Arte fúnebre no século XIX: Considerações acerca da coleção de quadros de cabelos da Fundação Instituto Feminino da Bahia *

Marijara Souza Queiroz **

QUEIROZ, Marijara Souza. Arte fúnebre no século XIX: Considerações acerca da coleção de quadros de cabelos da Fundação Instituto Feminino da Bahia. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 3, jul. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/marijara.htm>.

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                     1.            O objeto de estudo deste artigo é a coleção der 40 quadros ornamentados com cabelos retirados de defuntos, também denominados escumilhas, com representações de ambientes fúnebres, que fazem parte do acervo de artes decorativas da Fundação Instituto Feminino da Bahia (a partir de agora FIFB). Nas composições [Figura 1], prevalecem os motivos florais, sobretudo chorões,[1] túmulos e inscrições lapidares que identificam o defunto lembrado e/ou homenageado, bem como as datas referentes ao nascimento, falecimento e/ou elaboração do quadro. Em geral, as molduras são ovais ou retangulares, em madeira entalhada, às vezes dourada em folha de ouro, com fundo esmaltado ou porcelanizado.

                     2.            Para além da forma, técnica e estilo, as peças aqui estudadas são documentos que dão testemunhos do pensamento e das mentalidades em voga na segunda metade do século XIX, período em que o Romantismo prevalecia enquanto movimento artístico e literário exercendo forte influência no comportamento e “espírito da época”. Tradição de origem europeia, o hábito de guardar cabelos como relíquias foi fortemente difundido no Brasil, sobretudo após a proibição dos enterros em igrejas e, consequentemente, da segregação dos mortos nos cemitérios fora do perímetro urbano. À representação do túmulo como espaço sagrado para a morada eterna segue a individualização da morte.

                     3.            Em função do pouco que se conhece sobre essa técnica, da peculiaridade do material utilizado, da imprecisão das informações acerca da origem e dos fabricantes e, sobretudo, pela bibliografia lacunar de temas relacionados ao artesanato fúnebre fortemente representado na Bahia da segunda metade do século XIX, surgiu o interesse de investigar a referida coleção e consequentemente os seus desdobramento sob a óptica cientifica. Para além, faz-se oportuno um estudo aprofundado do objeto ora apresentado no campo de abordagem das artes visuais, estabelecendo interfaces com a história cultural, afim de melhor compreender as representações fúnebres do século XIX decorrentes das transformações de pensamentos.

                     4.            De acordo com alguns registros institucionais da FIFB, entre nós e, principalmente, entre os portugueses, “a denominação escumilha foi atribuída aos trabalhos de encordoamento de cabelos, trançados e amarrados, que se transformavam em resistentes e maleáveis fios grossos”. A origem desse trabalho é atribuída à França, em meados do século XIX, com ampla difusão na Europa, quando usado para a confecção de “joias de afeto”[2] [Figura 2]. Na montagem, as joias contavam também com guarnições de ouro e, raras vezes, cravações de pedras preciosas.[3] Tais informações permitem-nos considerar que “escumilha” pode ser a denominação da técnica e não do objeto em si.

                     5.            No Glossário de termos têxteis e afins de Manuela Pinto da Costa, encontramos a definição de escumilha como “tecido muito fino e transparente de lã ou de seda”. No Dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio complementa essa mesma definição com objetividade conclusiva: “Extremosa”. Em busca da palavra extremosa encontramos referência a uma espécie de árvore pequena ornamental originária da China, de belíssimas flores. Tal definição nos faz retornar aos ornamentos que compõem os quadros de cabelos e não somente à técnica utilizada na elaboração. Em João Reis, encontramos referências à palavra “escumilha” como definição de um véu preto que cobria o defunto quando velado em domicílio próprio, definição esta, encontrada também no romance O Mulato, de Aloísio Azevedo, ao narrar o funeral de uma senhora abastada:

                     6.                                                  [...] discutindo-se a vestimenta que deveria levar Maria do Carmo, e resolveu-se que seria a de Nossa Senhora da Conceição, por ser a mais bonita e vistosa. Amância ofereceu-se prontamente para talhar a roupa. [...]. Mandaram comprar cetim cor-de-rosa, azul e branco, sapatinhos de baile, escumilha [grifo nosso] de filó para o véu, que seria franjado de ouro. Uns teimavam que a morta deveria levar um ramalhete de cravo na mão.

                     7.            Segundo a tradição popular de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, era denominada de escumilha a tarja preta usada na algibeira, para os homens, ou acima do peito, para as mulheres, em sinal de luto pela morte de um ente querido. O tecido usado para a confecção do reduzido sinal de luto era uma espécie de filó ou seda fina, provavelmente o mesmo usado no véu funerário franjado de ouro da falecida D. Maria do Carmo. Essa definição é semelhante à dada por Caldas Aulete que identifica a escumilha como uma fita preta de tecido elástico usada como braçadeira ou o chapéu em sinal de luto. Aulete complementa ainda que escumilha pode ser uma “porção de coisas miúdas” reunidas em um só conjunto.

                     8.            Ao estudar as atitudes diante da morte e dos mortos entre 1800 a 1836, período que antecede a revolta da cemiterada,[4] João José Reis utiliza para fins ilustrativos algumas peças da coleção aqui estudada, mas não analisa, nem mesmo para fins de comparação, essas nem nem outras representações da cultura material. Embora o foco da sua pesquisa seja diferente deste, com base na criteriosa interpretação do conteúdo dos documentos escritos feita por Reis, ao que parece, no período estudado não há registros de quadros de cabelos ou mesmo qualquer outro tipo de memento[5] elaborado com cabelos.

                     9.            Os estudos que seguiram a trilha desbravada por Reis pouco avançaram na análise da cultura material. Nesse sentido, Cláudia Rodrigues, em artigo que analisa o impacto da febre amarela em 1849-50, no Rio de Janeiro, sobre os costumes fúnebres, levanta a hipótese de que “a epidemia teria representado o argumento final de que os médicos precisavam para convencer o governo imperial e a população [...] da necessidade de normalização dos costumes fúnebres”, o que já havia sido sinalizado por Reis, no prólogo da sua obra, em relação à Bahia que também sofreu com a epidemia no mesmo período, culminando na proibição da abertura de novas covas em igrejas e em seus adros. Essa proibição particularmente nos interessa na medida em que marca a transformação do “estilo barroco de viver e morrer na religião” e o inicio do processo de individualização da morte.

