A marcha da civilização no Brasil em três imagens de Debret sobre a escravidão [1]

Anderson Ricardo Trevisan [2]

TREVISAN, Anderson Ricardo. A marcha da civilização no Brasil em três imagens de Debret sobre a escravidão. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVI, n. 1, jan.-jun. 2021. https://doi.org/10.52913/19e20.xvi1.08

* * *

Introdução

Possa este rápido progresso da civilização não alterar nunca a antiga hospitalidade brasileira, que caracterizou durante séculos esse povo naturalmente bom e digno de figurar em primeiro plano entre as nações generosas de que a Europa se pode vangloriar! (Debret, 2015, p. 330)

1.     Durante os quinze anos em que permaneceu no Brasil, entre 1816 e 1831, o pintor Jean-Baptiste Debret (1768-1848), antigo aluno de Jacques-Louis David (1748-1825), realizou não apenas pinturas históricas sob a encomenda da corte, como havia aprendido com seu mestre na França, mas também desenhos e pinturas sobre a vida cotidiana no Rio de Janeiro.[3] Tendo permanecido quase dez anos sem possibilidades de exercer a atividade para a qual fora contratado (professor de pintura de história na Academia),[4] e com  poucas encomendas da monarquia,[5] Debret teve tempo para realizar um projeto paralelo, onde tentou, através de desenhos e aquarelas, retratar a vida cotidiana no Rio de Janeiro. Podemos, apenas para contrapor às obras de pintura histórica, chamar esses trabalhos de pinturas prosaicas, já que tratam de temas pouco valorizados pelo gênero histórico (cenas de rua, escravos de ganho, interiores de casas de pessoas comuns, ciganos, crianças brincando etc.).

2.     Este artigo propõe-se a analisar, dentro dos pressupostos da sociologia histórica da arte de Pierre Francastel (1993), algumas imagens criadas nesse contexto, problematizando-as em relação aos textos que as acompanham e aos ideais de “progresso” e “civilização” recorrentes nas proposições do artista. Segundo Francastel, um duplo erro pode acometer estudos sociológicos da arte: o primeiro reside na pressuposição do conhecimento das estruturas sociais, o que faz com que a arte seja olhada como um “ornamento, um acessório, uma superestrutura social, em vez de se interrogar e analisar como uma função fundamental” (FRANCASTEL, 1990, p. 91), ignorando a ideia de que a obra de arte possa ter uma significação própria, irredutível a todas as outras linguagens (1970, p.09). Em segundo lugar, erra-se ao se esquivar de ver a arte como uma das principais intérpretes dos sistemas míticos de explicação do universo (FRANCASTEL, 1990, p. 91), ou seja, como algo que se realiza a partir do imaginário, tanto na sua produção quanto na sua percepção. Por essa razão, é a partir das imagens de Debret, ou melhor, dos sentidos que a análise sociológica constrói a partir delas, que a questão da escravidão e da “civilização” serão discutidas. Nesse sentido, optou-se por imagens criadas pelo artista francês em que os personagens caminham em fila, o que sugere a ideia de “marcha.”

3.     As análises que seguem evidenciam os contrastes de um meio social, marcado e sustentado pela escravidão. No entanto, esse contraste dá ênfase à presença de pessoas negras, diferentemente das suas pinturas de temas oficiais, nas quais pessoas escravizadas aparecem diminutas em meio à paisagem, como em Aceitação Provisória da Constituição de Lisboa [Figura 1], por exemplo.

4.     Nas aquarelas e litografias com temas prosaicos ou cotidianos, as figuras humanas ganham destaque e podem ser observadas em seus detalhes. O ambiente, nesses casos, perde sua preponderância, convertendo-se em mero espaço a ser ocupado pelos personagens, que sustentam e dão forma a esse espaço visual. As imagens escolhidas para esse exercício interpretativo foram: Um funcionário a passeio com a sua família; Mulata a caminho do sítio para as festas de Natal (ambas litografias presentes no livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, publicado entre 1834 e 1839, na França e em 1940 no Brasil) e Meninos brincando de soldados ou O primeiro ímpeto da virtude guerreira, aquarela de 1827 (imagem que não compôs seu livro).

5.     Pretende-se, com essas reflexões, avançar na investigação minuciosa[6] acerca deste importante artista, que, através de seu “pensamento visual,”[7] realizou uma interpretação específica de Brasil, que convém ser sempre problematizada.

IMAGENS DE UMA SOCIEDADE EM MARCHA

I. Um funcionário a passeio com sua família. 

6.     Em Um funcionário a passeio com sua família [Figura 2], vemos uma cena simples construída a partir de pouco elementos visuais. No lado direito da composição, nota-se apenas parte da fachada de uma residência, com uma janela fechada e uma porta aberta, que tem imediatamente acima o número “1820,” sugerindo a data em que a casa foi construída, sua numeração ou, mais provavelmente, a data da realização da aquarela original, Empregado do governo saindo a passeio [Figura 3].[8] Ao fundo nota-se uma discreta paisagem com montes acinzentados e algumas construções logo abaixo, tudo muito claro e com pouca definição - paisagem esta que só é perceptível na litografia, pois na aquarela original, pertencente à Fundação Castro Maya, essa paisagem de fundo praticamente não se nota.[9]

7.     No solo da parte externa dessa residência, percebe-se uma espécie de calçamento. Pela porta da casa, saem pessoas em fila. Bem à frente vemos um homem branco, com traje oficial, ligeiramente afastado da fila que o segue. Ele está localizado no lado esquerdo da composição, mais próximo à base da gravura que os demais personagens, seja pelo declive do solo à medida que se avança para o lado esquerdo da composição, seja pela perspectiva aplicada. Tudo realça esse personagem e o aproxima do observador. De início, uma hierarquia é sugerida. No restante da imagem, vemos ainda outros dez personagens. Imediatamente atrás do homem de uniforme está uma menina de vestido branco e longo que deixa apenas os pés à mostra, uma vez que até os braços estão encobertos. Tem um lenço azul no pescoço e o cabelo preso em forma de coque. Sua estatura é aproximadamente equivalente à metade da altura do homem de uniforme a sua frente. Depois vemos outra menina, um pouco mais alta, com a indumentária bem parecida com a da primeira, mas com detalhes diferentes: não usa lenço, mas tem um cinto. Em seguida vemos uma senhora branca, com vestido branco em forma de balão, com listras amarelas, e algumas rosas vermelhas estampadas na bainha da saia. Seu cabelo é preso e possui um lenço que sai de seu coque e recobre quase todo o vestido. Esse personagem chama atenção tanto pela roupa, que é bem colorida, quando pelo seu tamanho, já que Debret repetiu sua fórmula e a representou mais corpulenta que todos os demais personagens (a posteriori, graças à descrição de Debret, saberemos que suas proporções revelam, também, um estado de gestação). Atrás dela uma mulher negra, mais magra, veste-se de forma bastante elegante em comparação com outras escravas representadas por Debret. Usa um vestido branco e uma capa amarela, além de estar calçada. Sua pele é mais clara que a de outras escravas da composição, que a seguem. Depois das mulheres nota-se um homem negro carregando um guarda-chuva fechado, vestido de forma elegante, usando inclusive chapéu, apesar de também estar descalço. Os dois últimos da fila são crianças negras, bem magras, que pela posição estática parecem pouco interessadas em seguir o “cortejo,” - talvez estejam apenas aguardando a sua partida para então retornarem para dentro da residência, onde se nota o vulto de outro personagem negro.

