Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

José Luiz da Silva Nunes

NUNES, José Luiz da Silva. Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 1, jan. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/mb_retorica.htm>.

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                     1.            Este trabalho tem o propósito de apresentar os resultados parciais de um projeto de pesquisa de Doutorado desenvolvido no Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes, cujos principais objetivos são o estudo e a análise do texto Retórica dos Pintores [cf. fác-simile], de autoria de Modesto Brocos y Gomes.

                     2.            A metodologia deste trabalho está baseada no confronto do texto de Modesto Brocos com trabalhos anteriores, de outros autores, sobre as questões que o pintor aborda em sua obra. A publicação de Retórica dos Pintores, de Modesto Brocos, data de 1933, portanto no contexto da Era Vargas e do Modernismo Brasileiro. Alguns embates já haviam sido travados: a histórica semana do Modernismo em São Paulo e seus desdobramentos, como o Salão de 1931, que consolidava novos rumos e pensamentos sobre a produção de arte, principalmente. É dentro dessa atmosfera que o livro sai à luz e penso que tem sua principal razão de ser.

                     3.            Para compreensão da linha de orientação adotada, é preciso considerar  a linguagem  como centro de toda atividade humana -  foco do que aqui trataremos - e que sendo ela produzida  pelo complexo jogo de relações que os homens estabelecem entre si e com a realidade, se transforma também em um elemento de modelação dessa mesmo agrupamento de relações:

                     4.                                                  Falar, nomear, conhecer, transmitir, esse conjunto de atos se formaliza e se reproduz incessantemente por meio da fixação de uma regularidade subjacente a toda ordem social: o discurso. A palavra organizada em discurso incorpora em si, desse modo, toda sorte de hierarquias e enquadramentos e enquadramentos de valor intrínsecos às estruturas sociais de que emanam.[1]

                     5.            Dentre as muitas formas que assume a produção discursiva, a que nos interessa aqui, a que motivou este trabalho é, particularmente, a retórica. Esta espécie de discurso de elogio, que se tornou objeto e caminho, a partir do Renascimento, para a discussão e o estabelecimento do estatuto da pintura e, por consequência, dos pintores[2]. Seu desdobramento é a fundação de um gênero - a comparação entre as artes. A obra de Modesto Brocos é resultante desse longo processo que se inicia, anteriormente, na ideia ciceroniana do Ut pictura poesis e que será desdobrado em reflexões de muitos outros autores ao longo do tempo, como Alberti, Winckelmann, Du Bos, Diderot. É nesse universo que se entrelaça o texto de Modesto Brocos e  será através  de seu próprio texto,  de suas próprias palavras, de seu discurso, ou melhor dizendo, de sua retórica, que pretenderemos tensioná-lo e distensioná-lo, simultaneamente,  para buscar suas propostas e respostas estéticas para os conflitos que marcaram a sociedade brasileira nessa fase.

                     6.            Modesto Brocos Y Gomez nasceu em Santiago de Compostela, Espanha, em 1852, em família humilde e voltada para o ofício da arte - avô e pai foram gravadores. Foi seu irmão Isidoro, que chegaria a ser famoso escultor - e  um dos principais xilogravadores espanhóis -  quem iniciou Modesto na arte da gravura. Inicia-se na Real Sociedade Econômica de Amigos do País - único centro de Santiago  que naqueles tempos oferecia  possibilidades de formação  no campo das artes.  A partir de informações da historiadora Maria Cabrera Massé[3], Modesto foi  aluno do professor Juan Cancela, que estudara durante alguns anos na Academia de San Fernando de Madri.

                     7.            Em 1871, embarcou para Buenos Aires, Argentina, onde colaborou como gravador em diferentes publicações. Em 15 de julho de 1872 chegava ao Rio de Janeiro, iniciando aqui, também, atividades de gravador. Mais tarde matriculou-se na Academia de Belas Artes como aluno ouvinte na turma de modelo vivo. Em 1875 frequentava a classe de Vitor Meireles na Academia Imperial de Belas Artes e, nesse mesmo ano, começou a publicar sua primeiras gravuras no jornal brasileiro O Mequetrefe.