                  10.            Segundo Philippe Ariès, da Idade Média ao século XVIII, predominou no ocidente católico, em particular na França, uma relação de proximidade entre vivos e mortos o que denominou de “morte domesticada”, ou seja, não havia separação radical “entre a vida e a morte, entre o sagrado e o profano, entre a cidade dos vivos e a cidade dos mortos”. Entretanto, temia-se, e muito, os mortos, sobretudo as mortes repentinas que não permitiam a preparação espiritual para o desenlace pacífico e, principalmente, para o planejamento de um funeral e sepultura adequados. Desde que “morridos” de morte bonita[6] e bem enterrados, os mortos não representavam perigo aos vivos. Nesse sentido, os enterros nas igrejas eram essenciais para a salvação da alma. Segundo Rodrigues, essa “familiaridade entre vivos e mortos”, costume essencialmente cristão, possibilitava a convivência cotidiana entre os religiosos e seus mortos, “pois, ao frequentarem as igrejas, pisavam, sentavam e oravam sobre as sepulturas”.

                  11.            O funeral barroco estudado por Reis caracterizava-se pela pompa: “o luxo dos caixões, dos panos funerários, a quantidade de velas queimadas, o número de participantes no cortejo - padres, pobres, confrarias, músicos, autoridades [...], o número de missas de corpo presente, a decoração da igreja” e o sepultamento. A confirmação da nossa herança portuguesa presente na opulência dos funerais também foi observada por Luiz Freire em seus estudos sobres os catafalcos[7] para exéquias[8] dos Reis ausentes, que incluíam féretro representado. Essa mentalidade predominante no Brasil até meados do século XIX, já era revista na França desde o final do século XVIII, a partir dos ideais iluministas que, gradativamente, tornaram os funerais mais econômicos, mais “civilizados” e menos barrocos.

                  12.            No Brasil, desde o início do século XIX, influenciados pelos franceses, os médicos adotaram a doutrina do miasma[9] e afirmavam que “uma organização civilizada do espaço urbano requeria que a morte fosse higienizada, sobretudo que os mortos fossem expulsos de entre os vivos” e enterrados em cemitérios distantes das cidades. Contudo, na Bahia, apenas em 1855, com o surto da cólera mórbus, que em 9 meses dizimou aproximadamente 30 mil habitantes, passou-se a rever a relação de proximidades com os mortos e com a morte. “A epidemia gerou pânico, as pessoas - inclusive padres e médicos - fugiam dos doentes e temiam se aproximar dos cadáveres de coléricos” (REIS, 1991). Diante da peste, interpretada como castigo divino, a população passou a ter horror dos mortos de modo a conformar-se com a segregação que impunha o cemitério, abandonando valores antes considerados sagrados.

                  13.            A partir daí, inicia-se um processo de transformação das atitudes diante da morte, agora individualizada, que exigem novas formas de manter viva e próxima a presença do ente querido. Segundo Áries, essa individualização gerou a preocupação com a morte do outro “cuja lamentação e saudade inspiram ao século XIX e XX o culto novo dos túmulos e dos cemitérios”. Na trilha de Ariés, Regina Abreu, em seus estudos sobre comemorações de aniversários de mortes como formas de evocação, nos diz que, “no mundo moderno” a memória não está mais incorporada “às vivencias cotidianas da tradição e dos costumes”, de modo que necessita dos “lugares de memória”, que podem ser materiais - museus, memoriais, arquivo e monumentos aos mortos - e imateriais - rituais e comemorações. Muitas vezes esses lugares de memória tomam forma de objetos determinados “passando a depender de agentes especialmente dedicados a sua produção”. (ABREU, 1994).

                  14.            À evocação dos mortos associa-se também a veneração das relíquias sagradas que atravessou toda a Idade Média como elemento estruturador do território cristão. Segundo Renato Cymbalista, corpos e fragmentos mortais de mártires e santos como ossos, cabelos, sangue, unhas e lágrimas, bem como atributos utilizados no martírio - pregos, lanças, correntes, cruzes - podiam ser distribuídos por diversas cidades mostrando a capacidade de multiplicação do poder dos santos e dos domínios cristão. “Até alguns poucos séculos atrás, não havia dúvida de que o santo em si estava presente nas relíquias, por menor que fosse”. As relíquias também simbolizaram riqueza, poder e nobreza e acompanharam, através dos séculos, os detentores das maiores fortunas e prestígios. Na América Colonial, o culto às relíquias evidencia aspectos de conflitos religiosos entre católicos e protestantes onde “missionários e índios estabeleceram um campo de traduções e interlocuções, levando adiante, nas vertentes católicas e ameríndias, o difícil trabalho de reconhecimento e apropriação do outro”. (CYMBALISTA, 2006).

                  15.            Nessa abordagem, importa destacar que a guarda de restos mortais como “repositório portátil da história e da memória”, na segunda metade do oitocentista, provavelmente sob influência das teorias higienistas e, consequentemente, da secularização, o culto aos mortos se apropria de atributos imperecíveis para veneração de seus entes queridos, iniciando um processo de sacralização individualizada. Nesse contexto, o uso do cabelo na elaboração de relíquias não consagradas é notadamente utilizado em objetos que podem ser de devoção, recordação e/ou decoração como lugar de memória que se faz representar em forma de quadros de cabelos, carregados de informações a serem decodificadas.