8.     O que se percebe nessa prosaica cena de um funcionário que passeia com a família é o estabelecimento de uma hierarquia. O homem, chefe da casa, está na frente e tem grande destaque, não apenas por ser o primeiro da fila, mas ainda por estar a uma distância maior do segundo membro do que todos os outros da sequência, que se espremem para ocupar o pequeno espaço da aquarela. Outro fator decisivo para seu destaque é a maior proximidade com a base da composição, e consequentemente, com o espectador da obra, além do vestuário negro, com botas brilhantes, chapéu aprumado e casaco imponente. A isso se soma o bastão de comando que segura com a mão direita, repousado sobre o ombro - uma construção patriarcal de organização social.[10] As crianças brancas são construídas de forma desproporcional, pois suas cabeças são pequenas demais em relação aos corpos que as sustentam, o que também acontece com as crianças negras. Se a sugestão é de que a inteligência é proporcional ao tamanho das cabeças, as crianças, brancas ou negras, são representadas como seres menos inteligentes, e, de alguma forma, ainda “bárbaros.” Nada estranho vindo de um francês da época: lembremos rapidamente que, para a sociedade francesa, até o século XIX as crianças, assim como os bárbaros, necessitariam da “polidez” para se tornarem seres “civilizados” (STAROBINSKI, 2001, p.28).

9.     Seguindo essa lógica, tendo como motivação uma evidência empírica visual (o tamanho das cabeças em relação ao tamanho dos corpos infantis), as crianças seriam consideradas seres bárbaros, tanto as brancas como as negras, mas talvez em diferentes proporções, se levarmos em consideração suas respectivas posições na fila (as crianças brancas estão na frente, enquanto as negras são as últimas). A mulher branca está no meio do grupo e é o último personagem branco desse pequeno cortejo. Logo atrás dela vem a mulher negra vestida elegantemente e, depois os demais personagens negros, já trajando roupas simples. Tudo nessa imagem revela uma tentativa de hierarquização da sociedade e a necessidade de seguir aquele que é o modelo: um homem branco vestindo roupas europeias. Com isso, Debret reorganiza a sociedade em uma de suas obras, colocando cada personagem em um local determinado, sugerindo um movimento linear a partir da fila que constituem.

10.   Como essa obra foi escolhida para compor o álbum Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, vamos ao texto de Debret. O pintor inicia sua descrição com um comentário geral sobre a (má) influência da moda anglo-portuguesa nas vestimentas das senhoras brasileiras, e sobre a (boa) influência exercida pela moda francesa no gosto dos brasileiros, sobretudo pelo comércio da Rua do Ouvidor:

11.                                 Após dois meses de travessia, percorrendo pela primeira vez as ruas do Rio de Janeiro, obstruídas por uma turba agitada de negros carregadores e de negras vendedoras de frutas, sentimo-nos, nós, franceses, estranhamente impressionados com o fato de não ver nenhuma senhora, nem nos balcões nem nos passeios. Tivemos, entretanto, que nos resignar e esperar até o dia seguinte, dia de festa, para observar inúmeras nas igrejas. Aí as encontramos com efeito, vestidas de um modo estranhamente rebuscado, com as cores mais alegres e brilhantes, porém obedecendo a uma moda anglo-portuguesa, muito pouco graciosa, importada pela Corte de Lisboa e na qual há oito anos nada se mudara, como que por apego demasiado respeitoso à sua mãe pátria. Fiz imediatamente um desenho, mas o resultado, pela sua exatidão, foi uma verdadeira caricatura inútil de reproduzir, porque não exprime em absoluto o caráter e o temperamento brasileiros, pois o habitante do Brasil tem-se mostrado, desde então, tão entusiástico apreciador da elegância e da moda francesa que, por ocasião de minha partida, em fins de 1831, a rua do Ouvidor (rua Vivienne, de Paris no Rio) era quase inteiramente constituída de lojas francesas de todo o tipo, mantidas pela prosperidade de seu comércio. (DEBRET, 2015, p.187)

12.   É interessante perceber que, nessa primeira parte, Debret aponta o fato de as mulheres serem pouco acessíveis como “modelos” para suas obras. No caso dessa obra, até havia tal possibilidade, uma vez que, com a influência estrangeira, sobretudo a partir de 1815, a mulher carioca, como aponta Adolofo Morales de los Rios Filho, pôs enfim “o pé na rua.” Debret mostra, efetivamente, as senhoras brancas todas devidamente calçadas, o que não acontece com as mulheres escravizadas. Afinal, como aponta Rios Filho (2000, p. 331), para uma mulher daquela época, o fato de estar ou não calçada podia ser decisivo na formação de sua imagem pública: “Com o aumento do número de senhoras estrangeiras residentes na cidade, a mulher carioca põe o pé na rua. Mas, como acontecia desde priscas eras, não podia mostrá-lo a quem quer que fosse, nem deixar que, mesmo sem querer, fosse visto. Pé, visto ou mostrado, era imoral...”

13.   Logo, figurar os escravos descalços (especialmente a mulher) acentua sua valoração negativa em relação ao comportamento “civilizado” dos brancos. Para Rodrigo Naves (2001, p. 75), além de ajudar a lembrar de sua real condição, os pés descalços dos escravizados nos vários trabalhos de Debret “têm lá seu encanto, bem plantados que estão no solo, num contato rude e vigoroso com a terra.” Isso de certo seria mais pertinente se estivéssemos nos referindo às pessoas escravizadas das fazendas, o que não é o caso, pois a grande maioria dos trabalhos de Debret é sobre os escravos urbanos, um ambiente, teoricamente, avesso à “graciosidade” de estar com os pés plantados no solo. Peter Burke explica que, na história da arte, representar um indivíduo com os pés descalços poderia ser um modo aproximá-lo a um deus, como acontecia nos tempos do Imperador Augusto, na Roma de 63 a.C a 14 d.C. (BURKE, 2017, p.104). No Brasil de meados do século XIX, esclarece o autor, sapatos de couro eram muito caros e os afro-brasileiros os compravam como símbolo de status; porém, prefeririam não os usar, carregando-os nas mãos quando caminhavam nas ruas (BURKE, 2017, p.283). Nas imagens oferecidas por Debret, porém, não vemos sapatos nos pés e tampouco nas mãos dos personagens negros figurados. Marca-se, simbolicamente, diferentes posições sociais, organizadas de forma patriarcal.