                     8.            Anos mais tarde, junto com seu irmão Isidoro, colaborou assiduamente na La Illustracion Gallega y Asturiana, que estendeu a sua publicação de 10 e janeiro de 1879 a 28 de dezembro de 1881. Modesto Brocos viaja a Paris em 1877, onde estudou por dois anos na École des Beaux-Arts, sendo aluno de Lehmann, professor de Camille Pisarro e George Seurat.

                     9.            Em 1879, instalou-se em Madri, sendo discípulo de Federico de Madrazo na Escola San Fernando. Federico iniciou a carreira pictórica sob o postulado estético do grupo conhecido como os Nazarenos. Em 1881, encontramos Modesto novamente em Paris, outra vez na École, agora sob a tutela de Hébert, pintor que, como Lehman, fora discípulo de Ingres.

                  10.            Em 1882, Modesto Brocos é aceito no salão de Paris com auto retrato que reproduziu na revista L’art, obtendo o favor da crítica. O ano de 1883 marca um fato importante em sua carreira, pois que obtém um bolsa da Deputación da Coruña para trabalhar em Roma durante quatro anos. As Deputacións Provinciais espanholas, como sistema de ajudas aos novos artistas, mediante pensões  e subvenções, adquirem um inegável protagonismo no campo das artes plásticas. Modesto Brocos obteve sua pensão ao apresentar à Deputación o esboceto e quadro Rebeca dando de beber a Elizer, tema de caráter bíblico.

                  11.            A biógrafa Massés afirma que Modesto Brocos, durante sua estadia em Roma, estabeleceu contato com seleto grupo da colônia espanhola, na qual se encontravam Pradilla, Benliliure, Querol, e Villlodas, todos eles assíduos da famosa Academia de Belas Artes espanhola em funcionamento desde 1881. Entre os centros mais importantes frequentados pelos pintores espanhóis temos a Academia de São Lucas, a Academia de Belas Artes francesa, a Academia Chigi (Roma), que foi a que Modesto Brocos frequentou. Brocos pintou a tela Defesa de Lugo em 1887, quando era pensionista em Roma, e expôs no Salão Nacional de Madri do mesmo ano. No ano seguinte seria exposto no Salão de Paris.

                  12.            Regressou para a Galícia, onde exerceu a posição de catedrático na Real Sociedade Econômica de Amigos do País.

                  13.            Em 1890, parte pela segunda vez ao Brasil. No ano seguinte é nomeado professor de desenho de figura na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Entre 1893 e 1895, administrou classes  em substituição a Pedro Weingärtner. No Salão de 1895 obteve uma medalha de ouro com Redenção de Cã, adquirida pela pinacoteca da Escola.

                  14.            Em 1897, voltou a Santiago de Compostela para realizar o tríptico A tradición do Apóstolo Santiago, que se localiza na Sacristia da Catedral de Santiago. Após uma curta estadia em Roma, regressou ao Brasil, de onde nunca mais sairá.

                  15.            Durante toda sua estadia no Brasil, interessou-se pelo ensino de gravura, devendo à sua iniciativa a instalação do material para aulas desta especialidade no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro.

                  16.            Em depoimento para o catálogo de exposição do centenário de nascimento do pintor, no Museu Nacional de Belas Artes, em 1952, o pintor e crítico de arte Reis Junior, revela alguns traços da personalidade e modo de atuação de seu professor Modesto Brocos:

                  17.                                                  Sabia ensinar respeitando e incentivando a incipiente personalidade que descobria nos alunos. Juntamente com o seu refrão predileto - ´beja o ângulo que fais´ - índice da sua maneira de educar a visão a transpor exato, ele procurava incutir no aluno a compreensão do caráter do objeto, sobre a reprodução minuciosa da sua aparência superficial.