                  16.            Entretanto, o anonimato e imprecisão das informações encontradas junto à documentação da coleção de quadros de cabelos da FIFB tem se apresentado como uma dificuldade na interpretação dos dados obtidos e na resolução de algumas questões. Segundo texto sem autoria, na Bahia, desde o princípio do século XIX, era costume cortar-se alguns fios de cabelo das pessoas queridas, quando elas faleciam. Como uma homenagem póstuma, as famílias levavam esses fios ao Convento dos Humildes em Santo Amaro da Purificação, Recôncavo Baiano, para que as freiras executassem, com eles, o trabalho artesanal. O autor anônimo nos diz que “a escumilha é um atestado eloquente da perícia dos dedos femininos e da veneração tributada aos mortos no final do século XIX, mimos que falam de ternura e saudade”.

                  17.            A análise das etiquetas e gravações impressas ou anexadas às peças estudadas denota imprecisão nas informações anteriores. Nas marcas [Figura 3], encontram-se slogans e até mesmo endereços do fabricante, artesãos e/ou ateliês europeus, na maioria dos casos, seguido por evidências de uma produção significativa no Rio de Janeiro, evidenciando ainda que esse trabalho talvez não fosse exclusivo de mulheres, nem tão pouco do Recôncavo Baiano. João Reis em O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, apresenta quatro exemplares desses mesmos quadros apenas como ilustração do seu texto com a seguinte identificação: “Mementos aos mortos postos junto aos oratórios particulares. (Convento dos Humildes em Santo Amaro da Purificação, Bahia. Artesanato funerário do Instituto Feminino da Bahia)”. A procedência é o que talvez justifique a atribuição da origem ao referido Convento do Recôncavo Baiano.

                  18.            Em Antiguidades Brasileiras, única fonte brasileira identificada que trata diretamente do nosso assunto, Paulo Machado, dedica as páginas 229 e 230 à “escumilha”, onde encontramos referência à Madame Gillet que se dizia “trançadora e encordoadora de cabelo”, estabelecida no centro da cidade do Rio de Janeiro onde recebia encomendas desse tipo de arte. “O trabalho era executado à vista do cliente para que este tivesse a certeza de que o cabelo usado era mesmo de sua propriedade”. Ao que parece, a artista era especializada na criação de joias feitas com cabelo, embora tenha executado quadros [Figura 4] e miniaturas com representações de flores monogramas e brasões que “usando cabelos de várias cores dava nuances a seus quadros, como se fossem pintados”. Dada a dificuldade de encontrar essa variedade de cores na mesma cabeça, compreende-se a preocupação dos que preferiam presenciar a elaboração da sua relíquia.

                  19.            Machado também esclarece que “o hábito de guardar cabelo como lembrança data de tempos imemoráveis”, entretanto, somente no século XVIII ele passou a fazer parte de pequenos relicários de ouro ou prata guarnecidos de esmalte ou atrás de retratos miniaturas pintados sobre uma fina folha de marfim, protegidos em medalhões ou caixinhas e vidros. As miniaturas também foram feitas sobre pergaminhos, papelão, cobre, porcelana e esmalte. No Brasil, até a primeira metade do século XIX encontramos retratos miniaturas de militares com feixes de cabelo no verso ou mesmo de “belas jovens com pequenas madeixas guardadas atrás dos seus próprios retratos, em geral de noivado”. O que nos leva a crer que nesse trabalho, não sabemos ainda se especificamente nesse, a comemoração é o prenuncio nupcial ao invés de funeral.

                  20.            Segundo Ethel Leon, apesar de muitos miniaturistas brasileiros terem se dedicado a esta arte e muitos outros franceses tivessem passado pela corte do Rio de Janeiro, “a nobreza brasileira, em suas idas à Europa, preferia confiar seus retratos a artistas europeus de sucesso, das diversas escolas - francesa, inglesa e austríaca, sobretudo”, como é o caso de Francisca Miquelina de Souza Queiroz, que encomendou os seus retratos miniaturas [Figura 5] com uma mecha de cabelo e monograma com moldura de ouro e pérolas nos reversos [Figura 6]. Possivelmente esses trabalhos em miniatura que comemoravam a vida antecederam os nossos quadros de cabelo que comemoraram a morte.

                  21.            Em seus estudos sobre a Bahia do século XIX, Kátia Mattoso identifica que, na primeira metade do século XIX, “por vezes, conservavam-se também tranças das mulheres ou mechas de cabelos das crianças que morriam anjos”, sem acrescentar maiores informações sobre o destino das tranças e mechas. Na coleção aqui estudada encontramos um quadro de cabelo datado de 1898, entretanto, nas inscrições lapidares representadas na obra a homenagem é atribuída “à minha mãe, falecida em 1852” [Figura 7], o que indica que o cabelo da defunta ficou guardado, provavelmente em forma de trança, durante quase meio século.

                  22.            Indícios de reservas de cabelos também podem ser encontrados na modesta e singela peça com representação de um ramo de amor perfeito trabalhado em cabelos sobre cartão escuro, datado de 11 de março de 1904. Sobre este trabalho encontramos: “Cabelos do Sr. Francisco Vaz, em reserva. A moça fez para o namorado ou noivo [vivo ou morto?], mas não casou-se com ele”. Para fins de comparação, identificamos uma peça pertencente à Fazenda Santo Antônio do Paiol, no município de Valença, região cafeeira do Estado do Rio de Janeiro, onde, a trança feita em cabelos, em seu formato original, é utilizada como principal motivo ornamental do quadro [Figura 8]. Acrescenta-se à composição um monograma circundado por folhas secas. Com base nas evidências surge a hipótese de que os quadros e mesmo a técnica de encordoamento de cabelos só tenha sido utilizada no Brasil, na segunda metade do XIX.

                  23.            Essa hipótese ganha consistência a partir da análise da Era Vitoriana,[10] em voga durante quase todo o século XIX, fortemente marcada nos salões do Segundo Reinado do Brasil através dos objetos decorativos como prataria, cristais opalinas, cortinas adamascadas e, sobretudo, por uma diversidade de peças artesanais elaboradas com penas, conchas, tecido, papel e folhas secas que ficavam em redomas ou molduras ovais com vidros abaulados,[11] os mesmos utilizados nos quadros de cabelos aqui analisados. Segundo Machado, esses trabalhos eram executados em conventos ou por “famílias”, provavelmente o enfoque da palavra denote a posição social de destaque ocupada pela família executora, que os utilizavam para ornamentar oratórios particulares e pequenos relicários.

