Imagem e Tradição: A retórica e a criação visuais na obra ilustrada “História de um Pintor contada por ele mesmo” de Antônio Parreiras

Fábio Cerdera *

CERDERA, Fábio. Imagem e Tradição: a retórica e a criação visuais na obra ilustrada “História de um Pintor contada por ele mesmo” de Antônio Parreiras. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/ap_fc.htm>.

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I - A imagem como conhecimento

Nos preceituários dos antigos tratados de poética já haviam orientações, mesmo que esparsas, da melhor maneira de se conduzir e elaborar uma obra artística. Em Aristóteles podemos encontrar indicações deste fato, como por exemplo, de uma fusão de várias referências em relação à figura humana com o intuito de alcançar a beleza máxima, ideal.[1]

O aprendizado em arte sempre esteve relacionado ao passado de sua produção, vide o período arcaico da arte grega, inspirado na arte egípcia, e a arte romana que tinha como fonte a primeira.[2] A história da educação de um artista visual é a história da produção simbólica de sua área, misturando-se, por isso mesmo, com a própria história das oficinas, academias e escolas de arte, enfim, com a história dos ambientes de produção. A partir do Renascimento italiano a arte começa a sofrer um processo gradual de retorização, i. é, de formalização, codificação de seu conteúdo[3] – antes, grosso modo, transmitido oralmente – numa tentativa de, em relação às demais artes, elevar seu status na sociedade. Disciplinas como geometria, perspectiva e anatomia, mesmo que de forma precária e inconstante, começaram a ser ministradas nos centros de estudo e de ensino chamados de academias. Por outro lado, o conhecimento relacionado aos materiais artísticos passa também a ocupar, cada vez mais, um lugar de destaque nos tratados artísticos a partir de então. Com a criação da academia francesa em meados do século XVII, o amadorismo e as intenções sociais das instituições italianas anteriores cedeu lugar a uma formalidade maior, bem como a um propósito comercial, sendo subvencionada pelo estado.

A partir daí até o final do século XVIII, as academias e escolas de arte se multiplicaram avassaladoramente[4], ficando patente em todas elas que, mesmo com inúmeras tentativas de reformas e com seu desajuste aos novos tempos do século XIX, o princípio básico de ensino sempre esteve fundamentado na observação de esquemas visuais (aspectos formais de construção, compositivos e estilísticos), herança da tradição artística.[5]

Com o advento do século XX e de escolas modernas integradas à nova realidade sócio-econômica, como a Bauhaus na Alemanha, o processo de produção imagética transformou-se radicalmente em todos os âmbitos das artes visuais, contudo, podemos perceber, algumas vezes no discurso, outras na prática de artistas da época como Kandinsky, Picasso, Léger e Lhote, por exemplo, uma estrutura ideológica remanescente da tradição visual. A tradição visual parece estar presente mesmo quando se mostra enfraquecida ou negada.

Nosso objeto de pesquisa, a autobiografia ilustrada do pintor fluminense Antônio Diogo da Silva Parreiras História de um pintor contada por ele mesmo (1926), pertence a este período e está centrado no problema de como os esquemas da tradição visual estão relacionados à estrutura e ao funcionamento da imagem visual, enfim, como o conhecimento visual adquirido interfere produtivamente na significação da imagem visual.

II - Parreiras: tradição e autoria

Antônio Diogo da Silva Parreiras (1860-1937), pintor fluminense, tornou-se um dos mais singulares de sua geração, um paisagista inconfundível, mesmo tendo iniciado sua carreira tardiamente para os padrões da profissão, apenas aos 23 anos de idade – idade em que se matriculou na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, para abandoná-la um ano depois, de acordo com o que nos parece ser a mais completa biografia disponível a respeito do pintor.[6] Em realidade, este fato torna sua trajetória ainda mais impressionante, se o compararmos a um outro grande vulto das artes plásticas do século XIX, Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), o qual, por volta dos 10 anos de idade já integrava como desenhista uma missão científica francesa em sua região natal, a Paraíba e aos 15anos já ingressara na Academia.

Sabe-se que Parreiras, talvez por que teve uma formação oficial esporádica, sem o rigor e a rigidez constantes do ensino acadêmico, por assim dizer, e por ter no gênero paisagístico aquele em que mais tempo despendeu, somente veio a interessar-se por um gênero mais anedótico, social, como o histórico, por exemplo, decorridos, praticamente metade de sua vida profissional. As ilustrações para a sua autobiografia, intitulada História de um pintor contada por ele mesmo (1926), nosso objeto de pesquisa, como mencionamos anteriormente, fazem parte deste período, quando o artista já tinha passado por algumas instituições de ensino e travado contato com inúmeros artistas[7], e, por sinal, realizado diversas encomendas de pinturas de gênero histórico, como nos atesta Salgueiro, baseada na importante biografia do pintor supracitada:

Em 1896, após realizar mais uma exposição de seus trabalhos juntamente com seus alunos da Escola de Ar Livre, Parreiras decide explorar outros gêneros de pintura e seguir os conselhos que o pintor de história Vítor Meireles fazia-lhe [...] Começa a fazer estudos de animais e a pintá-los, a compor cenas de gênero, e, aproximando-se do poder, inicia uma carreira como pintor de história.[8]