14.   Além de ressaltar, com seu texto, a dificuldade de observar mulheres em cenas públicas, Debret menciona com desprezo a persistente influência anglo-portuguesa, “muito pouco graciosa” ao longo dos anos em seu comportamento e suas roupas, advertindo ainda que tais modos de se comportar e de se vestir não seriam uma expressão fiel do caráter do brasileiro. Ele finaliza o parágrafo acentuando a importância do crescente comércio francês na Rua do Ouvidor e como isso seria, sim, uma verdadeira expressão do gosto do brasileiro. Após esse longo parágrafo introdutório é que Debret efetivamente inicia os comentários sobre a cena figurada:

15.                                 A cena aqui desenhada representa a partida, para o passeio, de uma família de fortuna média, cujo chefe é funcionário. Segundo o antigo hábito observado nessa classe, o chefe de família abre a marcha, seguido, imediatamente, por seus filhos, colocados em fila por ordem de idade, indo o mais moço sempre na frente; vem a seguir a mãe, ainda grávida; atrás dela sua criada de quarto, escrava mulata, muito mais apreciada no serviço do que as negras; seguem-se a ama negra, a escrava da ama, o criado negro do senhor, um jovem escravo em fase de aprendizado, o novo negro recém-comprado, escravo de todos os outros e cuja inteligência natural mais ou menos viva vai desenvolver-se a chicotadas. O cozinheiro é o guarda da casa. (DEBRET, 2015, p. 187)

16.   Com esse pequeno parágrafo, Debret trata de descrever sua gravura, em um texto tão econômico quanto o desenho. Através dele, podemos perceber quem é quem: o chefe da família é o primeiro da fila, seguido pelos filhos e a esposa, cuja aparência robusta se justifica pela sua gravidez. A mulher negra vestida de forma elegante e de pele mais clara tem tal distinção por ser uma criada de quarto, já que, segundo Debret, a escrava mulata era “mais apreciada no serviço do que as negras.”

17.   Sem maiores surpresas, sabemos que os últimos da fila são também escravos. Com esta descrição. Debret apenas reforça a proposta de hierarquização sugerida pela gravura, estabelecida inclusive entre os próprios escravos. Contudo, vale frisar que em sua obra sobre o Rio de Janeiro Imperial, Rios Filho comenta o velho hábito português de andar em fila indiana, mas inverte a proposta visual de Debret, dizendo que tal costume, havendo persistido até 1815, obedecia a seguinte ordem: na frente iam as crianças, depois as mucamas com as criancinhas; a seguir vinham as moças e os moços, tias solteironas e em seguida a dona da casa; no final, vinha o chefe da casa (RIOS FILHO, 2000, p.331). A opção de Debret quanto a essa ordenação da cena revela uma sugestão visual para a graduação do nível de “civilização,” que aumentaria conforme a cor da pele, tendo como elemento de “transição” a ama de quarto. Não sendo negra, mas “mulata,” ela mesma tinha uma escrava à disposição (outro vestígio de sugestão hierárquica baseada no critério de tom da pele). Isso não é casual. Debret entendia o chamado “mulato” como uma raça marginal, mal-vista pelos negros e oprimida pelos brancos, sendo ela, contudo, a única capaz de realizar alguma mudança social no Brasil. Vejamos o que pintor diz sobre o caráter do “mulato,” em uma citação que, apesar, de longa, faz-se importante:

18.                                 É o mulato, no Rio de Janeiro, o homem cuja organização pode ser considerada mais robusta: esse indígena, semiafricano, dono de um temperamento em harmonia com o clima, resiste ao grande calor.

19.                                 Ele tem mais energia do que o negro e a parcela de inteligência que lhe vem da raça branca serve-lhe para orientar mais racionalmente as vantagens físicas e morais que o colocam acima do negro.

20.                                 É naturalmente presunçoso e libidinoso, e também irascível e rancoroso, oprimido, por causa da cor, pela raça branca que o despreza e pela negra que detesta a superioridade de que ele se prevalece.

21.                                 O negro, com efeito, afirma que o mulato é um monstro, uma raça maldita, porque, na sua crença, Deus a princípio criou apenas o homem branco e o homem negro.  Este raciocínio, completamente material, repercute, entretanto, na sociedade política do Brasil, onde o mulato mais ou menos civilizado tende sempre a libertar-se da posição indecisa que o branco lhe assina na ordem social.

22.                                 A cisão provocada pelo orgulho americano do mulato, de um lado, e a altivez portuguesa do brasileiro branco, de outro, é motivo de uma guerra de morte que se manifestará durante muito tempo ainda, nas perturbações políticas, entre essas duas raças rivais por vaidade.

23.                                 Uma terceira razão de desentendimento contribui ainda para desunir os homens brancos no Brasil: é a presunção nacional do português da Europa, envaidecido de seu país, que não sabe compreender a diferença de cor da geração brasileira, que a trata ironicamente de mulata, sem distinção de origem. Foi o abuso da expressão pouco política que serviu de pretexto aos movimentos revolucionários que precederam a abdicação de D. Pedro I.

24.                                 Somente a civilização poderá destruir esses elementos de desordem: materialmente, pela mistura mais frequente dos dois sangues, e moralmente, pelo progresso da educação que retifica a opinião política e a induz a respeitar o verdadeiro mérito onde quer que se encontre.