                  24.            Pela forte e marcante influência da Rainha Vitória no Brasil de D. Pedro II, vale ainda destacar que ela foi introdutora de hábitos românticos, sentimentalistas, moralistas e, sobretudo, do “sentimento de família”, exacerbados pela prematura perda do marido, o príncipe Alberto de Saxego, membro da nobreza germânica, por quem a Rainha foi eternamente apaixonada. Contrariando a tradição e a imposição da Realeza, escolheu, por amor, o marido que lhe daria nove filhos e uma vida conjugal harmoniosa e sem escândalos de modo a corresponder às expectativas nela depositada como mostra o depoimento de um bispo da Igreja Anglicana, às véspera da coroação de Vitória: “a família real precisa dar o exemplo de moralidade [...] como vamos pedir aos operários que trabalhem se uma corte pervertida desperdiça em prazeres os recursos do Tesouro?”. Bem ao modo da rígida moral protestante em que foi educada, com a puritana rainha Vitória, a Inglaterra consolida a supremacia mundial.

                  25.            Sobre a Rainha Vitória importa enfatizar que, profundamente comovida pela morte do Príncipe Alberto, em 1861, retirou os cabelos do amado e, com eles, solicitou a confecção de um quadro que representava o túmulo do falecido e acrescentou mensagens de eterno amor e lembranças. Embora haja referências anteriores, através de publicações norte americanas, sobre o uso de cabelos na elaboração de flores e ornamentos, nos países escandinavos, o ato da Rainha contribuiu definitivamente com a difusão da técnica e a adesão ao “espírito da época” na Europa Ocidental, sobretudo na França. Não pode ser desprezado ainda o fato de a Rainha ter usado o preto como luto até o final da sua longa vida.

                  26.            Para melhor compreensão do pensamento em voga na Europa, conduzido pelo pulso forte da Rainha Vitória com notórios reflexos na corte de Luiz XVI, possivelmente responsável pela popularização da moda do uso do cabelo nos trópicos brasileiros, e, sobretudo, por ser proveniente da França a maior parte da coleção aqui estudada faz-se necessário ainda traçar um panorama histórico francês da primeira metade do século XIX, durante o apogeu econômico e mercantilista decorrentes da industrialização. “Paris, no século XIX, era a capital da utilidade fútil” é o que afirma Goldenberg, em artigo que identifica o poeta Charles Baudelaire como inventor não só da modernidade, mas também do “movimento artístico que será a mais adequada oposição ao universo nebuloso das fábricas”: o romantismo.

                  27.            Segundo Arnold Hauser, o romantismo foi um movimento essencialmente burguês, pois “aboliu as convenções classicistas, a retórica e presunção palaciano-aristocrática, o estilo elevado e a linguagem refinada”. Com mais expressividade na França, Alemanha e Inglaterra, o romantismo representou uma das mais decisivas transformações na história do “espírito europeu”, impulsionado pelo desenvolvimento da sensibilidade e o sentimento enfático. Os sentimentos tornam-se mais importantes que a racionalidade e a existência só adquire sentido se guiada sob o seu domínio. Em Werther: paixão e morte (1780), um dos romances mais famosos e vendidos da época, escrito por Goethe, o amor é mostrado como uma força obsessiva e comoveu a Europa. Werther morre de amor e tudo se justifica - perda da honra, cisão da moral - se os gestos nasceram de sentimentos autênticos.

                  28.            Influenciado por Goethe, Lord Byron é o escritor que exerce influencia mais profunda sobre os seus contemporâneos, é o mais bem sucedido na formulação do novo ideal de personalidade, “exterioriza e trivializa o problema espiritual do romantismo: faz da desintegração espiritual de seu tempo um modismo social”. Através de Byron, “o desassossego e o desnorteio românticos convertem-se numa praga, o ‘mal-do-século’, o sentimento de isolamento transforma-se num culto ressentido da solidão, a perda de fé nos antigos ideais redunda num individualismo anárquico e o tédio converte-se num flerte com a vida e a morte”. (HAUSER, 2000).

                  29.            Inicialmente apenas uma atitude, mais tarde o romantismo toma forma de movimento e o “espírito romântico” passa a designar toda uma visão de mundo centrada no indivíduo. Os autores passam a retratar cada vez mais os amores trágicos, ideias utópicas e desejos de escapismo, fortemente marcados pela subjetividade e emoção. Byron confere um encanto sedutor à maldição de sua geração e influencia a literatura, a poesia, o teatro e as artes. Indispensável dizer que esses ideais chegam ao Brasil e conduzem o pensamento e sentimento da sociedade a partir de 1850. Sobretudo na Bahia, o romantismo foi mais expressivo na poesia e na literatura, através da presença marcante de poetas e escritores como Junqueira Freire e Castro Alves. Entretanto, para melhor contextualizar o nosso propósito de pesquisa, vale destacar a importância da obra de Álvares de Azevedo, pertencentes à segunda geração, conhecida como ultra-romântica.