Supomos, apoiando-nos nestes fatos que, a esta altura de sua vida, Parreiras já teria adquirido boa parte de seu repertório visual através dos esquemas legados pela tradição, visto que, para um gênero como o histórico, digamos que, muito menos direto, no sentido inverso de d’après nature – termo comumente aplicado à paisagem a maneira como pintava Parreiras, observando-a diretamente no local – afora o fato de ter de existir uma experiência com diversos gêneros e seus modos particulares de compor, se faz necessário, é mister forjar uma coordenação entre estes, i. é, em última análise, construir a imagem em função de sua composição. Valéry deixa transparecer este fato, quando critica a redução da arte aos gêneros da paisagem e da natureza-morta:

O desenvolvimento da paisagem parece claramente coincidir com uma diminuição singularmente marcada da parte intelectual da arte. O pintor já não tem mais tanto o que raciocinar [...] creio que pouquíssimos calculam determinada obra que desejam fazer. Nada os obriga a isso, visto que tudo se restringe à paisagem ou à natureza-morta, que, por sua vez, foram reduzidas a um divertimento de interesse local.[9]

No entanto, esta construção, que é uma invenção da imagem, não se baseia, supomos nós, nem numa idéia de pura e simples criação, nem em algo radicado exclusivamente na observação da natureza como às vezes defendia fervorosamente Parreiras e seus pares. Há numa espécie de conhecimento visual erigido ao longo de toda a história das artes visuais e nesse sentido, toda e qualquer imagem produzida no âmbito da sociedade está necessariamente em contato com tal saber.

Contudo, Antônio Parreiras vê com descrença o fato de que este conhecimento específico possa ser absorvido através da prática da cópia adotada nas academias para este fim: “Logo ao matricular-me na Academia, deram-me para copiar uma grande estampa, onde se via uma limosa Chaumière normanda. Tudo que nela estava era-me estranho, desconhecido, não me podia interessar. Impuseram-me porém copiá-la, tal qual, até aquilo que estava errado!”[10]. Por outro lado, há momentos nos quais contraditoriamente confirma, mesmo que de forma velada nossa prerrogativa, como podemos inferir a partir do seguinte trecho: “Eu me via aniquilado [...] De que me servia o que aprendi nas academias, nos museus do velho mundo?”[11]. É a confirmação destas últimas palavras, i. é, da verificação do aprendizado e de como este alicerçou a construção do sentido de sua produção, que pretendemos investigar em nosso objeto de estudo, precisamente no que concerne às suas ilustrações.

Ao observarmos de uma maneira geral como a obra de Parreiras é comentada, notamos que há uma certa dicotomia em tais análises, podemos constatar duas tendências operando: a primeira ratifica as influências sofridas pelo pintor e o fato de parte de seu saber plástico advir da tradição, seja ela pertencente a um passado remoto ou recente, como nestas palavras de Levy:

Em Veneza [...] torna-se aluno livre da Academia de Belas Artes local, freqüentando as aulas do Lombardo Filippo Cárcano (1840-1910), cuja pintura sintonizava-se por aproximação com os preceitos do impressionismo [...] Em Veneza, pinta a ilha de Chioggia e demonstra grande atenção pelas telas de Antônio Canal, o Canalleto, (1697-1768), e Francesco Guardi (1712-1793).[12]

Ou na seguinte colocação de Salgueiro:

As paisagens dos primeiros anos de Parreiras são ainda fortemente dominadas pela linguagem da paisagem pitoresca, com seus planos, distâncias, texturas, caminhos e a presença de uma figura solitária, de costas, ou de grupos pitorescos. Em pinturas de 1888, o pintor faz uso também dos recursos composicionais próprios da estética do sublime em suas paisagens, compostas de elementos denotativos da fúria da natureza como céus encrespados e escuros, árvores curvadas pela força do vento, e a presença da figura feminina, emblemática da sensibilidade romântica, numa atitude pensativa, entregue a seu mundo de reflexões e apreensões em meio ao turbilhão que se passa na natureza, sentada sobre o solo pedregoso, cheio de irregularidades e pleno de textura. É a linguagem da paisagem romântica européia da primeira metade do século XIX nas suas versões mais corriqueiras, tornadas populares e acessíveis a um público mais amplo, dentro e fora da Europa, por meio da reprodução em água-tinta ou litografia.[13]

Ou ainda em Zanini[14], para quem “Parreiras, após algumas tentativas de pintura clara em que refletia a liberdade e a inovação do Impressionismo, fixou-se em uma arte acadêmica”.

Ao passo que uma segunda tendência, onde são destacados aspectos particulares da obra de Parreiras, observa que, por exemplo – a partir de 1890 – o pintor começa a desenvolver “uma abordagem da paisagem que significa, sem dúvida, a menos idealizada e a de maior comunhão com a natureza, se comparada àquela até então praticada na arte brasileira [...] Sua obra ‘Sertanejas’ (1896) é exemplar dessa abordagem inovadora no contexto da arte brasileira, tanto no sentido temático quanto composicional [...]”[15], assim como, “a escolha de uma escala cromática de tonalidades claras representava a preocupação e o interesse de Parreiras pelos fenômenos da luminosidade da natureza brasileira, enfocada de uma maneira personal e absolutamente desvinculada de qualquer influência [...]”[16]. Constatamos dessa forma que existe um hiato, uma lacuna no confronto de ambas as posturas de análise, no que tange a uma possível relação entre o que foi transmitido e vivenciado, com a especificidade plástica da obra de Parreiras. O presente texto tenta lançar luz a esse respeito.

