O legado artístico-visual concebido em torno de Antônio Conselheiro e publicado em jornais da última metade do século XIX

Jadilson Pimentel dos Santos *

SANTOS, Jadilson Pimentel dos. O legado artístico-visual concebido em torno de Antônio Conselheiro e publicado em jornais da última metade do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 3, jul./set. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/antonio_conselheiro.htm>.

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1. O Beato Peregrino nos Jornais

As várias interpretações que foram expedidas pela República acerca do movimento de Canudos encontram sua expressão simbólica na própria guerra, considerada uma guerra de extermínio. Sobre esse conflito, as interpretações eram geralmente impregnadas de considerável carga de intolerância, agressividade e incompreensão. Até Euclides da Cunha, tomando partido dos vencidos, não duvidou que a sorte de Canudos deveria ser o extermínio. Certamente ele, a classe letrada, e os dirigentes estavam empenhados na grande missão do país, que, por sua vez, assentava-se nos moldes europeus: ordem e progresso.

O projeto de Antônio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como Antônio Conselheiro, passou, assim, de forma desacreditada, à História do Brasil. Precisava-se recorrer a uma mudança no pensar, instaurada pela derrocada de alguns mitos, para que se abrisse um caminho para interpretações outras, que valorizassem o sentido estético vivenciado no seio daquela nação. Nesse sentido, esse estudo busca uma compreensão da obra do conselheiro pelo campo das artes visuais, publicadas em jornais.

A partir de 1864, com o desaparecimento de Antônio Maciel das terras cearenses, de seis a dez anos se passaram sem que se tivesse notícias dele. Somente reapareceria na década de setenta do século XIX, nas terras sergipanas e baianas.

Sobre as últimas aparições do beato, ainda em solo cearense, depôs Honório Vilanova, um dos poucos sobreviventes da Guerra de Canudos, em uma entrevista concedida a Nertan Macedo, na década de 60 do século XX:

Conheci o Peregrino, era eu menino, no Urucu. Se bem me recordo foi em 1873, antes da grande seca. Ele chegou, um dia, à fazenda, pedindo esmola para distribuir pelos pobres, como era do seu costume. Donde vinha, não posso lembrar. Falava-se que dos lados do Quixeramobim, mas a origem pouco importa. Compadre Antônio deu-lhe um borrego nessa ocasião. O Peregrino disse que tinha uma promessa a cumprir: erguer vinte e cinco igrejas. Que não as construiria, contudo, em terras do Ceará. Nunca mais pude esquecer aquela presença. Era forte como um touro, os cabelos negros e lisos lhe caíam nos ombros, os olhos pareciam encantados, de tanto fogo, dentro de uma batina de azulão, os pés metidos numa alpercata de currulepe, chapéu de palha na cabeça. (VILANOVA, apud MACEDO, 1983)

Ao que tudo indica, Antônio Conselheiro já trazia consigo alguns seguidores. Surgia pregando a religião cristã da forma como entendia, versado, certamente nos ensinamentos aprendidos com os missionários, e com os desdobramentos do catolicismo popular.

Na época do seu reaparecimento, surge trajando longo vestido de túnica azul de algodão, sandálias de couro ao modo franciscano, longas barbas e longos cabelos. Chamavam-no: Antônio dos Mares, Antônio Aparecido, Meu Pai, dentre outros nomes, iniciando, desta maneira, uma série de títulos que viria a ter nos sertões da Bahia.

No concernente ao nome do beato peregrino, o cronista João Brígido (apud CALASANS, 1969) informa que Antônio Vicente Mendes Maciel era conhecido em sua terra como Antônio Vicente, na idade adulta chamavam-no, também, de Maciel. Todavia, no momento em que ganhou celebridade nos sertões nordestinos, passou a ser Irmão Antônio, Antônio Conselheiro, Santo Antônio Aparecido, Santo Conselheiro, e, finalmente Bom Jesus Conselheiro, quando seu prestígio entre o povo do sertão atingiu o auge.