                  30.            Álvares de Azevedo (1831-1852), tem a morte como tema preferido. O poeta chega a antever, profetizar e até desejar a morte. No poema Lembranças de Morrer Álvares de Azevedo dá instruções sobre seu túmulo e sua lápide:

                  31.                                                  Quando em meu peito rebentar-se a fibra,

                  32.                                                  Que o espírito enlaça à dor vivente,

                  33.                                                  Não derramem por mim nem uma lágrima

                  34.                                                  Em pálpebra demente. [...]

                  35.                                                  Descansem o meu leito solitário

                  36.                                                  Na floresta dos homens esquecida,

                  37.                                                  À sombra de uma cruz e escrevam nela

                  38.                                                  - Foi poeta, sonhou e amou na vida. (MAIA, 1990)

                  39.            No soneto, A virgem Morta, Álvares de Azevedo associa o sentimento da morte ao amor platônico. É quase uma excitação, um desejo mórbido pelo amor inacessível e pela atmosfera sensual e fúnebre. Vejamos a primeira e última estrofe do soneto:

                  40.                                                  Pálida, à luz da lâmpada sombria,

                  41.                                                  Sobre o leito de flores reclinada,

                  42.                                                  Como a lua por noite embalsamada,

                  43.                                                  Entre as nuvens do amor ela dormia! […]

                  44.                                                  Não te rias de mim, meu anjo lindo!

                  45.                                                  Por ti - as noites eu velei chorando,

                  46.                                                  Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo! (MAIA, 1990)

                  47.            Junqueira Freire (1832-1855) é o reflexo da obra de Álvares de Azevedo na Bahia. Ingressou no mosteiro de São Bento, mesmo sem vocação religiosa, como forma de evasão dos seus problemas pessoais, sobretudo uma espécie de atração pela morte que o angustiava. Os versos abaixo, do poema Morte, indicam o seu desengano e evocação da própria morte:

                  48.                                                  Pensamento gentil de paz eterna

                  49.                                                  Amiga morte, vem. Tu és o termo

                  50.                                                  De dous fantasmas que a existência formam

                  51.                                                  - Dessa alma vã e desse corpo enfermo. […]

                  52.                                                  Por isso, ó morte, eu te amo e não temo:

                  53.                                                  Por isso, ó morte, eu quero-te comigo.

                  54.                                                  Leva-me à região da paz horrenda

                  55.                                                  Leva-me ao nada, leva-me contigo. (MAIA, 1990)

                  56.            Castro Alves (1847-1871), descendente de família tradicional do Recôncavo Baiano, tinha consciência de sua posição e de sua condição de letrado e do papel que poderia exercer dentro da sociedade. É um caso típico de intelectual convertido em homem de ação. Realizou poesias humanitárias e liberais e participou ativamente de toda propaganda abolicionista e republicana. Apesar de ter deixado na memória do povo o aspecto abolicionista de seus poemas, Castro Alves viveu intensivamente o lado ultra-romântico de sua época impulsionado pelo conturbado amor vivido com Eugênia Câmara. No fim da vida, despediu-se de Eugênia com o poema Adeus. Vejamos:

                  57.                                                  Sinto que vou morrer! Posso, portanto,

                  58.                                                  A verdade dizer-te santa e nua:

                  59.                                                  Não quero mais teu amor! Porém minh’alma

                  60.                                                  Aqui, além, mais longe, é sempre tua.” (ALVES apud BASTOS, 2005)

                  61.            Esse sentimentalismo exacerbado e a evocação e o desejo da morte faz-se presente nos textos literários e novelas românticas publicados nos folhetins, moldando expressivamente a mentalidade da época. Importante lembrar que, insere-se nesse contexto o período de mudanças de atitudes diante da morte, analisados anteriormente. Tomaremos de empréstimo o depoimento de Castro Alves para introdução do cenário baiano de meados do século XIX, recriado por Pedro Calmon na obra A Bala de ouro: história de um crime romântico.

                  62.            Voltemos ao ano de 1854, quando fomos morar na capital, no pequeno sobrado da Rua do Rosário nº 1. Essa casa que marcaria de forma definitiva a minha vida, era cheia de lendas e mistérios: uma linda moça, nela foi assassinada pelo noivo que, louco de ciúmes, a fulminou com uma bala de ouro. Eu, menino, imaginava a cena e tinha muito medo. Ainda bem que logo depois nos mudamos. (ALVES apud BASTOS, 2005)

                  63.            O episódio que poderia ter sido novela romântica de folhetim, não deixou marcas somente em Castro Alves, mas em toda a sociedade baiana da época, como nos afirma Pedro Calmon ao analisar o fato através de pesquisa documental, depoimentos da história oral e revendo biografias dos envolvidos na história. “Não houve fato mais discutido, mais estudado mais esmaltado de cores sentimentais e lendas românticas”. O assunto foi noticiado por toda a cidade, cercado por discussões apaixonadas, verdades, suposições, fatos, boatos e até lendas, como a da bala que teria sido lavrada por um joalheiro com o ouro da “aliança inútil” de noivado. O crime aconteceu em 20 de abril de 1847, Júlia Fetal, moça instruída de incomparável beleza, tinha então 20 anos e seu prometido noivo e algoz, o Catedrático de Geografia e História no Liceu, Estanislau da Silva Lisboa, 28 anos.

                  64.            Preso em flagrante após invadir a residência da amada e atingi-la com um tiro enquanto ela tocava piano, o professor homicida, no calor do acontecimento, fez depoimentos apaixonados. O sentimentalismo romântico motivou o julgamento dividindo a opinião pública, bem ao modo de Werther de Goethe,

                  65.                                                  a defesa envolvia-se na metafísica das paixões, no romance dos amores que matam, nos casos - e eram tantos! - do eclipse da consciência ao assombrar-se o coração... Formosos argumentos! Mas a acusação ia buscar a moldura de menina e moça, o vulto esguio de Júlia [...] na crinolina farfalhante que dominara os bailes da Bahia como um raio do luar.

                  66.            Após intensos e eloquentes argumentos que recorriam à filosofia, literatura, psicologia e outras ciências, associadas ao sentimentalismo romântico, o réu foi condenado a 14 anos de prisão, o que, para a época, era quase o perdão pelo pecado cometido. Os restos mortais de Júlia Fetal encontram-se num túmulo de lápide em mármore com soneto dedicado por Adélia Castro, em lugar de honra na Igreja de N. S. da Graça. Dela, restou-nos ainda duas tapeçarias bordadas em talagarça, a lendária “bala de ouro” e um quadro de cabelo executado na Maison Derbecourt. Tessier & Heymann successurs dessinateurs en cheveux. 45 Boulevard St. Martin, Paris, França, em forma oval, fundo porcelanizado, moldura em madeira preta com vidro abaulado e guarnecido com frisos de metal ornamentado [Figura 9]. As peças foram incorporadas à coleção da FIFB através da doação de Mercedes Texeira Leal, onde permanecem até os dias atuais.