III - Questões e perspectivas metodológicas

Antes de mais nada é importante lembrar que desde que a arte no século XX, de um modo geral, passou a estabelecer como um dado corriqueiro mitos como do gênio, da subjetividade, da expressão e da originalidade, para citarmos alguns, anteriormente postulados pelo Romantismo, tem-se na atualidade negligenciado o papel das escolas de arte na formação do olhar artístico e das influências diversas a que o artista é submetido em seu meio. Como ser social provido de linguagem e de um métier, estas seriam inequívocas[17], o que, por outro lado, não significa situar a obra num lugar de absoluta passividade frente a influências de diversas áreas no contexto social como na perspectiva teórica adotada por Panofsky[18], por exemplo, abordagem esta que, diga-se de passagem, nem sempre se confirma.

Com algumas exceções, como as obras de Wölfflin[19] e Gombrich[20] nas quais o foco seria exatamente a herança da tradição visual no que diz respeito ao seu plano de expressão, ou, da perspectiva semiológica em geral, que percebe o domínio da produção artística como o domínio de um conhecimento específico como bem apontou-nos Mucci pouco acima, parece existir uma real carência de estudos a esse respeito.

A relação entre os esquemas da tradição visual e a significação da imagem – e aí presumimos estar a importância desta pesquisa – pode residir, conjeturamos nós, no que seria para a linguagem, seu eixo de associações[21], espécie de rede de relações sígnicas, capaz de desencadear a significação da imagem visual, perspectivando-a numa dinamização de seu plano simbólico.[22] Reiteramos, a importância deste estudo está centrada nesta questão. Essa perspectiva teórica mostra-se extremamente pertinente, na medida em que se sabe que “objetos, imagens, comportamentos podem significar, claro está, e o fazem abundantemente, mas nunca de uma maneira autônoma; qualquer sistema semiológico repassa-se de linguagem.”[23]

Sendo assim, é de nosso interesse a pesquisa deste possível fato: da correlação do aprendizado de Parreiras, em parte formal, partindo de esquemas visuais alheios, com a produção das ilustrações mencionadas. Antes disso até, de um modo mais amplo, poderíamos nos questionar, se teria mesmo essa prática corrente nas academias da época e ainda presente em muitas escolas atuais, alguma relação com o processo específico, individual de criação da imagem visual. Nossos problemas-pesquisa podem então ser formulados da seguinte forma: 1- sendo possível uma resposta afirmativa, como tal prática se daria? 2- Outrossim, como estaria relacionada qualitativamente com a produção da imagem visual?

Teria Parreiras, por sua maior experiência com a tradição visual dentro dos diversos gêneros pictóricos como a paisagem, o retrato, a pintura de gênero e a histórica, por exemplo, adquirido uma sensibilidade visual capaz de imprimir qualidade artística às referidas ilustrações? Ou melhor, na tentativa de sintetizar tudo o que foi dito: a prática de adquirir conhecimento visual por meio da sensibilização em relação a esquemas visuais a partir de outros artistas teria influenciado no processo de criação, de significação dessas ilustrações?

Para a primeira questão, a de como ocorreria a prática de citação imagética como forma de aprendizado, nossa primeira hipótese, o conceito de schemata – esquema visual – divulgado pela perspectiva perceptualista de Gombrich[24], segundo a qual seria uma imagem aproximada do que se quer representar, sendo adquirido pelo artista através do contato para com outras imagens artísticas e, utilizado numa construção imitativa em relação ao objeto, parece, mesmo que de forma incompleta e provisória, respondê-la.

No que concerne ao segundo problema, o de como as schematas poderiam contribuir qualitativamente para a imagem, ou seja, em relação ao funcionamento do seu plano do conteúdo, podemos inferir outra hipótese correlata: a imagem visual não é um sistema de significação interpretante como a linguagem, mas interpretado, ou seja, grosso modo, não representa efetivamente, mas, antes, guarda equivalência com o que se refere[25]; nesse sentido, sua significação só se concretiza no seio de seu significante, em termos de artes visuais, em seu material, sua técnica[26], os quais, por sua vez, são inseparáveis de sua forma, de sua materialidade.[27] Daí que a schemata é algo que diz respeito à matéria visual, é uma imagem aproximada do objeto, e que por sua natureza, já teria sofrido uma seleção e uma organização visuais, sendo, portanto, uma fonte trabalhada e otimizada disponível para o profissional reinventá-la semanticamente; este dado confunde-se, é imanente ao próprio modus operandi do plano simbólico da imagem visual supracitado[28], atinge diretamente, se podemos dizer assim, através de Barthes, seu eixo sistemático.

Portanto, ao falarmos de esquemas visuais da tradição, de uma forma geral, podemos estar nos referindo diretamente a uma espécie de código visual, nos interessando neste, especificamente, o que seria seu eixo paradigmático ou sistemático, o qual, em última análise, opera por duas vias: o plano da expressão, o significante e o plano do conteúdo, o significado.[29] Assim, presumimos poder sustentar uma análise estilística do significado da imagem visual, por meio de um confronto destes planos em obras distintas. Para tanto, o conceito de oposição mencionado por Barthes e definido como a relação entre os termos no campo da associação, pode nos ser útil, na medida em que obrigatoriamente trabalha com a semelhança e a dessemelhança simultânea dos mesmos, instaurando, digamos, uma troca de sentidos instantânea, o que nos leva, por contraste, ao valor da imagem analisada, no sentido de uma ampliação de sua significação.