O primeiro jornal a noticiar o aparecimento de Antônio Conselheiro foi o periódico sergipano de Estância, chamado O rabudo [Figura 1], que publica em 22 de novembro de 1874:

O nome dos bemfeitores da humanidade é esquecido e conservado fatalmente a memoria doss que aflagellarão, se não ignorarmos o nome doss que descobrirão e popularisarão os venenos mais subtis, nem a vida dos que inventarão as armas mais mortiferas em compensação não sabemos o d’aqueles que creando um instrumento ou esboçando uma idéa abrirão à intelligencia humana o campo incommensuravel do trabalho, ou que encaminharão por suas maneiras prejudiciaes à um profundo abysmo, o pobre povo inexperiente. Aquele que por suas acções apparentemente de verdadeira philantropia procura fazer-se saliente por meio de um regime qualquer, não lhe importando ser ou não contrario aos nossos principios religiosos; que, com a infamo capa da hypocrisia abusando do espírito pacifico dos encarregados do poder; ainda mais da simplicidade ou para melhor diser da tacanhesa de espirito da plebe toma-se inaccessivel, cêdo ou tarde será aferrolhado pelo dedo da justiça, e d’então cahirá em complecta degradação. Abons seis meses que por todo o centro desta e da Provincia da Bahia, chegado, (diz elle,) da do Ceará infesta um aventureiro santarrão que se apellida por Antonio dos Mares: o que, avista dos apparentes e mentirosos milagres que disem ter elle feito, tem dado lugar a que o povo o trate por S. Antonio dos Mares. Esse mysterioso personagem, trajando uma enorme camisa azul que lhe serve de habito a forma do de sacerdote, pessimamente suja, cabellos mui espessos e sebósos entre os quaes se vê claramente uma espantosa multidão de bixos (piôlhos). Distingue-se elle pelo ar mysterioso, olhos baços, téz desbotada e de pés nus; o que tudo concorre para o tornar a figura mais degradante do mundo. Anda no caracter de missionario, pregoando e ensinando a doutrina de Jesus Christo, diz. Suas predicas consistem na prohibição dos chales de merinó, botinas, pentes; e não comer se carne e cousas dòces nas sextas e sabados.  Tem levantado latadas em diversos lugares e por onze dias arrastado o povo a seos concelhos sendo tudo bem semelhante a uma missão de cujas ordens se acha revestido. O fanatismo do povo tem subido a ponto tal que affirmão muitos ser o próprio Jesus Christo e disem mais, que fora dos conselhos de tal santo não haverá sertamente salvação; beijão-lhe a veste sebosa com a mais fervente adoração! Algumas pessoas de juiso são accordes que esse homem commeteo um grande crime, o procura espial-o ou encobril-o por esta forma: não aceita esmolas, e a sua allimentação é a mais resumida e simples possivel. É incalculavel os prejuisos que teem soffrido os pobres pais de familia; pois vêem todo o fructo de suas fadigas tornando em cinzas logo apoz ás predicas do misterioso saltimbanco. Pessoas há que não deixarão se quer um uniforme complecto; e se conservarão ainda algumas pessoas he por não quererem ou não poderem ficarem totalmente nús. Pedimos providencias a respeito: seja esse homem capturado e levado a presença do Governo Imperial , a fim de prevenir os males que ainda não forão postos em prática pela auctoridade da palavra do Fr. S. Antonio dos Mares moderno. Dizem que elle não teme a nada, e que estará a frente de suas ovelhas. Que audácia! O povo fanático sustenta que n’elle não tocarão; Já tendo se dado casos de pegarem em armas para defendel-o. Para qualquer lugar que elle se encaminha segue-o o povo em tropel, e em número fabuloso: Acha-se agora em Rainha dos Anjos, da Província da Bahia, erigindo um Templo. (Rabudo, Estância, 22 nov. 1874)

Ainda no ano de 1874, sua presença também se fez notar nas terras da Bahia, na freguesia do Itapicuru, onde encontrava-se com um grupo de fiéis erguendo uma obra pia. Tempos depois, Cícero Dantas, o Barão de Jeremoabo, morador daquela localidade, lembrava da estada do peregrino naqueles rincões.

Estava no Rio de Janeiro no ano de 74, quando aportou neste termo Antônio Conselheiro. Ao regressar tive conhecimento desse indivíduo, cujos precedentes eram ignorados, com orações, terços e prédicas sugestionava o povo que acudiu pressuroso a ouvi-lo, abandonando suas casas e afazeres. Ora em um ponto, ora em outro, enfim em muitos, tinham lugar essas reuniões, e cada vez mais crescia o número dos ouvintes, Sem empanar o brilho da verdade estávamos em perenal missão. Com celeridade com que, em alguns casos, o efeito sucede a causa, não se fez esperar o resultado desses exercícios pseudo-religiosos. Em pleno dia, nas casas, nas ruas e nas estradas, faziam-se montes de xales, vestidos, saias, chapéus do Chile de feltro, sapatos de trança, e finalmente todos os objetos que continham lã e seda eram entregues à voracidade das chamas, por ser luxo contrário à doutrina pregada pelo inculcado missionário. Não havia quem com força bastante pudesse demover o povo desta faina devastadora, a que gostosamente se entregava na convicção de praticar um ato meritório. Os prejuízos foram inulcáveis, presentes e futuros, que Antônio Conselheiro traria para essa localidade... Desde 74 a 76 continuou ininterruptamente esse estado de coisas sempre em escala ascendente... Crescia mais e mais a influência de Antônio Conselheiro e, à exceção da minha, posso sem receio dizer, que não houve família que não assistisse às suas orações. O fervor chegou ao excesso de convidarem-no para as suas casas aqueles que, por alguma circunstância, não podiam comparecer nos pontos de reunião. (MARTINS, apud Jornal de Notícias, 04/05/1897)