                  67.            Por conhecermos a história de morte de Júlia Fetal, cabem aqui algumas ressalvas quanto aos dados obtidos a partir da análise do objeto estudado. No quadro que lhe foi dedicado, vê-se em primeiro plano um chorão com ramos inclinados sobre um túmulo posicionado em destaque, ao centro da cena, encimado por uma cruz. A representação sugere um ambiente cemiterial com destaque à presença de chorões, árvores típicas das paisagens de necrópoles ao ar livre que, além de adornar sobriamente a morada da morte, tinham a finalidade de purificar o ambiente livrando os vivos dos temidos miasmas, o que não corresponde à real morada eterna dada a Júlia Fetal, na fechada e pouco iluminada Igreja de N. S. da Graça. Na lápide tumular do quadro, lê-se: “Júlia Fetal 14 de dezembro de 1874”, data que não coincide com o falecimento da proprietária do cabelo e, caso não tenha havido inversão dos dois últimos algarismos por erro ou distração do encomendador ou executor, provavelmente corresponda à data de elaboração do trabalho.

                  68.            Caso prevaleça esta hipótese, a representação do memento em questão não corresponde fielmente à realidade histórica acerca do funeral da ilustre personagem, que foi imortalizada pela memória coletiva, a partir da trágica morte, bem como pelo produto da mentalidade em voga: o quadro de cabelo. Neste primeiro momento, não há dados suficientes para afirmamos se essa ocorrência é regra ou caso isolado. Entretanto, podemos considerar o fato de que a peça foi executada por artesão do além mar, 27 anos após a morte de Júlia Fetal, por intermédio de pessoa cuja identidade e grau de parentesco nos é desconhecida, portanto, suscetível a novas interpretações. Outra hipótese surgida a partir do cruzamento de informações com as demais peças da coleção é de que a identificação na lápide não pretenda registrar a data de morte e sim referir-se à data da homenagem prestada por algum ente querido em forma de lembrança materializada.

                  69.            A segunda hipótese também pode ser considerada no caso de duas escumilhas feitas por Guillaume Meziat, no ateliê A La Pensèe, à. Rua de São Francisco de Assis, 70 (antiga da Carioca), Rio de Janeiro, conforme descrição na etiqueta que trás o slogan Ao Amor Perfeito - Trabalhos Artísticos em Cabelos” [Figura 10]. De características formais semelhantes, ambas tem formas ovais, molduras em madeira com verniz preto e friso dourado, vidro abaulado e fundo porcelanizado. Entretanto, a primeira representa uma palma curvada para a direita com uma faixa na parte inferior da haste em forma de laço, onde, no centro, lê-se: “Lembrança de Anaminha 28 de 7bro 1889” [Figura 11]. A segunda traz representação de um coração em mechas atadas por um nó, na parte inferior, ladeado por um chorão e uma palma, no centro, lê-se “A meu pai” e na parte inferior repete-se a “Lembrança de Anaminha 28 de 7bro 1889”.

                  70.            Nos arquivos institucionais[12] encontramos a informação de que Annaminha Coelho de Magalhães foi hospede do pensionato São José, no então Instituto Feminino, em março de 1958, período em que doou as peças para o Museu da FIFB, já existente na época. A informação foi possível graças ao incidente durante a viagem (possivelmente a hóspede ofertante residia no Rio e estava de passagem pela Bahia) que partiu em seis pedaços, parte da porcelana, na qual é montado o desenho do cabelo, o que resultou na perda da parte menor que ficava ao centro de um dos quadros. Neste caso, sabe-se que um dos homenageados, beneficiado com o memento que o eternizará através da salva-guarda das coleções a que os museus se comprometem, foi o pai da doadora. A outra, não sabemos a quem foi dedicada.

                  71.            Caso parecido é o intermediado pelo Dr. Pedro Lago, doador de três peças em 1947. A primeira [Figura 12], “um quadro de cabelos em memória a Ângela Sampaio Viana de Lacerda, falecida em 1877”, em forma oval, fundo de vidro, moldura em madeira preta com frisos em metal junto ao vidro abaulado, é composto por seis mechas dispostas em forma de voluta, três de cada lado, presas na parte inferior por uma faixa. Ao centro, o monograma “A.F.L.” ladeado por flores miúdas também em cabelos. A segunda traz referencias semelhantes à primeira diferindo na composição, onde predominam mechas em cabelos claros formando uma grande voluta contornada por duas plumas. Na parte inferior, uma faixa prende a mecha, à direita, um ramo de flores e à esquerda lê-se: “A.F.L. falecido em 29 de Julio de 1872”. Na terceira [Figura 13], um ramo de flores é representado com uma grande rosa em destaque ao centro e, pintado sobre o fundo porcelanizado, lê-se “L.A.Z.D falecida em 31 de agosto de 1894”.

                  72.            Através dos cadernos antigos, já sinalizados anteriormente, sabe-se que A.F.L. refere-se às iniciais do nome do Comendador Antonio Francisco de Lacerda, fundador da próspera Fábrica de Tecidos em Valença, posteriormente Valença Industrial e, Ângela Sampaio Viana Lacerda, sua esposa, foi uma das fundadoras da Associação Senhoras de Caridade. Nos primeiros casos referentes à oferta do Dr. Pedro Lago, acreditamos que o cabelo usado nas composições elaboradas em Paris, França, pertencia ao Comendador Lacerda que tem seu monograma representado nos dois trabalhos. A terceira peça, dedicada à falecida L.A.Z.D., ainda não identificada, foi elaborada também em Paris por intermédio do genro do Casal Lacerda, Eduardo Callebaut casado com Maria Lacerda Callebaut. Sobre o ilustre doador, não sabemos ao certo qual o grau de parentesco com a família Lacerda.