25.                                 A classe dos mulatos, muito acima da dos negros pelas suas possibilidades naturais, encontra, por isso mesmo, maiores oportunidades para libertar-se da escravidão; ela é que fornece com efeito a maior parte dos operários qualificados; é ela também a mais turbulenta e, por conseguinte a mais fácil de influenciar a fim de se fomentarem essas agitações populares em que um dia ela deixará de ser um simples instrumento, pois examinando-se esses mestiços no seu estado de perfeita civilização, particularmente nas principais cidades do Império, já se encontram inúmeros gozando da estima geral que conquistaram com seu êxito nas ciências e nas artes, na medicina ou na música, nas matemáticas ou na poesia, na cirurgia ou na pintura, êxitos cuja utilidade ou encanto deveriam constituir um título a mais em prol do esquecimento futuro dessa linha de demarcação, que o amor-próprio traçou mas que a razão deverá apagar um dia. (DEBRET, 2015, p.168-169)

26.   A longa descrição de Debret sobre esse tipo social revela o sentido máximo de sua colocação entre os brancos e negros na “marcha” representada na gravura aqui analisada. Debret apostava no “mulato” como uma “classe” naturalmente mais “capaz” de se libertar da escravidão, por ter em sua formação biológica aspectos da inteligência dos brancos. Além disso, ele antecipa as teorias de branqueamento através da miscigenação que seriam dominantes no início do século XX.[11] Pensada nesse sentido, a fila figurada na gravura é emblemática: ao fundo, dentro da casa, mal se nota o negro que é o “guarda da casa,” de tão escuro que o ambiente é mostrado, de modo que esse personagem se dissolve na penumbra. No entanto, a partir da “criada de quarto” “mulata,” os tons de pele se clareiam. Essa gravura, portanto, simboliza o plano de Debret para a “civilização” no Brasil: a percepção das diferenças entre negros e mulatos, e a possibilidade de uma mistura cada vez maior com o sangue dos brancos, cuja consequência seria o aumento das capacidades intelectuais do mulato e, por conseguinte, uma possibilidade efetiva de término para a escravidão no país.

27.   Alguns autores atribuem a essa obra uma atmosfera caricatural. Em um parecer sobre o lançamento do segundo volume de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil na França, os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foram severos na observação dessa gravura em especial, dizendo que com tal estampa Debret parecia querer fazer uma “verdadeira caricatura” dos brasileiros.[12]  Referindo-se aos costumes da época, os membros mostram indignação ao declarar que não tinham lembrança de que os empregados públicos costumassem levar suas esposas para passear em um estágio tão avançado de gravidez.[13] Contudo, a falta de “realismo” na representação de um costume, apontada pelos membros do IHGB, não seria justificativa suficiente para chamar a obra de caricatural. Será que se a mulher não estivesse grávida isso mudaria o aspecto geral da gravura? Na verdade, se observarmos o conjunto dos elementos da imagem, o fato de vários personagens andarem em fila, guiados por um “mestre,” soa um tanto caricatural, o que dá à obra um certo tom de ironia,[14] independentemente de a mulher estar grávida ou apenas com sobrepeso.

28.   No entanto, trata-se de uma leitura relativamente parcial da obra, muito influenciada pelo texto de Debret, como veremos adiante. Se nos reportarmos ao tempo em que a obra foi realizada, e sobretudo à posição de Debret como pintor desse cotidiano, podemos perceber que a imagem não revela apenas uma cena “irônica,” mas o impasse de um artista liberal, de orientação neoclássica, em meio a uma sociedade cuja economia era baseada no trabalho escravo. O que Debret realiza, portanto, não é uma mera caricatura, por mais que seja tentador fazer tal leitura, mas uma sugestão, apontando, ainda que de forma latente, as possibilidades de mudança social, que no seu ver seriam através da “civilização” dos negros com uma mistura cada vez maior com o sangue dos brancos, formando uma espécie de “classe operária,” os “mulatos” (no excerto acima ele diz: “a classe dos mulatos [...] fornece com efeito a maior parte dos operários qualificados”). Subentende-se, com isso, que a possibilidade de transformação para a condição servil desse grupo não se daria através de revoltas, mas sim pela sua aproximação com o branco. Como se percebe no final da citação, Debret se apraz em discorrer sobre o sucesso dos “mulatos civilizados” nas ciências e nas artes, e faz suas apostas para um futuro em que a razão cuidaria de apagar a linha demarcatória entre o branco e o mulato. Portanto, na progressiva “civilização” do “mulato” é que a escravidão encontraria seu fim. Como metáfora para essa “marcha,” Debret se aproveita do antigo hábito português de andar em fila, que ele se alegra em dizer que aos poucos era substituído pelo hábito francês de andar em pares, onde duas moças poderiam, finalmente “manter uma conversação antes feita sem se olharem” (DEBRET, 2015: 187).

29.   Rios Filho comenta que após 1815 houve, de fato, uma mudança no comportamento dos casais em público, que a partir de então passariam a caminhar lado a lado, e seus filhos, da mesma forma, formando pares e caminhando à sua frente. Antes, o homem sequer lhe oferecia o braço sem ressalvas, pois o mantinha esticado a fim de que a mulher apenas se segurasse nele. Apenas com a moda francesa é que o homem passou a oferecer o braço de forma menos rígida (RIOS FILHO, 2000: 331). Porém Debret não utiliza esse modelo para representar visualmente um passeio em família, o que é curioso, uma vez que poderia aproveitar tal exemplo para demonstrar o sucesso da influência francesa no comportamento do brasileiro. A persistência da “fila indiana” nessa imagem revela o peso do passado colonial na cultura brasileira da época, e a dificuldade de Debret para representar visualmente uma “marcha progressiva da civilização” que não estivesse, de fato, ainda muito arraigada a esse passado. Talvez a metáfora visual da “fila” estivesse mais próxima do ideal de progresso que norteava o pensamento de Debret do que o “caminhar em pares” herdado da cultura francesa.

30.   Contudo, ainda que se valendo de aspectos inerentes àquela sociedade, ou seja, aos hábitos lusitanos que tanto criticava, e à escravidão, em tudo contrária aos pressupostos de um “progresso da civilização,” Debret consegue, a seu modo e de forma muito subliminar, apontar uma possibilidade de transformação, que estaria personificada pela metáfora da “marcha” e do “mulato” como agente transformador, ainda que graças ao branqueamento. De qualquer forma, ele abre espaço, ainda que estreito, para pensar mudanças para aquela realidade. Mas isso Debret lançou como uma “profecia” para as futuras gerações.

II. Mulata a caminho do sítio para as festas de Natal

31.   Em Mulata a caminho do sítio para as festas de Natal [Figura 4], encontramos o mesmo esquema da imagem anterior: todos os personagens caminham enfileirados. Só que a construção aqui é mais simples. Oito mulheres negras atravessam a litografia, da extremidade direita à esquerda, ocupando todo o seu espaço longitudinal. Ao fundo, nota-se apenas um esboço de paisagem, com tons acinzentados sugerindo a existência de morros; e no primeiro plano, onde a cena acontece, há vestígios de relva. No mais, todo o destaque é dado às mulheres que percorrem o espaço plástico da imagem a caminho do campo, para comemorar o Natal, como sugere de saída o título da obra.