Como informou Honório Vilanova, Antônio tinha uma missão: a de erguer templos. Os primeiros jornais da Bahia que noticiarem sobre Antônio Conselheiro, ainda no ano de 1874, tratam dessa questão. O que se sabe é que, na época de suas peregrinações, no período que vai de 1874 a 1893, Antônio Vicente ergueu inúmeras igrejas, reformou capelas, fundou cidades, construiu cruzeiro e cemitérios numa vasta área dos sertões da Bahia e Sergipe.

A partir do ano de 1872, até pelo menos a última década do século XIX, com a fundação do arraial do Belo Monte, a principal atividade do Conselheiro foi reformar e construir igrejas e cemitérios. Evidentemente, os que o seguiam não o fizeram atrás da remuneração pelas obras, mas dedicavam-se cada vez mais intensamente ao seu líder, em função de sua pregação.

No que concerne às suas construções, seu universo circunscrevia-se a lugares longínquos do interior do nordeste, basicamente o sertão da Bahia, com algumas incursões a Sergipe.

2 A Imagem do “Bom Jesus Conselheiro” nos Jornais

Com a fundação de Belo Monte, no ano de 1893, a fama de Antônio Conselheiro, crescente no discurso dos mais de vinte anos de peregrinação pelos povoados, vilarejos e cidades dos sertões, atraiu pessoas de várias comunidades baianas e de outros estados nordestinos. Tal evento passou a incomodar a igreja, inúmeros políticos e os grandes proprietários de terras, que se viam perdendo seus trabalhadores.

Se, na descrição de seus fiéis, Antônio Conselheiro aparece como um homem vigoroso e cheio de virtudes, os incomodados com a sua presença (clérigos, políticos e fazendeiros), fazem dele uma descrição que é, deveras, depreciativa. Aparece quase sempre nas gravuras como um fanático pervertido, de tendência megalomaníaca; às vezes, era caracterizado como um indivíduo de aparência esquisita, frágil e anormal.

Na década de 90 do século XIX, os jornais passam a publicar a imagem do beato Conselheiro de forma caricatural. A criação desses recursos baseava-se na fala descritiva, feita por relatos de indivíduos pertencentes à Igreja, que estiveram no seu arraial. Nessas ilustrações, o Antônio Conselheiro é representado em tom anedótico, afirmando o que já se dizia anteriormente, desde o ano de 1874 [Figura 2 e Figura 3].

Com a fama do profeta que consegue ganhar projeção de longo alcance, a partir da construção do Belo Monte, é importante frisar que os grandes jornais do país publicaram suas imagens, tendo quase sempre com pano de fundo, a construção de igrejas e capelas, ressaltando com isso o ofício-mor do beato que viria a ser o Bom Jesus Conselheiro [Figura 4].

A partir da proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, muitas transformações iriam ocorrer no Brasil, inclusive nos sertões do nordeste. Tais transformações, como sempre, só favoreciam a poucos. As terras e a renda continuavam concentradas nas mãos das elites, e o poder político não foi democratizado. Nesse ínterim, novas medidas começam a entrar em vigor, como a separação entre o Estado e a Igreja, o casamento civil e a cobrança de impostos. Conselheiro não aceita o novo regime e passa a combatê-lo com firmeza, escrevendo nas suas prédicas tal insatisfação [Figura 5].

Depois de ter peregrinado pelo sertão, o beato Antônio Conselheiro, viu seu sonho concretizado: edificou, com sua comitiva, a “terra da promissão”. Em suas profecias, o anúncio do fim do mundo era uma constante. Anúncio que conclamava as massas famélicas para a partilha do sonho vivido sem males, em oposição ao ideal proclamado pela Igreja Católica, que anunciava o “paraíso” como um galardão para um futuro muito distante.

A criação do Belo Monte criou todo tipo de desassossego, não só no sertão. As notícias que chegavam ao Rio de Janeiro eram as mais aterrorizantes. Contava-se, na Rua do Ouvidor, centro de intriga dos jornais e intelectuais da época, que Antônio Conselheiro recebia ajuda internacional e combatia com armas de ponta vindas da Europa.