                  73.            As peças mais trabalhadas no entalhe da madeira e no douramento foram executadas na Europa no final do século XIX, não sabemos ainda em que país, e procederam do Sr. João Germano dos Santos que homenageou, em uma, “P.C.C.” [Figura 14] e, em outra, “M.J.B.J” [Figura 15]. As duas peças trazem molduras ovais em madeira entalhada e dourada, com ornatos em relevo. Sobre o fundo porcelanizado, vê-se, na primeira, um túmulo com o monograma encimado por dois corações traspassados por uma espada e uma cruz com um coração ardente no transepto. Acima da cruz, um resplendor com uma pomba ao centro. O túmulo está sobre vegetação rasteira e dos lados encontram-se dois ramos de flores que vão até a altura da cruz. A segunda representa uma coroa de loros que traz ao centro um ramo de flores e, na parte inferior o monograma.

                  74.            Se tomarmos como referência a peça entalhada e dourada, menos ornamentada do que as primeiras, adquirida pela professora Cristina Guerra [Figura 16] pelo valor referente a um mês dos seus honorários, é possível avaliar o preço que os herdeiros de P.C.C. e M.J.B.J. tiveram que pagar para eternizar seus mortos. Somado a isso, deve ser considerado o fato de que a professora adquiriu trabalho executado por Paulina Segal [ou Legal?], em Salvador e não na Europa. Vale ressaltar que, segundo bibliografia norte americana, os trabalhos em cabelo é uma expressão de sentimento ao morto amado com fins comerciais que incluíam até mesmo importação de cabelos, sobretudo para a elaboração das joias. De acordo com o Manual de instruções da técnica do hairwork, em 1875, encontrou-se registros de importação de cabelos por volta de 600.000 libras.

                  75.            Menos pompa do que exagero é o que caracteriza as 2 peças provenientes do Porto, Portugal, cuja dimensão, 70 x 60 cm, distancia-se da média, 18 x 15 cm, que é o tamanho da peça quebrada por Annaminha, em percurso bem menor, durante viagem do Rio de Janeiro a Salvador. Uma delas, citada anteriormente [Figura 7], em forma oval com moldura retangular em madeira dourada, é composta por chorões inclinados sobre um mausoléu com cruz trilobada com as inscrições: “à memória de minha mãe. Nasceu a 21-3-1802 e morreu a 20-2-1852”. Ao lado do mausoléu, uma pedra tumular com a inscrição: “aqui jaz H.T.M”. O diferencial fica por conta do paspatour que traz as inscrições: “Executado no Porto (Portugal) em 1878 por D. Eponina Show da Motta e Silva Falecida em 1934 Em respeitosa homenagem a sua santa e saudosa memória oferecem seus filhos e netos”.

                  76.            Este é o único caso em que a proprietária dos cabelos e a executora do trabalho são homenageadas em um só memento. Até aqui, não dispomos de informações sobre o que teria ocorrido durante os 56 anos que separaram a execução e o falecimento da executora. Entretanto a ideia mais aceitável é de que o paspatour tenha se inserido à composição posteriormente, talvez durante um processo de restauração feita pelos herdeiros da executora. Por hora, importa-nos evidenciar o sentimento de solidariedade que marca a união de pessoas separadas por mais de um século de vida e de morte.

                  77.            A outra escumilha do Porto [Figura 17], de forma retangular, moldura em madeira entalhada e dourada com frisos e ramos em relevo, representa um mausoléu encimado por uma cruz com fotografia e as iniciais “M.T.B.A”, cercado por vegetação, com um chorão à direita e um ramo de flores à esquerda. Na parte inferior do mausoléu, um anjo ajoelhado e a inscrição: “Falecida a 25 de novembro de 1896 - Saudade. A senhora retratada, trata-se de Tereza Belchior do Amaral esposa de Braz Hermenegildo do Amaral, pais da ofertante e guardiã da peça até 1958, Luiza do Amaral Canna Brasil. O que marca neste trabalho é o acréscimo de morbidez que a imagem da falecida agrega à composição. Em contraponto, encontramos a modesta, singela e sóbria peça com cabelos de anjo,[13] que apresenta, sobre fundo em veludo verde, a foto de uma criança vestida em camisolo[14] branco, sentada em uma cadeira [Figura 18].

                  78.            O desejo de permanência do morto próximo aos familiares e o pesar destes pela perda inesperada podem ser observados no quadro feito em homenagem ao engenheiro militar formado no Rio e Janeiro e, “de lá mesmo”, ingressado no batalhão que foi à Guerra do Paraguai, onde morreu sem rever os parentes [Figura 19]. Na composição do quadro vê-se uma casa fechada, uma árvore e, à esquerda, dois pés de ciprestes e chorões. Em frente, também à esquerda, um túmulo em cuja pedra encontra-se os dizeres: “Dionísio Elisiário Pereira - 15 de dezembro de 1895”. No material utilizado para a composição prevalecem a serragem de madeira e as folhas secas. Caso haja cabelo, são imperceptíveis, provavelmente, este não pôde ser retirado após a morte longínqua. Resta-nos saber se o falecido tinha reserva de cabelos ou, neste caso, o cabelo se fez representar pelos demais materiais.

                  79.            De modo genérico, no que se refere aos materiais usados nas composições das cenas fúnebres, prevalece a presença do cabelo [Figura 20], quase sempre em maior proporção em relação aos demais materiais. Na sequência, encontra-se as folhas secas e a serragem ou pó de madeira que, intencionalmente, dão a ideia de cabelos [Figura 21]. Para ornamentação da composição, usa-se fios e papéis dourados, pedrarias e tecidos como o cetim de seda, o tule e o feltro. Pela impossibilidade de analise, neste primeiro momento, de todas as peças da coleção, sobretudo, pela dificuldade de fazer cruzamento das informações agregadas a cada peça, de modo a possibilitar a compreensão do processo de concepção, execução, difusão e comercialização, apresentaremos na Tabela 1 abaixo, como ponto de partida, os dados obtidos até então, referentes à origem.

       1.           