32.   Novamente percebemos uma hierarquia na imagem através da utilização da metáfora da marcha. No entanto, ainda que se trate de uma fila, não é o mesmo assunto da gravura anterior. Primeiro porque aqui não há nenhum representante do sexo masculino, de modo que, se existe uma sugestão de hierarquia, ela se apresenta por outros caminhos. As primeiras da fila são duas crianças, que curiosamente não estão posicionadas como as demais personagens, pois andam de mãos dadas, fugindo ao costume lusitano criticado por Debret no texto referente à gravura anterior, e aproximando-se do costume francês, onde, andando em par, duas moças podiam conversar mais livremente (DEBRET, 2015, p. 187). Contudo, existe uma diferença entre essas duas crianças: a maior, notoriamente uma menina, tem pele mais clara, veste-se de forma elegante e muito diferente da criança menor - que pode ser tanto um menino ou uma menina, dúvida instilada pela indefinição no traço de Debret nesse personagem, além do fato de estar quase escondido atrás da criança maior -, que se traja de forma simples, ainda que seja possível perceber que ela utiliza sapatos, o que é, em si,  um sinal de distinção em relação às quatro últimas escravas da cena, que estão descalças. Outro detalhe interessante é que elas não estão propriamente de mãos dadas: a criança maior segura a pequena pelo braço, como se estivesse ensinando-a a andar. Na sequência, vemos uma mulher negra, de pele mais clara, tratando-se da personagem principal da gravura, que é a “mulata” (mulatresse) que segue para o campo. Ela é mais robusta que todas as demais mulheres, o que, em se tratando de uma constante em Debret, revela sua condição de mulher pertencente à uma camada mais afortunada da sociedade. Está vestida de forma elegante, com vestido claro bordado e um xale. Usa brincos grandes e cabelo preso em forma de coque. Seus seios estão à mostra, o que não deixa de ser algo curioso, pois é a única dentre todas que se encontra nessa condição. Atrás dela, vemos outra escrava, provavelmente sua ama ou criada, pois está também vestida de forma elegante, com vestido e um xale, usando cabelo preso e brincos. Carrega em suas mãos uma gaiola com um pássaro dentro, o que denota sua condição servil. Porém, muito mais servis são as demais escravas que as seguem: todas vestidas de forma simples, com roupas em tons mais escuros. Carregam sobre as cabeças grandes fardos, talvez alimentos, roupas ou demais apetrechos necessários para um passeio no campo por ocasião de festas natalinas. É desnecessário dizer que nenhuma delas utiliza calçados, o que, de acordo com sua recorrência nas obras de Debret, denota sua condição inferior. A última escrava tem corpo pequeno e esguio, cabelo curtíssimo, aparentando ser uma escrava mais jovem.

33.   Essa obra também foi escolhida por Debret para seu livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, o que significa que existe a possibilidade de confrontar a imagem com o texto explicativo. Vejamos, então, o que o pintor falou sobre sua obra, e o que isso significa para a compreensão da imagem. Por se tratar de longa narrativa, selecionarei apenas aquilo que for de maior relevância quantos aos elementos presentes na imagem. Primeiramente, Debret faz um panorama geral do significado das festas de Natal e Páscoa (Debret destacou também o feriado de Páscoa no texto, ainda que não se refira a essa ocasião no título da litografia nem da aquarela):

34.                                 As festas de Natal e de Páscoa, sempre favorecidas no Brasil por um tempo magnífico, constituem épocas de divertimentos tanto mais generalizados quanto provocam  mais de uma semana de interrupção no trabalho das administrações e nos negócios do comércio; o descanso é igualmente aproveitado pela classe média e pela classe alta, isto é, dos diretores de repartições e dos ricos negociantes, todos proprietários rurais e interessados, portanto, em fazer essa excursão em visita às suas usinas de açúcar ou plantações de café a sete ou oito léguas da capital. (DEBRET, 2015, p. 452)

35.   Nessa explicação geral do feriado, Debret destaca sua importância, sobretudo pela interrupção de uma semana no trabalho. Arrisca-se ainda em fazer distinção entre o que considera “classe média” e “classe alta,” diferença que é minimizada na ocasião das festas natalinas, quando todos comemoram, em geral, indo para o campo. Até aqui, contudo, não notamos menção à sua gravura, pois a mulata representada não deve pertencer a nenhuma das “classes” descritas por Debret no texto. Adiante ele introduz o assunto que mais se aproxima do tema figurado:

36.                                 Quanto aos artífices, reunidos na casa de seus parentes ou amigos, proprietários de sítios vizinhos da cidade, aproveitam essas festas para gozar em liberdade os prazeres que essas curtas e pouco dispendiosas excursões lhe permitem. Basta-lhes com efeito mandar levar sua esteira e sua roupa pelo seu escravo. (DEBRET, 2015, p.452). 

37.   Aqui já podemos perceber referências à imagem, já que Debret fala da facilidade de tal excursão em razão da necessidade única de se carregar roupas e esteiras através do uso de escravos, objetos que podemos facilmente observar na imagem. Mas será que a mulata a que se refere o título pertence a essa categoria de artífices? Numa frase posterior, Debret dissolve tal dúvida, em uma citação direta à gravura:

38.                                 A mulata aqui representada é da classe dos artífices abastados. Sua filhinha abre a marcha conduzindo pela mão um negrinho, bode expiatório a seu serviço particular; vem em seguida a pesada mulata, em lindo traje de viagem, que se dirige a pé para o sítio situado num dos arrabaldes da cidade; a negra criada de quarto a acompanha carregando o pássaro predileto. A mulata contenta-se com uma criada de quarto preta a fim de não comprometer a própria cor.[15] Vem logo depois da primeira negra de serviço, com o gongá, cesto em que se coloca a roupa branca. A terceira negra carrega o leito da senhora, elegante travesseiro enrolado numa esteira de Angola (bastante bem imitada na Bahia). A quarta, encarregada de trabalhos grosseiros, lavadeira quase sempre grávida, carrega os trastes das outras companheiras; e a negra nova acompanha humildemente o cortejo, carregando a provisão de café torrado e a coberta de algodão com que se envolve à noite para dormir. (DEBRET, 2015, p.452).

39.   Essa passagem explica (na verdade, impõe) o sentido a ser percebido na imagem. Mas não se trata de uma explicação isenta de juízos de valor, uma vez que ela eleva a condição das primeiras da fila, quando fala, por exemplo, da beleza de seu traje, enquanto as últimas recebem adjetivos que reforçam sua característica servil e pouco “civilizada,” seja pelas funções que executam (“trabalhos grosseiros”) como pela sua condição próxima ao mundo natural (“lavadeira quase sempre grávida”). Também pelo texto sabemos que a criança menor, à frente, é na verdade um menino, e só está nessa posição por ser também um escravo à disposição da menina, filha da “mulata,” personagem que dá o título à obra. Debret não deixa de falar que a “mulata” era uma mulher “pesada,” como se isso fosse necessário, haja vista as enormes proporções com que ele a figurou. De qualquer forma, ainda que possa parecer um comentário pejorativo, trata-se mais de um signo de distinção em relação às escravas, em geral figuradas bem mais magras.