IV - Resultados iniciais

Como um primeiro e simplificado exemplo do que temos em mente, realizaremos uma análise da quinta ilustração da referida obra de Parreiras [Figura 1]. Dentro do primeiro capítulo, o autor tece comentários para cada um dos integrantes do grupo Grimm, brindando-os, por vezes, com uma ilustração, como no caso do pintor Francisco Ribeiro. Parreiras relata-nos como Ribeiro foi um artista de poucos recursos financeiros, e que por isso, “durante muitos anos apenas desenhou, por não possuir uma caixa de tintas”[30], chegando, por fim, a abandonar definitivamente suas aspirações artísticas, diante de contínuas decepções em relação à carreira.

Parreiras encerra o capítulo com a tristeza de quem perdeu para sempre mais um colega de profissão, traduzindo imageticamente tal estado de espírito numa composição que, como buscaremos mostrar, parece remeter a outros esquemas visuais correlatos na história da arte.

A ilustração tem como ponto de partida o trecho: “Então uma saudade imensa me invade a alma. É a lembrança do passado que volta...[31], legenda que recorta a imagem, fornecendo-a imediatamente um sentido específico, sem o qual permaneceria numa vaga significação, própria deste sistema semiológico. Notamos que, o que a princípio parece ser uma espécie de animismo das palavras “saudade” e “lembrança” por analogia com o mar representado na imagem, adquire uma dimensão estrutural na medida em que há uma afinidade de qualidades. A analogia se faz no plano do conteúdo, do sistema, haja vista que uma forma similar perpassa os termos no texto e a representação dos elementos horizonte e mar na imagem, no sentido de que todos possuem a qualidade do longínquo, do profundo e do recorrente. Dentro desta mesma linha de raciocínio, torna-se evidente que, assim como a “saudade imensa me invade a alma” e a “lembrança [...] volta”, o mar na beira da praia faz o mesmo.

Em seu plano da expressão, podemos destacar, sintaticamente, a forma como todo o período foi recortado. Há uma espécie de ordenação hierárquica entre as orações, onde a duração da primeira é maior do que a da segunda. Tanto a disjunção da pausa brusca do ponto, quanto a gradação de tempo existente entre as orações, parecem marcar uma sensação de cadência e profundidade, coincidindo na imagem, por sua vez, com a corriqueira representação hierarquizada da perspectiva aérea e do intervalo das ondas. Soma-se a isso o encadeamento específico dos termos, onde cada um tem uma função dentro da oração. O advérbio “então” prepara, introduz temporalmente e aproxima a “saudade”; essa é caracterizada então como “imensa”, o que parece torná-la ainda maior, para em seguida dissolvê-la em “me invade a alma”. Da mesma forma que na segunda oração, “é”, marca de maneira breve e enfática um tempo presente, atual, “da lembrança do passado que volta”, sendo logo desmaterializada pelo recurso sugestivo, elíptico das reticências. Tudo alude às qualidades dos elementos imagéticos referidos.

Detendo-nos um pouco mais na ilustração de Parreiras, observamos de imediato que autor a desdobra estruturalmente com base na significação do trecho recortado de seu texto. O ponto de partida da imagem parece estar na silhueta do pintor, de valor alto na escala, em contraste com os rochedos, de valores mais baixos na escala, isto é, a área que concentra a oposição máxima em termos de valores dentro da imagem, atraindo prontamente o olhar do espectador. Em seguida, deslocamo-nos da extremidade superior para a inferior da curva formada pela silhueta, na medida em que sabemos que a direita do plano do quadro contém sempre uma maior força de atração, deslizando assim, por boa direção, por continuidade, até a área representada pelo mar. Retornamos à parte central da imagem, ao seu ponto de partida, em virtude, secundariamente do pequeno triângulo formado pelas rochas e a margem da praia, apontado contrariamente à direção inicial e, principalmente, pelo alto contraste no primeiro plano.

Este afigura ser basicamente o mecanismo que traduz iconicamente o texto. Algumas relações potencializam este esquema central, como o sentido gradativo, tanto dos valores marcados entre o primeiro, o segundo e o terceiro plano, quanto suas direções, vertical, inclinada e horizontal respectivamente. Enfim, o conjunto das estruturas linear e de valores, acabam por promover um fluxo, ao mesmo tempo, convergente para um estado de repouso visual à direita e expansivo na direção inversa. O observador transita fundamentalmente entre estes dois pontos na composição, o que praticamente materializa o conteúdo referencial, positivo, do retorno de uma lembrança, do lamento e do movimento do mar no texto e na ilustração.

Diante dessa pequena análise reveladora da estrutura e do funcionamento da imagem, nos perguntamos: a que recursos de uma linguagem visual recorreu Parreiras e como estes foram articulados especificamente pelo ilustrador?