                                                                  2.            TABELA 1 - ORIGEM DOS QUADROS DE CABELO DA COLEÇÃO FIFB

                     3.            Vale registrar que, da coleção, onze (11) quadros de cabelos têm autoria e endereço de execução. Dentre estes, não foram citados anteriormente: Orfévrerie & Bilouterie Mascar. Artiste Cheevuix, Place de la PrefectureJ. Heymann. Dessins & Bijoux Artistiques en chevaux. 45 Boulevard St. MartinE.C. 40 Medailles D’honneurMon Charleux Bté Jeaudonnenc Sr. Bijourteier Ft. Dessinateur En Cheveux. Passage do Havre, 39, 41. ET 43; e,  Charleux Paris. Passage do Havre, 41, todos em Paris, na França.

Considerações finais

                     4.            Apesar dos indícios de que houve uma produção desse artefato no Brasil e mesmo na Bahia, nas peças da coleção aqui analisadas prevalece a origem europeia, sobretudo francesa. Para fins comparativos, no acervo do Museu Paulista encontramos um quadro feito com cachos de cabelo que pertenceram à II Baronesa de Judiaí, Anna Joaquina do Prado Fonseca, decorada com flores e ramos secos, com o monograma “BJ” ao centro [Figura 22]. A moldura é dourada com flores entalhadas em relevo, confeccionado em Paris, no século XIX.

                     5.            Através do Inventário das Fazendas do Vale do Paraíba Fluminense realizado através do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro - INEPAC há indícios de trabalhos com cabelo existentes nas antigas fazendas cafeeiras da região, hoje transformadas em memoriais ou luxuosos Hotéis Fazendas, que pertenceram aos Barões do café no século XIX, o que denota que, em geral, a clientela, especialmente a europeia, pertencia às camadas mais abastadas da sociedade.

                     6.            A partir dessa abordagem inicial podemos considerar a hipótese de que a escumilha foi uma técnica de encordoamento de cabelos difundida na Europa, na segunda metade do século XIX, com notórios reflexos no Brasil de D. Pedro II, onde se fez representar através de joias e, sobretudo, quadros de cabelos em homenagem ou veneração aos mortos. No Brasil, há evidencias de uma produção mais concentrada no Rio de Janeiro, através de ateliês europeus estabelecidos nesta cidade, e na Bahia, com propensão a uma produção em conventos ligados a ordens religiosas de Recolhimento, sobretudo no Convento de Nossa Senhora do Recolhimento dos Humildes em Santo Amaro da Purificação que, tradicionalmente, desenvolvia trabalhos manuais para comercialização e manutenção das recolhidas.

                     7.            Com base no recorte feito para estudo da coleção constatamos que na Bahia, ou mesmo no Brasil, embora a mentalidade de uma época tenda a abranger todas as classes sociais, o modismo da elaboração do artefato em cabelos foi seguido por uma camada mais abastada e restrita da sociedade, seja pelo número reduzido de artesãos locais que tiveram o domínio da técnica, seja por uma preferência mais relacionada ao consumo de produtos genuinamente europeus, como regra de civilidade e status social, o que, em ambos os casos, encarecia o produto final. Não sabemos ao certo. O fato é que, até aqui, não temos notícia de nenhuma peça proveniente das camadas menos favorecidas da sociedade.

                     8.            Os quadros de cabelo se apresentam como lugares de memória individualizados que permaneciam na residência dos familiares do falecido, possivelmente postos junto a oratórios particulares como expressão de pesar, gosto e estilo de uma época fortemente marcada pela morbidez e o sentimentalismo romântico em voga durante o período.

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Arquivo Consultado

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* Artigo apresentado ao curso Mestrado em Artes Visuais do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia para avaliação parcial da disciplina Artes Visuais na Bahia, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire em julho de 2009.

** Mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia. Bacharela em Museologia pela Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do Serviço Educativo da Fundação Instituto Feminino da Bahia.

[1] “1 - Árvore ornamental de origem australiana sem folhas e com râmulos verdes, muito cultivada nos jardins. In. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. 2 - Árvore com flores lineares verde-claro e galhos compridos pendentes. É frequentemente cultivada na beira de rios, riachos, lagoas, etc. em virtude do seu grande valor ornamental. Os galhos podem ser aproveitados para obras de vime” (MAGALHÃES, Álvaro. Dicionário Enciclopédico Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. O Globo, 1946).

[2] Termo interpretado por SANTOS, Irina Aragão. Jóias de afeto: um catálogo de referências sobre usos e significados na sociedade brasileira na segunda metade do século XIX. Programa de Pós-graduação em História Comparada. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. UFRJ. (Dissertação de mestrado).

[3] As pedras mais comuns encontradas nas joias de afeto são as aventurinas, conhecidas também como pedra de ourives.

[4] Revolta popular contra a Lei Provincial de Nº 17 que concedia monopólio de 30 anos à José Augusto Pereira de Matos e Companhia de Cemitérios para construção e administração dos cemitérios da cidade de Salvador que culminou na derrubada do Cemitério do Campo Santo em 25 de outubro de 1836.

[5] Marcas que servem para lembrar alguma coisa.

[6] “Ter morte bonita” - precedida de agonia calma, demorada, sem penoso padecer, despedindo-se, dando ordens e conselhos.

[7] Estrado alto, armado em igreja ou casa mortuária, sobre o qual se coloca o féretro que por sua vez, é uma espécie de andor, comumente usado pelos romanos, onde se levava os despojos dos falecidos.

[8] Cerimônias ou honras fúnebres.

[9] Eflúvios pestilenciais, emanações, gases ou vapores pútridos, humores fétidos exalados de corpos em decomposição, bastante prejudiciais à saúde dos vivos, podendo levar até mesmo à morte.

[10] A Era Vitoriana refere-se ao maior reinado inglês sob a regência da Rainha Vitória de 1837 a 1901, considerado o auge da revolução industrial e do Império Britânico.

[11] Convexos.

[12] A documentação original do acervo da FIFB entre 1923 a 1970, dava-se através do registro de entrada de peças em cadernos na ordem crescente. Essa informação encontra-se especificamente no caderno de nº 13.

[13] Crianças falecidas antes dos 7 anos de idade.

[14] Peça de enxoval de bebê usada no século XIX.