40.   Assim, pode-se tirar duas considerações principais da análise dessa gravura. Primeiramente, a posição de destaque dada ao “mulato” bem como sua proximidade com as pessoas da elite (aqueles a quem Debret refere-se como classes “média” e “alta”), quando reproduz os hábitos desses grupos da sociedade no feriado de Natal. Assim como na gravura analisada anteriormente onde o “mulato” tinha certo destaque como elemento de transição na hierarquia social, aqui ele assume uma importância extra: estando na ponta da fila, seria figurado com uma evolução natural dos negros, tendo, inclusive, uma superioridade em relação a eles, por sua mistura com o sangue dos brancos e por seu sucesso material (percebemos sua distinção por suas roupas, e por não carregar nada além de um lenço nas mãos). Essa gravura ganha um sentido mais amplo quando a comparamos com a gravura anterior, bem como com o texto descritivo de Debret, que mais do que simplesmente explicar as imagens, atribui-lhes valor, nesse caso, necessário para delimitar sem sombra de dúvidas as diferenças entre negros e mestiços (“mulatos”), estando esses últimos mais próximos dos brancos na escala “civilizatória.” Outro aspecto relevante é a disposição enfileirada dos personagens. Mais uma vez, Debret serviu-se de tal esquema para ilustrar a ideia de uma sociedade rumo à “civilização.”[16] Como foi dito no final da análise da gravura anterior, Debret apostava no “mulato” como agente de alguma transformação social, ou seja, na mistura entre brancos e negros, mas lançava para o futuro as possibilidades efetivas de alguma mudança. Na gravura analisada a seguir, que finaliza este artigo, teremos uma imagem emblemática a esse respeito.

III. Meninos brincando de soldados ou O primeiro ímpeto da virtude guerreira

41.   Cinco meninos, vestidos de soldados, com chapéus de papel, espadas de madeira e cavalos construídos a partir de um arco e alguns chumaços de algodão, guiam um bando de outros garotos que se espremem no lado direito de uma singela aquarela, de 15,3 por 21,6 cm [Figura 5]. Eles marcham alegremente para o lado esquerdo da aquarela, guiados pelo ânimo do primeiro menino, que olha para trás em um gesto de motivação, levantando sua espadinha e empinando seu “alazão.” Apesar de este menino ser branco, não há grande diferenciação social nesse grupo, todos brincam juntos. O único marcador simbólico de diferença social observado é o fato de ele usar sapatos e todos os demais estarem descalços, o que se justifica pelo fato de ele ser o chefe do grupo, seu guia, e ninguém parece triste com isso; ao contrário, o clima é de total diversão. Isso tudo acontece no primeiro plano da aquarela.

42.   No segundo plano é possível notar um outro grupo, não de crianças, mas de adultos, que, indo em uma direção oposta à dos meninos, parecem estar rumando para uma batalha de verdade. O plano em que se encontram é abaixo do nível do solo onde as crianças brincam, e por isso é possível ver apenas parte de seus corpos, e de suas armas. Direcionando o olhar para os últimos planos da obra, nota-se uma paisagem limpa, com poucas árvores, uma casa grande ao longe, morros e o pálido céu. A linha do horizonte não é plana, mas inclina-se à medida que se aproxima do lado direito da obra. Todos os demais planos seguem essa orientação, de modo que o chão em que os meninos brincam também tem essa inclinação, e é nesse sentido que sua marcha segue. Os soldados de verdade,[17] ao fundo, seguem em direção contrária a todo o movimento desta aquarela, e, com isso, ela ganha certo equilíbrio, haja visto que há um aglomerado de personagens no lado direito, e apenas alguns no lado esquerdo.

43.   Uma árvore, que pode ser vista parcialmente, serve como um apoio no lado esquerdo, como se ela fosse fadada a sustentar o espaço de honra que é oferecido aos meninos, que podem, assim, brincar despreocupadamente, não tendo sequer a responsabilidade de preencher todo o espaço da obra.[18] Afinal, se há algo realmente sério acontecendo, é para onde os homens do segundo plano estão se dirigindo. E, definitivamente, não é para lá que os soldadinhos pretendem ir: o que eles querem é continuar brincando.

44.   Essa aquarela apresenta uma leveza e jovialidade em tudo diversa das obras neoclássicas de Debret, e até mesmo das duas outras imagens analisadas anteriormente. Aqui não há uma preocupação em mostrar os contrastes da sociedade, nem a violência contra o negro, e menos ainda uma verdadeira cena de batalha ou de preparação para a guerra, como, por exemplo, em uma pintura histórica realizada por Debret no Brasil chamada Embarque na Praia Grande das tropas destinadas ao sítio de Montevidéu [Figura 6], realizada em 1816.

45.   A aquarela com os meninos brincando não poderia ser considerada uma obra neoclássica, pois ela é muito mais pictórica, no sentido proposto por Wölfflin (1989, p. 21-78), do que linear; não há uma definição precisa dos contornos, em razão da própria técnica; talvez seja uma brincadeira com um tema tipicamente neoclássico, como as cenas de batalha que Debret realizou na França durante o império napoleônico,[19] mas as analogias cessam por aí. É como se Debret atestasse, com esse simples desenho, sua crença de que o Brasil, país “ainda na infância,” estivesse aqui brincando de ser adulto. Por outro lado, sugere seu papel como o artista que lançou as sementes para a realização de uma pintura histórica de primeira grandeza no futuro.[20]

46.   A aquarela de Debret não parece mesmo se preocupar com o presente, ou seja, com a batalha verdadeira que se inicia no segundo plano. Ela brinca com o futuro. Por esse motivo é que se percebe que, para Debret, as mudanças necessárias para o Brasil, como a igualdade entre pessoas de cor diferente ou esse ideal coletivo, que já é incipiente na brincadeira dos meninos, era algo para o futuro. Isso já foi discutido nas obras anteriores, mas essa aquarela é emblemática a esse respeito.