Como verificamos pouco acima, espacial e temporalmente, o plano da imagem foi dividido basicamente em duas grandes áreas; um corte inclinado do lado esquerdo superior para o lado direito inferior separa o que, em termos de significante, corresponde a dois momentos distintos para o olhar: um mais definido, mais presente e outro mais indefinido, menos presente, fundidos produtivamente, instaurando a significação da imagem. Retrocedendo aos primórdios da história da composição visual, de um ponto de vista ainda bem amplo, podemos encontrar vestígios desse modo de pensar o espaço-tempo plástico na arte romana e na medieval, quando esclarecedoramente nos diz Hauser[32] que “na arte romana tardia e na arte cristã medieval emprega-se o método totalmente diferente [em relação ao Oriente antigo e da Grécia] a que Franz Wickhoff chama ‘contínuo’ [...] que retrata as várias etapas de uma ação na mesma moldura ou paisagem sem interrupção, repetindo as figuras principais em cada fase da ação [...]”. Wölfflin emite opinião semelhante, talvez no que seria a fronteira entre o sintagma e o sistema plástico, quando compara a arte renascentista e a arte barroca. Para o autor, um dos aspectos que caracterizam a produção renascentista é uma certa independência das partes, uma multiplicidade em contraposição à unidade barroca.

Para exemplificar a aplicação deste princípio de composição, no que concerne a uma associação pela substância tempo-espacial no campo expressional, obras como “O pagamento do tributo” (1426-27) de Masaccio (1401-1428) e a “Flagelação de Jesus” (1445) de Piero della Francesca (1410?-1492), para citarmos algumas das mais conhecidas, podem ilustrar essa disposição, enquanto que numa analogia espaço-temporal neste mesmo campo, “Paisagem com bosque” (1655) de Ruisdael (1628?-82) ou “Residência de plantadores próxima ao rio Parahyba” (1775) de Frans Post (1612-1680) aproximam-se mais dessa organização.[33]

Em uma análise comparativa com a obra de Masaccio [Figura 2], por exemplo, a ilustração de Parreiras – numa reutilização do mesmo princípio – inverte a sintaxe, a forma do esquema linear no plano da imagem. Masaccio trabalha com uma diagonal forte ascendente, compensada em parte pelas linhas descendentes do plano inferior direito, as quais formam convergência em direção ao centro do plano. No esquema de valores, utiliza um ritmo de claro-escuro que acompanha a direção das descendentes citadas, dentro de um acento constante em oposição à gradatividade de Parreiras. A grande área escura em contraste com o entorno ao centro do plano, reforça a importância desse ponto visual na composição.

Por outro lado, em relação ao plano do significado, Parreiras utiliza menos convenção na medida em que seu tempo anedótico é unívoco, o que significa um grau sígnico menor. Massacio evidencia mais, nesse sentido, um artifício plástico para narrar uma cena, fragmenta-a em diferentes instantes, tornando mais explícito o caráter de representação da imagem. A significação de ambas as imagens emerge com mais intensidade ao atentarmos para o fato de que a gradatividade no âmbito do significante em Parreiras está para a gradatividade no âmbito do significado em Masaccio, assim como uma maior constância do significante neste, está para uma maior constância do significado naquele. Dessa forma, percebemos que a banalidade do tema em Parreiras é irrompida, e o sentido é dilatado num movimento centrípeto por sugestão da própria materialidade plástica, ao passo que a mesma materialidade em Masaccio converte o absurdo tempo-espacial de sua narrativa em algo verídico, que ascende ao real, sendo as diagonais maiores de ambas as composições, de Parreiras e Masaccio, grandes responsáveis respectivamente pelo sentido de lembrança como uma lamuria solitária e como uma história narrada.

É importante lembrar que estes valores são relativos, havendo uma ambivalência dos mesmos. Assim, uma aparente distância temática, de sentido, acabou por revelar traços comuns, enquanto uma certa semelhança compositiva inicial, mostrou-se bastante particular em seu desfecho.

Em relação a uma leitura focada mais numa substância do conteúdo, no tema e em seu sentido ideológico mais imediato, encontramos uma correlação direta com a produção romântica, em particular do pintor alemão Caspar Friedrich (1774-1840).

Há nesse sentido, no que se refere ao tema, uma espécie de sinonímia entre uma obra como “Nascer da Lua no Mar” (1822) [Figura 3] e a ilustração aqui analisada. Notamos prontamente um paralelismo no contexto de ambas as cenas. Trata-se basicamente de imagens onde figuras em terra, num primeiro plano, contemplam a paisagem marítima, existindo evidentemente diferenças importantes, como a presença de embarcações, da lua e a maior quantidade de figuras em Friedrich em contraste com a figura absolutamente solitária de Parreiras. Um outro ponto de contato entre as duas imagens, que nos parece significativamente importante, é o fato das figuras, no primeiro, encontrarem-se numa vista posterior de três quartos, isto é, quase que inteiramente de costas para o fruidor, enquanto a figura de Parreiras apresenta-se de perfil para este.

Com relação a um conteúdo situado no plano ideológico, esta temática nos revela uma tônica típica do romantismo, em que, fundamentalmente, há uma postura de questionamento e negação dos valores e das conquistas científicas e das crescentes transformações econômicas e sociais pelas quais passavam o período. Podemos encontrar trechos em sua autobiografia ou em suas críticas artísticas, onde Parreiras mostra-se decepcionado de um modo geral com a sociedade e em particular com os rumos da arte nacional em sua esfera institucional.[34] Essa insatisfação pode ser detectada, primeiro na própria exploração do gênero paisagístico, considerado inferior dentro da hierarquia acadêmica, podendo ser interpretado como um desejo de retorno a algo que está na origem de um questionamento humano e plástico, e segundo, mais especificamente como recurso de composição, na posição das figuras, as quais, de certa forma ignoram a presença do espectador externo.