                  18.                                                  Por esse processo, procurava revelar-lhe a diferença substancial entre a concepção acadêmica e a clássica. Também era inteligente e avançada, muito construtiva, a indicação que dava para a marcação do desenho - decompor o motivo em formas geométricas simples, como quadrados, retângulos, cilindros e dentro delas inscrever o arabesco das linhas e o jogo dos planos. Não estou fantasiando esses preceitos de inspiração cubista no ensinamento de Modesto Brocos. Também, não posso afiançar que Brocos os tivesse haurido nas teorias cubistas calcadas na frase célebre de Cézanne. O fato é que esses preceitos constituíam o fundamento básico do seu processo de ensino. Porém, em se tratando de Brocos, não é desarrazoado supor que ele tivesse conhecimento daquelas teorias e daquela frase. Porque Brocos, a despeito do seu todo bisonho, era um espírito eminentemente curioso, sobretudo das questões relacionadas com sua profissão e inteligente bastante para, não conceituando a arte apenas dentro das rígidas fórmulas acadêmicas, admitir e mesmo adotar ideias estéticas  mais atualizadas. As manifestações artísticas originais ou influenciadas pelas novas tendências da pintura não provocavam em Modesto Brocos a  exasperação que suscitavam - e que ainda suscitam - por entre os artistas formados nos mesmos princípios que os dele. Ao contrário, acolhia-as com uma simpatia compreensiva e encorajadora. Já da mesma maneira não recebia as opiniões dos críticos-de-arte, aos quais não atribuía grande autoridade.[4]

                  19.            Modesto Brocos, devido ao seu espírito inquieto, e ademais sua dedicação ao ensino de arte, publicou diferentes livros. Em 1915, A Questão do Ensino de Belas, Viagem a Marte, publicado em 1930 pelo editorial Arte e Letras, de Valencia. Quiçá seu livro mais conhecido seja Retórica dos pintores, publicado no Rio de Janeiro, em 1933.

                  20.            Um dos mais influentes críticos de arte do século XIX, Gonzaga Duque em comentário sobre a exposição individual de Modesto Brocos, na Escola Nacional de Belas Artes em julho de 1892, comenta:

                  21.            Pintor de raça, pintor de fibra, nascido para ser pintor pela fatalidade impulsiva de sua organização, por influência hereditárias [...] ele tomou lugar bem definido, e digno entre os representantes da pintura contemporânea do Brasil.

                  22.            O meticuloso pintor de costumes roceiros.[5]

                  23.            Depois de longa e frutífera vida dedicada à arte e ao seu ensino, Modesto Brocos falece a 28 de novembro de 1936, aos 84 anos de idade.

Retórica dos Pintores: algumas questões

                  24.            A obra de Modesto Brocos Retórica dos pintores está estruturada da seguinte forma: um prólogo, quatorze capítulos e um apêndice.

                  25.            É nossa intenção ir apresentando a estrutura do texto, tal qual foi organizada pelo seu autor, Modesto Brocos, e ir tecendo comentários críticos sobre sua escrita, seu pensamento, as correlações que se fizerem necessárias e/ou pertinentes. Ao longo do desenvolvimento do seu pensamento, Modesto Brocos inicialmente apresenta-nos os conceitos mais gerais de que irá tratar - retórica, estética, beleza, arte, razão, que serão contemplados, de maneira mais abrangente, neste texto. Sem, entretanto, deixar de pormenorizar, posteriormente, esses conceitos, subdividindo-os, elaborando-os em questões ligadas à visão, cor, pintura histórica, de paisagem, de retrato, arquitetura, métodos, princípios, aspectos filosóficos, práticos, técnicos, sem deixar de atacar de frente, de uma maneira singular um tema, que está na ordem do dia - a arte nacional, bem como reformas do ensino artístico:

                  26.                                                  É muito digna de louvor esta aspiração de termos uma arte nacional, aspiração que aliás todas as nações que se prezam deverão ter; mas não será gritando alto que nós conseguiremos esta aspiração, será, sim, trabalhando forte e forte que, seguindo todos os pintores as pegadas do primeiro iniciador, depois de algumas gerações, chegaremos a obter um resultado lisonjeiro[6]

                  27.            No prólogo, o autor debruça-se sobre as razões que o fizeram dedicar-se à escrita do livro, e apresenta ao leitor, em linhas gerais, a qual conceito de retórica se filia.