Com a derrota das tropas no antepenúltimo assalto à cidadela, bem como a morte de Moreira César e Tamarindo, o governo tomado por um ideal nacionalista, mobilizou o Brasil inteiro, com a finalidade de lutar no sertão, objetivando, como fim último, o arrasamento da cidade do Conselheiro.

A guerra fratricida que se iniciou, em 1893, desde que Antônio aportou no Belo Monte, só terminou no final de 1897, quando todo arraial fora incendiado, dinamitado etc.

Antônio Conselheiro morrera antes mesmo do assalto final: no dia 22 de setembro, de 1897, não resistiu, pois fora ferido. Em outras falas, o profeta foi vitimado por uma diarreia, comumente, chamada de “corredeira” ou “caminheira” pelos sertanejos, e, possivelmente, ocasionada por uma gangrena em um ferimento na perna, provocado por um estilhaço de granada que explodiu na Igreja do Bom Jesus, onde ele estava amotinado, quando da quarta expedição e último cerco à cidadela.

Também existem os que acreditam que ele não morreu em Canudos. Na mística do sertão ele foi levado, ou seja, ascendeu aos céus, em companhia de um séquito de anjos, de onde viria, um dia, ao lado D. Sebastião e do Bom Jesus, livrar o Belo Monte da tirania do cativeiro. Estas são suas últimas palavras, escritas pouco antes de morrer:

É chegado o momento para me despedir de vós; que pena, que sentimento tão vivo ocasiona esta despedida em minha alma, à vista do modo benévolo, generoso e caridoso com que me tendes tratado, penhorando-me assim bastantemente! São estes os testemunhos que me fazem compreender quanto domina em vossos corações tão belo sentimento! Adeus povo, adeus aves, adeus árvores, adeus campos, aceitai a - minha despedida, que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós, que jamais se apagarão da lembrança deste peregrino, que aspira ansiosamente a vossa salvação e o bem da Igreja. Praza aos céus que tão ardente desejo seja correspondido com aquela conversão sincera que tanto deve cativar o vosso afeto. (NOGUEIRA, 1978, p. 175-181).

Quanto ao registro fotográfico de Antonio Vicente Mendes Maciel, o único que chegou até nós foi o da exumação de seu cadáver, que trás a anotação da presença de Flávio de Barros, num registro acentuadamente oficialesco. Feita quinze dias após sua morte, a fotografia assinala as peculiares características do beato. Tirada a foto, procedeu-se depois ao corte da cabeça do morto, com o intuito de ser enviada ao Dr. Nina Rodrigues, professor de medicina do Estado da Bahia.

3 Considerações Finais

A fotografia de Flávio de Barros, os desenhos e croquis dos expedicionários que estiveram em Canudos, as gravuras de jornais, dentre outros, juntamente com essa história, padeceram pela falta de um estudo aprofundado e uma reflexão mais atenta, e, por muitas décadas, permaneceram anônimos. Como são os únicos registros existentes que comprovavam pelo o olhar de quem viu aquela tragédia, esses valiosos documentos poderiam significar um novo modo de se contar a história. A descoberta desses instrumentos propiciaria, de certa forma, a inusitada possibilidade de autoconhecimento e recordação, de expressão artística, de reflexão, de documentação e de denúncia, graças a sua natureza testemunhal. Certamente, em função deste último aspecto eles se constituiriam em arma temível, passível da expressão da verdade. Além disso, na história da arte, o objeto do passado está aqui no presente. Pode-se ter a experiência direta com a fonte de informação, o objeto. Sendo assim, a cognição em arte desenvolve-se a partir do envolvimento total dos sujeitos, pois não se pode impor um corpo de informações sem o uso da imaginação, emotivamente neutro. Desse modo, espera-se também, formar um indivíduo que, participante da história, seja protagonista das escolhas profissionais, culturais e educacionais que realiza no presente e no futuro um compromisso social e ético.

Referências Bibliográficas

CALASANS, José. O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro. Bahia: Tip. Beneditina, 1969.

MACEDO, Nertan. Memorial de Vilanova. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renes/INL/Pró-memória, 1983.

NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Editora Nacional, 1978.

Fontes Primárias

Rabudo, Estância/Sergipe, n° 7, 22 nov. 1874, p. 1[Aracaju, Biblioteca Pública Epiphaneo Dorea. Pacotilha nº42].

MARTINS, Cícero Dantas (Barão de Jeremoabo). Antônio Conselheiro. Jornal de Notícias, Bahia, 4-5 mar. de 1897.

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* Mestre em História da Arte pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. E-mail: jadangelus@bol.com.br