No que diz respeito a esse aspecto em especial, é interessante notar que enquanto em Friedrich as figuras meio que absortas, extasiadas com a paisagem, escapam de uma realidade palpável em direção a algo fugidio e nebuloso, em Parreiras uma ambigüidade acaba por criar uma tensão entre as duas realidades. A ilustração, assim, dá forma, pode expressar visualmente a própria indecisão ou por outro prisma, o desejo de Parreiras, de ao mesmo tempo manter um círculo de relações sociais onde as encomendas e os salões lhe garantam uma estabilidade financeira e um status social, como a pintura histórica e a pintura de nus, e uma atitude artística que relegue este tipo de garantia e reconhecimento a um segundo plano, ou seja, pintar pelo puro prazer de confeccionar uma imagem, tendo como base uma empatia, uma relação afetiva com esta, como é o caso da paisagem. Portanto, pode-se dizer que a dicotomia mantida com a natureza e o espectador é sintoma, indício da personalidade do pintor. Por outro lado, na composição de Friedrich, apesar do elemento humano voltar-se totalmente para a natureza, as embarcações são o elo, o vínculo com a civilização. Sua presença, mesmo que menor, intermitente e dissolvida pelo ambiente, permanece visível, sobrepondo-se ao elemento natural.

A partir dessas observações, acreditamos ter esboçado o que seria a forma do conteúdo de uma das ilustrações de Parreiras para a sua autobiografia, estruturada pelo confronto desta numa rede de associações com outras imagens, o que acabou por definir nuanças, algumas especificidades de seu modo de produzir. Por certo que, o que pode vir a ser uma convenção ou quem sabe um código plástico, um modo de significar particular deste sistema semiológico, ainda permanece quase insondável e extremamente difícil de se estabelecer, contudo, a influência de um conhecimento visual, erigido durante séculos, pode ser sentida na produção artística em geral.

Com essas palavras finalizamos esta sucinta análise, esperando ter atingido nosso objetivo principal, que era lançar as bases para uma maior compreensão da obra deste importante artista brasileiro do século XIX, especialmente deste documento, depoimento que é sua autobiografia, de grande relevância para o entendimento do período em questão, ainda, por vezes, distorcido por uma visão estereotipada e previsível de alguns autores. Em última análise, esperamos que este texto tenha contribuído para mostrar um pouco mais de perto sua obra no campo da ilustração, para torná-la algo mais particular, certo estamos de que os conceitos aqui utilizados necessitam ainda de um desdobramento maior em sua aplicação, bem como um trabalho de ajuste e correção destes ao nosso objeto de estudo.

* Bacharel em Pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense, Professor Substituto da EBA/UFRJ, Professor Assistente da Escola Superior de Ensino Helena Antipoff.


[1] Parece-nos plausível a interpretação dos trechos a seguir como corroboração de nossa colocação: “De modo geral, o impossível se deve reportar ao efeito poético, à melhoria, ou à opinião comum [...] A existência de homens quais pintava Zêuxis talvez seja impossível [...] As absurdezas devem-se reportar à tradição; assim, também se dirá, por vezes, que não se trata dum absurdo, pois é verossímil que algo aconteça contra a verossimilhança” (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 50).

[2] Cf. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1988. Podemos notar que, não só em relação ao referido autor, ou melhor, antes de ser um mero acaso ou uma concordância de enfoque metodológico, antes disso, de haver uma tônica das abordagens dos historiadores de arte em geral com relação a, se assim podemos chamar, um processo de semiose do conteúdo artístico, o trânsito de influências ou o sistema de aprendizado por meio da herança visual da tradição configura-se um fato.

[3] Em CARAMELLA, Elaine. História da Arte: fundamentos semióticos. São Paulo: EDUSC, 1998, p. 28, há uma clara condensação desse verdadeiro marco histórico para as artes visuais: “Todavia, Alberti [...] irá transformar a questão material em retórica, operando assim a codificação da arte, a partir da divisão de pintura em conceitos como circunscrição, composição, recepção das luzes. Desta maneira, a pintura será entendida como figuração da natureza e a circunscrição irá tratar do lugar da coisa vista, do delineamento, isto é, do desenho. A composição, por sua vez, tratará dos lugares das superfícies tomadas em conjunto, enquanto recepção das luzes, do claro-escuro. Transformando o não verbal (material e materialidade sígnica) em verbal, Alberti opera a retorização da pintura, escultura e arquitetura”.

[4] “Em 1720 havia dezenove academias de arte em toda a Europa, das quais somente três ou quatro mereciam de fato este nome [...] De fato, se dermos um salto de cerca de meio século, veremos que em 1790 havia bem mais de uma centena de academias de arte ou escolas públicas de arte em pleno florescimento na Europa [...] Não tardou muito o processo de criação de academias de arte na América. Em 1785, foi inaugurada no México a Real Academia de San Carlos de Nueva España, e em 1791 surgiu uma escola particular na Filadélfia, oficializada em 1805 com o nome de Academy of Fine Arts” (PEVSNER, Nikolaus. Academias de Arte: passado e presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 191, 192 e 194). A obra em questão, ao mesmo tempo em que sintetiza, compila enorme quantidade de informações a respeito da história destes estabelecimentos de ensino artístico.

[5] Cf. O Século XIX. In: ib., pp. 236-285.