                  28.                                                  Este trabalho, que tenho a honra de apresentar ao público, é feito com a intenção de ajudar aos estudantes de pintura nos seus estudos, dando-lhes uma orientação que até agora faltava, e vem preencher uma lacuna que se fazia sentir, lacuna que eu mesmo senti quando, em Paris, estudava a pintura.[7]

                  29.            E acrescenta qual a amplitude que desejaria para a sua obra. Neste seu comentário, poderemos perceber as correlações e forças que o intelectual Modesto Brocos faz das produções do campo das artes e literárias, naquele momento:

                  30.                                                  Eu desejaria dar a este despretensioso trabalho uma feição mais artística, fazendo um paralelo entre a literatura e as artes. Comparando os grandes templos da Índia com os seus poemas, o Mahabharata e o Ramayana; a Ilíada de Homero com o Parthenon de Athenas; a Divina Comédia do Dante com a catedral de Milão, os Lusíadas com o convento dos Jerônimos; seguindo depois neste paralelo, comparar o Rolando Furioso de Ariosto, com as pinturas de Miguel Ângelo na capela Sixtina; a Jerusalém Libertada do Tasso, com as estancias de Rafael, etc. E, continuando neste passo comparar os escritos célebres com as pinturas e as esculturas mais notáveis. Deixarei aqui consignada esta ideia para quem mais tarde a quiser utilizar.[8]

                  31.            O rol de obras acima faz-nos pensar e desdobrá-lo em outras possibilidades - seria essa a formação/informação desejada e esperada para um pintor ou qualquer intelectual de seu tempo?

                  32.            E problematiza um dos obstáculos que se interpõem na trajetória dos aspirantes à condição de pintor, naquele momento. Acentua a observação da natureza como orientação:

                  33.                                                  O pintor [...] é embargado pelo problema da cor nas suas variadas e infinitas manifestações, tendo necessidade de observar infinitas manifestações, tendo necessidade de observar a todo instante os aspectos da natureza, que se apresenta azul, nos dias claros; cinzenta nos dias tormentosos; dourada, nos plácidos e cálidos crepúsculos; prateada, nas noites de luar. E é pela variedade das cores que as montanhas, os campos, as árvores e os animais se diferenciam. Enfim, a cor, com as suas múltiplas e variadíssimas tonalidades, vem a ser a linguagem da Natureza.[9]

                  34.            No primeiro capítulo Modesto Brocos faz comentários mais detalhados como manipula os conceitos de Retórica, com suas divisões e regras, tecendo uma construção de sua retórica para a pintura,  a partir da literatura:

                  35.                                                  Dizem os velhos retores que a Retórica é uma arte estética, cujo objeto obedece a uma aspiração da nossa alma na sua ânsia de elevar nosso coração para as coisas belas, por meio da palavra falada, se for literatura, ou por meio da forma desenhada, pintada ou esculpida, se forem as belas artes.

                  36.                                                  O s homens em todos os tempos têm sentido a necessidade de exteriorizar suas ideias da maneira mais digna, com o fim de aperfeiçoar a existência, contribuindo para fazer a vida mais doce e feliz do que era anteriormente.

                  37.                                                  Chama-se Retórica a certas regras que os escritores devem ter presente para expressar suas ideias com concisão e clareza.[10]

                  38.            Vale evidenciar, neste trecho, a questão da validade da obra pictórica, como discurso, tanto quanto se verifica na literatura, e que  o autor já manifesta essa correlação de forças discursivas da obra - pintada e/ou escrita.  Outros autores (Leonardo Da Vinci, Du Bos, etc) dedicaram atenção ao tema, não havendo, portanto, qualquer primazia na anunciação de Modesto Brocos. Entretanto, não podemos negar  a importância desta sua obra, por seu caráter didática, dentro de nosso meio intelectual e artístico.