Pinceladas finais: Brasil, o país do futuro

47.   Preocupado com a recepção do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil pelo seu público francês e interessado em ingressar no mercado editorial da época, Debret colocou um texto explicativo em cada uma das pranchas do livro, a fim de que uma linguagem complementasse a outra. Como foi percebido na análise das gravuras, esse texto apenas amplia o grau de construção da imagem, e força um sentido único para sua interpretação. Só que, contrariamente ao que Debret gostaria, muitas vezes as imagens desmentem aquilo que foi dito no texto, e isso é que as tornam ricas para um estudo analítico. Do contrário, bastaria realizar uma leitura laudatória de seu livro. Nesse sentido, seus textos têm uma grande importância, quando utilizados para perceber as “intenções” manifestas do artista, sua reinterpretação de si mesmo, o contexto por ele exposto, e confrontar todas essas informações com a obra final. Mas tais informações nada têm de neutras. Ao contrário, elas atribuem às gravuras uma outra dimensão, valorizando determinados elementos em detrimento de outros. Se, como diz Pierre Francastel (1993, p. 40), “tendo sempre por matéria o real, a arte lhe acrescenta sempre algo,” os textos de Debret acrescentam ainda mais elementos a esse “real” que é figurado nas obras e por meio delas.[21]

48.   Analisando as imagens prosaicas de Debret, em geral destinadas ao público francês, notou-se uma preocupação com os contrastes observados e a crítica de Debret aos costumes lusitanos. A crítica ao escravismo pôde ser percebida em uma análise apurada das imagens onde o escravizado ganha destaque, assumindo, por vezes, o papel principal das cenas figuradas, da mesma forma que os monarcas em suas pinturas históricas. Tais cenas, confrontadas com textos do autor que falam sobre a situação das pessoas negras, as justificativas de sua servidão e a necessidade de um “branqueamento” que lhes proporcionasse a liberdade, permitem perceber qual o sentido da escravidão para Debret: apesar de biologicamente justificada, era uma violação dos direitos do homem e do cidadão, como pregado durante a Revolução Francesa, da qual Debret participou como jacobino, ao lado de David. Com isso, Debret dá ao mestiço, por ele chamado “mulato,” um papel importante na transição entre o homem servil e o livre, estabelecendo uma hierarquia social, utilizando a imagem de personagens em fila para demonstrar como isso poderia acontecer. A última aquarela, onde meninos brincam de soldados, “marchando,” percebemos uma aposta do artista para o futuro do Brasil.

49.   Neste artigo, analisei apenas três imagens criadas por Debret, mas a verdade é que há pessoas escravizadas figuradas em quase todos os seus trabalhos (“Tudo se assenta pois, neste país, no escravo negro,” diria ele em seu Viagem Pitoresca (DEBRET, 2015, p. 149). Essa contradição, inerente ao Brasil oitocentista, enfraquece qualquer tentativa de Debret de apresentar um país que estava em uma “marcha progressiva para a civilização.” A escravidão era, mesmo em termos franceses, um empecilho para qualquer ideia de “civilização” e “progresso.”

50.   Por isso, a obra de Debret, mais do que uma representação fiel do Brasil escravista, é uma sugestão: ela aponta contradições e vislumbra um futuro, onde esses problemas encontrariam “naturalmente” uma solução. Mais do que um retrato do escravismo, o que Debret nos oferece, entre imagens e textos, é uma leitura dele feita por um antigo revolucionário francês, que enxergava no progresso da civilização a felicidade e o bem comum. Nesse sentido, mais do que um reflexo da nossa sociedade escravista, Debret aponta seus contrastes e contradições, e nos oferece uma espécie de espelho, exigindo de nós um posicionamento. Em que pese toda sua visada eurocêntrica, que não pode ser ignorada, ele nos oferece uma oportunidade rica de problematização de nosso passado e nos instiga a pensar em nosso presente e na luta constante que travamos a cada dia por uma sociedade mais justa e democrática.

Referências Bibliográficas

BANDEIRA, Julio; LAGO, Pedro Correia do. Debret e o Brasil: Obra completa 1816-1831. Prefácio de José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Capivara Editora, 2007.

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BURKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Unesp, 2017.

CARDOSO, Rafael et al. Castro Maya: colecionador de Debret.  Rio de Janeiro, Editora Capivara, 2003.

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, aquarelas e desenhos que não foram reproduzidos na edição de Firmin Didot - 1834. Belo Horizonte, Editora da Universidade de São Paulo, Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1989 (gravuras coloridas).

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tomos I e II, Vol I, II e III, Belo Horizonte, Editora da Universidade de São Paulo, Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1978.

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil,ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement... Par J. B. Debret. Paris, Firmin Didot et Frères, 1834-39. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3813, https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3802, https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4716 Acesso em 27 fev. 2019. 

DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Tradução de Sergio Milliet. Organização e Prefácio de Jacques Leenhardt. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015.

FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

FRANCASTEL, Pierre. Études de sociologie de l’art. Denoël/Gonthier, Paris, 1970.

FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1990.

GINZBURG, Carlo. De A. Warburg a E. H. Gombrich: Notas sobre um problema de método. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 41-94

GOMES JUNIOR, Guilherme Simões. Sobre quadros e livros: rotinas acadêmicas - Paris e Rio de Janeiro, século XIX. Tese de Livre-Docência, 218p. Universidade de São Paulo, Departamento de Sociologia, 2003.

LIMA, Valéria. J.-B Debret, historiador e pintor. A Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

LIMA, Valéria. Uma viagem com Debret. São Paulo: Jorge Zahar Ed., 2004.

NAVES, Rodrigo. Debret, o neoclassicismo e a escravidão. In: NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo, Ática, 2001, p. 41-129.

PARECER da Comissão do IHGB sobre o 2º volume de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret. Manuscrito, 1840, fls. 03. Acervo do IHGB.

PRADO, João Fernando de Almeida. Jean-Baptiste Debret. Brasiliana, volume 352. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo,1973.

RIOS FILHO, Adolfo Morales de los. Grandjean de Montigny e a evolução da arte brasileira. Rio de Janeiro, Empresa a Noite, 1941.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil. Vol. 4. Contrastes de intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 173-244.

STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

TREVISAN, Anderson Ricardo. Debret a Missão Artística de 1816: aspectos da constituição da arte acadêmica no Brasil. Plural. Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, n, 14, p. 9-32, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2007.75459 Acesso em 27 fev. 2019.

TREVISAN, Anderson Ricardo. Imagem, sociedade e conhecimento: da História Cultural à Sociologia da Arte. Leitura: Teoria e Prática, v. 37, p. 113-128, 2019.

TREVISAN, Anderson Ricardo. Imagens e textos explicativos na investigação sociológica: apontamentos teóricos para ler a Viagem pitoresca e histórica ao Brasil de Debret (1768-1848). Cadernos CERU, 21(2), p. 153-169, 2010. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/11922 acesso em 02 nov. 2018.