[6] “Em fins de 1882, vende a casa que havia herdado do pai e matricula-se como aluno amador, a 25 de janeiro de 1883, na Academia Imperial das Belas Artes” (LEVY, Carlos R. Maciel. Antônio Parreiras: pintor de paisagem, gênero e história. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1981, p. 20), mas que, segundo o relato do próprio Parreiras, teria ocorrido no ano anterior: “resolvi, então, realizar o meu ideal – ser um artista. Vendi uma das casas que meu pai me havia legado e entrei para a Academia de Belas Artes para a aula de G. Grimm (1882)” (PARREIRAS, Antônio. História de um pintor contada por ele mesmo. Niterói: Niterói Livros. Fundação de Arte de Niterói, 1999, p. 16). Aliás, existem outras datas e locais, os quais, a primeira vista, também foram corrigidos por Levy, como por exemplo, a do nascimento do pintor, quando verifica em seu livro de batismo que, “aos seis dias do mês de janeiro de mil oitocentos e sessenta e um, nesta Matriz de São João Baptista de Nichteroy baptisei [o Vigário Antônio Mello Muniz Maia] solemnemente a Antônio, innocente, nascido no dia vinte de janeiro do ano passado” (Op. cit., p. 17), enquanto o próprio Parreiras nos diz ter nascido “em São Domingos de Niterói a 21 de janeiro de 1864, à Rua da Pampulha, hoje Visconde do Rio Branco” (Op. cit., p. 13).

[7] Sobretudo aqueles pertencentes ao chamado Grupo Grimm, pintores oriundos da Academia de Belas Artes, os quais seguiram o paisagista alemão Johann Georg Grimm quando este se demite daquela e resolve dedicar-se integralmente à pintura de observação direta da natureza. Para saber mais a respeito, cf. LEVY, Carlos R. Maciel. O Grupo Grimm: paisagismo brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1980.

[8] SALGUEIRO, Valéria. Antônio Parreiras – homem e pintor. In: _________. Antônio Parreiras: notas e críticas, discursos e contos: coletânea de textos de um pintor paisagista. Niterói: EdUFF, 2000, pp. 42 e 43.

[9] VALÉRY, Paul. Degas Dança Desenho. São Paulo: Casac & Naify Edições, 2003, p. 143 e 144.

[10] Op. cit., p. 225.

[11] Ib., p. 154.

[12] LEVY, 1981, p. 31.

[13] SALGUEIRO, op. cit., p. 37.

[14] ZANINI, Walter (org.). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Sales, vol. 1, 1983, p. 416.

[15] SALGUEIRO, 2000, p. 41.

[16] LEVY, 1981, p. 28.

[17] Guardadas as devidas proporções com relação a comum e desmedida comparação entre a linguagem humana e os diversos meios de expressão, não podemos negar suas semelhanças, como da existência, na falta de um termo mais adequado, de uma espécie de código, haja vista que, “de acordo com o próprio Jakobson, ver o quadro supõe a apreensão prévia da linguagem pictural convencional, assim como só podemos captar as palavras se conhecemos a língua; desse modo, o caráter convencional e tradicional da pintura determina a percepção do quadro” (MUCCI, Latuf Isaías. Para uma Ciência da Arte. Poièsis: estudos da ciência da arte, Niterói, RJ, ano 1, n. 1, 2000, p. 60).

[18] É esclarecedor, a título de um confronto com nosso ponto de vista, mencionar que para Erwin Panofsky, a imagem visual teria sentido somente como produto de uma rede de relações culturais. Essa perspectiva teórica, relacionada a Aby Warburg, semelhante a abordagens sociais do objeto artístico como as de Hauser, Pinder, Dvorak, Weisbach, Ballet e Pevsner por exemplo, percebe a obra, em última instância, como um reflexo, um sintoma de um ou mais aspectos da cultura: “Isso significa o que se pode chamar de história dos sintomas culturais [...] O historiador de arte terá de aferir o que julga ser o significado intrínseco da obra ou grupo de obras, a que devota sua atenção, com base no que pensa ser o significado intrínseco de tantos outros documentos da civilização historicamente relacionados a esta obra ou grupo de obras quantos conseguir” (PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da renascença. In: _________. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991. Cap. 2, p. 63). O vínculo com a tradição visual nos termos em que Panofsky trabalha, focado no motivo (no sentido de composição) e no tema, situa a obra de maneira caudatária, passiva em relação a outras áreas culturais, deduzindo seu conteúdo centrifugamente, perifericamente a si mesma, o que, segundo nossa visão e em última análise, seria uma redução do processo formador da imagem como um todo.

[19] WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1990. Nesse sentido, entendemos que Wölfflin se destacaria dos demais historiadores, pois trabalha a questão de uma identidade entre obras e períodos – fazendo uso da terminologia de Panofsky – não num plano iconográfico ou iconológico, mas, fazendo uso dos aspectos pré-iconográficos, vislumbrando assim, uma determinada constância estrutural, que atingiria diretamente o funcionamento da imagem. Postula que a obra deve ser analisada como tendo um fim em si mesma dentro de uma condição estilística; sob a tutela da corrente formalista, fundamentada nos princípios de seu preceptor Alois Riegl, Wölfflin elabora pares de conceitos, como linear/pictórico, categorias gerais da forma, constantes genético-formais as quais surgiriam reformuladas em diferentes momentos da história: “Wölfflin reconhece como problema central da história científica da arte a identificação de uma lei operando na produção artística visual e arquitetônica, apesar de todas as mudanças que nela possam se passar e do que os homens tenham desejado ver” (SALGUEIRO, 2000-a, p. 136), o que acaba por remeter novamente a um ponto de vista teórico onde aspectos visuais são recorrentes dentro da história do estilo como no caso dos esquemas visuais. A perspectiva teórica de uma análise da história do estilo visual como um problema estrutural, interno à própria manifestação artística, foi igualmente esboçada por Rudolf Arnheim, fundamentando seus princípios de análise na Psicologia da Gestalt de Wertheimer, Koffka e Köhler: “[...] se pensarmos num estilo não como uma soma de atributos, mas como uma estrutura, poderemos descobrir se o que permanece imutável é esta estrutura, ao invés da soma das partes” (1989, p. 276). Ora, essa é uma ótica onde a tradição tem um peso central, já que a possível recorrência estrutural no tempo, chama a atenção para uma semelhança com o uso das schematas pelos artistas.

