de saber, grosso modo, entre a magia e a geometria. Observe-se, por exemplo, que a coroa de plantas sobre a cabeça do anjo é formada por dois tipos de ervas aquáticas (renoncule d’eau e cresson de fontaine). Essas ervas eram emplastros que deveriam combater a secura do temperamento melancólico. Na gravura, esta prática da medicina, baseada na teoria dos quatro humores, convive com os diversos signos da Geometria, tais como o poliedro, a esfera e o compasso.

                  24.            De volta à Negra tatuada, a presença dos amuletos na cintura da escrava, sem outros elementos que signifiquem a superação de um sistema de crenças associado à magia, esvazia a tensão que alimenta a imagem do século XVI. Por outro lado, a própria escolha de Debret ao construir a aquarela, informado pela potência da gravura alemã, é muito significativa dos propósitos de sua obra realizada no Brasil. Vale lembrar que na mesma época em que Debret criou essa imagem, o Romantismo alemão redescobria Dürer e Melencolia I foi valorizada como a imagem mesma da Bildung, processo de formação da cultura alemã, em sua vocação de afirmar o nacional para atingir o universal. Como percebeu Sérgio Alcides, a gravura “traduz um ato de insubmissão humanista ao determinismo cosmológico” (2001: 160); ela é uma afirmação do Humanismo ocidental.

                  25.            Ao tomá-la como modelo, em sentido muito distante daquele que a gravura terá na Alemanha, Debret reafirma os ideais missionários dos artistas franceses, e seu firme propósito de “acompanhar a marcha progressiva da civilização no Brasil”. Embora inexistam signos da Geometria em sua aquarela, a racionalidade ordena o espaço, e a própria postura erguida da negra, em sua tristeza digna e altiva, parece inseri-la por si só na “marcha da civilização”, superando o estado de natureza que Debret - em seus comentários, e apenas neles -, reserva aos escravos. “Sem o consolo do passado, sem a confiança do futuro, o africano esquece o presente, saboreando, à sombra dos algodais, o caldo da cana-de-açúcar” (DEBRET: op.cit., 86). Nessa frase, Debret descreve a plena barbárie da ausência de um tempo colocado em perspectiva pela história, no qual o escravo viveria entregue a prazeres sensuais. Sua aquarela, contudo, aponta caminhos bem mais complexos.

                  26.            Negra tatuada não é um documento que nos revele a vida dos negros, embora se alimente da observação e da experiência efetiva do artista no Rio de Janeiro, mas sim uma construção que prescreve valores para a nova nação, um quase-manifesto sutil, carregado dos ideais civilizatórios e humanistas que trouxeram os artistas da Missão Artística Francesa ao Brasil. A imagem mostra um espaço secularizado, em que as referências ao mito aparecem controladas pela ideação. É verdade que o espaço representado - sobre o qual as mulheres negras se destacam, assim como a bandeja de cajus - guarda algo não plenamente estruturado e realizado, algo em falta, à espera.

                  27.            Mas não há banzo na aquarela Negra tatuada, - mesmo porque este é um termo ainda a ser pensado, construído, habitado -, e sim uma melancolia informada pela cultura européia, sem referências específicas às formas como foram vividas e representadas a tristeza e o mal-estar de tantos exílios nas culturas africanas transportadas para o Brasil. Teríamos que esperar, creio, o modernismo para que algo de mais específico neste sentido ganhasse forma. Suspeito que a melancolia da vendedora de cajus só se torne efetivamente banzo - um sentimento mais singular, gerado pelas trocas que nos são próprias - cerca de cem anos depois, quando encarnada na Negra, de Tarsila do Amaral [Figura 5], uma pintura alegórica, como é a gravura de Dürer e também a pintura de Cranach. Como escrevia Gulhermino César, em Leite Criolo, texto de 1929: “Nós todos mamamos naqueles peitos fartos de vida e estragados de sensibilidade. Em vez da alegria, nos pegou foi a tristeza banzativa que não cuida de melhorar. Até hoje não tivemos a peneiração de quanta coisa nos amolece a vontade de responder à terra” (apud TELES: 1978, 308).

                  28.            A tela de 1923 possui o conflito, que percorrerá a breve obra de Tarsila em seus momentos mais e menos felizes, entre a aspiração à grade cubista e a afirmação da curva, entre a tarefa de apreender o estrangeiro e construir uma “entidade” nacional, na expressão feliz de Mário de Andrade. Contra o fundo geométrico da pintura, opõem-se as formas arredondadas e monumentais do corpo intumescido da negra, carregado de conflitos formais que marcam o esforço da artista em espacializar experiências que se transmitiram em silêncio, práticas que deixaram poucos vestígios em documentos.

                  29.            Uma outra importante obra de Tarsila inscreve-se decididamente na tradição ocidental da representação melancólica, orientada, contudo, pela descoberta do inconsciente e a falência daquela idéia de sujeito, cujos primórdios informavam a gravura de Dürer. Em Abaporu [Figura 6], a cabeça minúscula do personagem apóia-se sobre o punho esquerdo - na tradicional postura melancólica - e sugere estar a uma enorme distância dos pés. A imagem afirma a valorização do elemento mítico, recalcado “pela marcha da civilização” e possui uma opacidade que a vem fortalecendo ao longo dos anos.

                  30.            Abaporu foi pintado no mesmo ano em que Paulo Prado publica Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, ao qual Oswald reage, e, em seu Manifesto Antropófago responde: “a alegria é a prova dos nove”. Ainda em 1928, Mário de Andrade publica Macunaíma e instaura-se a preguiça, que é ainda um dos nomes de nossa produtiva melancolia tropical.

Referências bibliográficas

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[1] Professora-adjunta do Instituto de Artes da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), doutora em História Social da Cultura, PUC-Rio.