TRINDADE, Jaelson Bitran. O fantasma de Debret. Viajante imaginário. Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 32, mai. 2008.

WEBER, Max. Os tipos puros de dominação legítima. In: Gabriel COHN (org.). Weber. Sociologia. São Paulo: Ática, 2003, p. 128-141.

WÖLFFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da História da Arte: o problema da evolução dos estilos na arte mais recente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

______________________________

[1] Agradeço à FAPESP pelo financiamento da pesquisa da qual este artigo é parte dos resultados.

[2] Professor do Departamento de Ciências Sociais na Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Contato: detrevis@unicamp.br.

[3] Debret realizou ainda uma viagem ao sul do país, passando pela província de São Paulo, chegando até o Rio Grande do Sul, onde realizou inúmeros trabalhos sobre a paisagem e as cidades. Nem todos esses trabalhos compuseram o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, mas podem ser encontradas nas seguintes obras: PRADO,1973; BANDEIRA, 2003; BANDEIRA. LAGO, 2007; e DEBRET, 1989. Alguns pesquisadores questionam a veracidade dessa viagem de Debret ao sul do país (cfr. TRINDADE, 2008).

[4] Lembrando que, durante todo esse tempo, Debret lecionou, mas não com apoio governamental. Afinal, sendo oficialmente inaugurada em 1826, a Academia só começaria a funcionar efetivamente em 1827, e ainda assim movida pelo estatuto de Henrique José da Silva, que impedia que os alunos frequentassem, de imediato, as aulas de pintura histórica (cfr. TREVISAN, 2007).

[5] Segundo o artista, pouco mais de uma dezena de telas a óleo, entre as quais vários estudos, além dos cenários e decorações para as festas régias e imperiais (DEBRET, 2015, p. 430). Pesquisas mais recentes informam que Debret realizou cerca de 30 quadros à óleo no Brasil, muitos dos quais ainda não foram localizados (BANDEIRA, LAGO, 2007, p. 68).

[6] Afinal, como dizia Aby Warburg, “Deus está no detalhe” (BURKE, 2008, p. 21). Nessa célebre frase, o mestre de Panofsky, Saxl e Cassirer estava sugerindo a importância de se fugir dos grandes esquemas explicativos para as imagens, e buscar nelas os elementos que nos ajudem a compreender aspectos da sociedade que as produziu. Sobre o assunto, ver GINZBURG, 2003 e TREVISAN, 2019.

[7] O conceito vem de Pierre Francastel e pressupõem um sistema coerente de pensamento que possui seu modo de expressão próprio, que deve ser investigado em si mesmo (FRANCASTEL, 1993, p. 6). Nesse sentido, esquiva-se de explicações fáceis ou exteriores às imagens buscando, ao contrário disso, analisá-las em si mesmas, de modo a perceber os sentidos que elas aludem e os possíveis significados dentro de um determinado contexto.

[8] Os organizadores do catálogo raisonné indicam que a aquarela foi realizada entre 1820 e 1825 (BANDEIRA, LAGO, 2007, p.169). As aquarelas que Debret realizou no Brasil foram a base para as litografias que compuserem seu livro Voyage pitoresque et historique au Brésil, publicado em três volumes nos anos de 1834, 1835 e 1839, na França.

[9] Em grande medida, isso pode ter ocorrido pela degradação da obra, uma vez que a aquarela, por sua natureza, não tem uma grande longevidade, como a pintura a óleo, por exemplo.

[10] Segundo Max Weber, “[a] dominação patriarcal (do pai de família, do chefe da parentela ou do ‘soberano’) não é senão o tipo mais puro de dominação tradicional” (WEBER, 2003, p. 133). Não vem ao caso aqui aprofundar essa questão, que foi trabalhada por clássicos do pensamento social brasileiro como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Raymundo Faoro em suas interpretações do Brasil. Vale apenas frisar que, no sentido weberiano, a dominação tradicional, da qual o patriarcado é o tipo mais puro, difere da dominação legal, que se baseia não mais em crenças e valores tradicionais, mas em um estatuto, sendo o tipo de dominação predominante no capitalismo moderno, marcado sobretudo pela burocracia (WEBER, p. 128-31).

[11] No I Congresso Internacional das Raças, que aconteceu no Rio de Janeiro em 1911, apostava-se que o negro desapareceria ao longo do tempo no Brasil. No I Congresso de Eugenia, de 1929, o antropólogo Roquette-Pinto previa que em 2012 a população brasileira seria composta de 80% de brancos e 20% de mestiços. A mestiçagem era entendida como “um grande e caudaloso rio em que se misturavam - harmoniosamente - as três raças formadoras” (SCHWARCZ, 1998, p. 176-178).

[12] PARECER da Comissão do IHGB sobre o 2º volume de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret. Manuscrito, 1840, fls. 3.

[13] Idem.

[14] Valéria Lima atribui à maioria das gravuras de Debret sobre o brasileiro branco (português nascido no Brasil), incluindo a obra ora analisada, esse “tratamento caricatural e irônico” (LIMA, 2004, p. 52). Rodrigo Naves também destaca esse tom da gravura, quando fala desse “funcionário que desfila suas posses” (NAVES, 2001, p. 82).

[15] O tradutor Sérgio Milliet (1978, p.164) faz a seguinte observação sobre essa passagem: “Era costume, entre as pessoas mais abastadas o emprego das mulatas no cargo da criada de quarto ou camareira. Em se tratando entretanto de uma senhora mulata naturalmente se impunha a escolha de uma negra para o cargo... et pour cause, como frisa ironicamente o autor”.

[16] Valeria Lima (2007) realiza uma análise primorosa do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil a partir dessa noção de “marcha” para a civilização de Debret, inserindo o artista/autor numa chave de leitura iluminista.

[17] Percebe-se, com algum esforço, que os homens estão armados e usam chapéus semelhantes aos de soldados. Mas, de maneira geral, o que há é uma mancha sugerindo esse grupo. É necessário, portanto, uma dose de imaginação para percebê-los como soldados.

[18] Rodrigo Naves fala sobre a não-responsabilidade dos meninos em ocupar o espaço da aquarela (NAVES, 2001, p. 43).

[19] Debret realizou pinturas nesse estilo tendo Napoleão Bonaparte como personagem, seguindo o modelo do mestre Jaques-Louis David. Essas pinturas estão no Palácio de Versalhes. Sobre o assunto, ver NAVES, 2001.

[20] Segundo Gomes Junior (2003, p. 71), isso aconteceria apenas após 1850, nas obras de Pedro Américo e Vitor Meirelles.

[21] Sobre a relação entre texto e imagens no livro de Debret, ver TREVISAN, 2010.