[20] GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Na perspectiva perceptualista de Gombrich, historiador que analisa a obra por seu viés imitativo em relação à realidade aparente, parece haver uma certa confluência das correntes anteriores: a questão do estilo, preocupação da história da arte, não é analisada pelo prisma de suas possíveis influências externas, como em Panofsky, mas dentro do próprio âmbito artístico dos esquemas visuais, promovendo o estudo de sua própria “linguagem” na história, forjando uma espécie de metalinguagem do estilo. Por outro lado, o que acaba por embasar esta abordagem teórica é a própria noção de estrutura visual, preocupação das correntes gestaltista e formalista. Desta forma, esta perspectiva também se aproximaria do que pretendemos como enfoque teórico-metodológico, opondo-se a este no que diz respeito ao processo artístico como imitação, interessando-nos este, antes como modo de significação. Pode-se fazer duas observações críticas em relação à abordagem teórica de Gombrich: a primeira, operada por Arnheim em suas obras, baseia-se no fato de que Gombrich minimiza o plano de uma autonomia efetiva da forma, encarando os elementos formais como atributos a serviço de uma imitação da realidade aparente, i. é, como construção de uma ilusão desta realidade e por corolário, do estilo; a segunda, feita por Bryson (1991, apud SALGUEIRO, 2000-a, p. 140) atinge sua perspectiva justamente no que ela não tem de tributária a uma análise histórico-social, no caso, das influências das transformações materiais de produção e das relações de poder, implicadas no processo artístico.

[21] Eixo ou “plano paradigmático” ou “sistemático” (BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1971, p. 64) ou antes, “das associações (para conservar ainda a terminologia de Saussure): ‘Fora do discurso (plano sintagmático), as unidades que têm entre si algo de comum associam-se na memória e assim se formam grupos em que reinam diversas relações’” (Ib., p. 63).

[22] Cf. nosso artigo CERDERA, Fábio Pereira. Estrutura e Originalidade na Obra de Antônio Parreiras. Jornal da Pestalozzi: informativo da Associação Pestalozzi de Niterói, Niterói, jul. 2006. No 105, p. 2, c. 2, também disponível no presente site: http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_parreiras_01.htm Neste artigo, aventamos a possibilidade de uma leitura do plano do conteúdo da imagem através de sua relação com o legado da tradição visual.

[23] BARTHES, op. cit., p. 12.

[24] “‘O artista profissional adquire uma grande quantidade de schemata com a qual produz rapidamente no papel o esquema de um animal, de uma flor, de uma casa. Esse esquema lhe serve de apoio para a representação de imagens da sua memória, e ele modifica gradualmente o esquema, até que corresponda àquilo que deseja exprimir. Muitos desenhistas deficientes em schemata e que sabem copiar outro desenho não sabem copiar o objeto.’” (AYER, F. C. apud GOMBRICH, 1995, p. 157). A tese de Gombrich é para nós um ponto de partida, já que o autor trabalha o conceito de esquema apenas em seu sentido referencial, enquanto compartilhamos, como foi colocado pouco acima, com a psicologia da percepção e a teoria formalista, a idéia de que tais esquemas guardam antes um potencial de significação da imagem.

[25] Cf. BARTHES, op. cit., p. 52.

[26] Cf. CARAMELLA, op. cit., p. 77.

[27] Cf. PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 24.

[28] A coincidência de um plano da expressão com um plano do conteúdo da imagem visual é extensivamente tratado por Arnheim em suas obras; o capítulo Dinâmica. In: Arte e Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora. 8a Edição. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1994, pp. 403-434, condensa suas idéias a esse respeito.

[29] BARTHES, op. cit., p. 76.

[30] PARREIRAS, op. cit., p. 40.

[31] Ib., p. 43.

[32] HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 111.

[33] Cf. o artigo de Uspênski (Elementos Estruturais Comuns às Diferentes Formas de Arte. Princípios Gerais de Organização da Obra em Pintura e Literatura. In: SCHNAIDERMAN, Bóris (org.). Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979, pp. 163-220) analisando com mais nuanças esse modo geral de compor característico da pré-renascença, em que adota, dentre outros conceitos, o de representação dentro da representação.

[34] Como por exemplo nesta passagem: “quanto tempo perdido? Quanta luta, desgostos, injustiças, calúnias eu não teria evitado se tivesse recusado a cadeira de paisagem da Academia como depois recusei o lugar de professor e de diretor da Escola duas vezes oferecido pelo Governo da República?” (Op. cit, p. 103).