                  39.            Mais adiante, em sua abordagem, verificamos ressonâncias do pensamento do intelectual Winckelmann:

                  40.                                                  E foram os Gregos os que botaram os fundamentos a esta arte [retórica] e aperfeiçoaram a arquitetura, a escultura e a pintura.

                  41.                                                  Na antiguidade, a literatura Grega chegou a um estado de perfeição nunca excedido, e o mesmo podemos dizer das belas artes.

                  42.            Senão, vejamos, o que nos diz o autor alemão Johann Joachim Winckelmann:

                  43.                                                  O bom gosto, que mais e mais se expande no mundo, começou a se formar, em primeiro lugar, sob o céu grego. De qualquer modo, todas as investigações dos povos estrangeiros não chegaram à Grécia senão como uma primeira semente, e receberam uma natureza e uma forma diferentes no país que, diz-se Minerva destinara aos gregos como morada [...]

                  44.                                                  O gosto que essa nação testemunhou em suas obras lhe é peculiar.[11]

                  45.            O  nosso autor  adota a divisão da Retórica em cinco partes: invenção, disposição, elocução, pronunciação e fundo, em lugar das quatro divisões tradicionais, ligadas à literatura:

                  46.                                                  Na retórica do pintor entram todos tratados: a invenção corresponde ao pensamento ou idéia nova que represente o quadro; a disposição é a maneira de distribuir e colocar os personagens e que o assunto fique bem composto; a elocução refere-se à boa execução do quadro, que, na plástica, a habilidade do pincel e o colorido vai de acordo com o assunto; a pronunciação corresponde à maneira de desenhar as figuras e demais objetos que entrem no assuntos e que se achem não só bem desenhados como bem proporcionados e corretas de forma; e o fundo, poderemos substituir pelo sentimento que se destaque da obra, todo em si subjetivo e que nos emociona internamente, sendo esta emoção a qualidade superior a todas as outras. E de todas as qualidades acima expressadas, quando bem executadas e harmonicamente compostas, resultará o estilo.[12]

                  47.            São estes conceitos que Modesto Brocos irá desdobrar, ao longo de sua obra, mais detalhadamente e que devido a exiguidade espaço-temporal deste veículo iremos pincelar alguns comentários do autor e sinalizar apropriações e ou correlações de linha mais gerais do pensamento do autor com outros intelectuais, não unicamente de seu tempo, mas também anteriores a ele.

                  48.            Para Modesto Brocos,  na gênese da  obra artística, intervém uma forma interior ou pensamento e uma forma sensível de expressão - personagens e objetos que entram na composição -,  expressos pelo desenho, na obra pintada ou pela palavra na obra literária.

                  49.            Define Modesto Brocos o artista como “todo indivíduo que possua aptidões para executar bem um trabalho com consciência e habilidade”[13] e apresenta-nos as condições necessárias para a realização de um bom trabalho: conhecer o assunto; aplicar oportunamente as regras indicadas para bem compor; estudar e observar obras dos grandes artistas antigos e modernos, a fim de assimilar os que neles encontre, “mas conforme com seu talento e tendências naturais”.

                  50.            As três condições anteriores sugerem os caminhos trilhados pelo artista-autor - o domínio técnico, o rigor, a pesquisa, mas também a capacidade de distanciamento das obras do mestres na construção da identidade do artista.

                  51.            Em sua opinião,  as regras de composição são direções - a serem perseguidas ou evitadas - pelos artistas para que a obra alcance a maior perfeição possível:

                  52.                                                  As regras somente deverão servir de estímulo para observar, sentir e praticar o que elas preceituam. Não se creia que para fazer bem um obra consista em recordar umas tantas regras. Isto seria desconhecer por completo o  homem, que só poderá produzir quando a Divindade o tenha dotado de imaginação criadora.[14]

                  53.            Para ele  a imaginação e a inspiração aumentam e desenvolvem-se estudando o real, razão pela qual os pintores começam seus estudos pelo modelo vivo, tal e qual se apresenta a seus olhos, o  que os prepara para os desenhos do natural, que, gravados na memória, facilitariam as primeiras composições sem necessitar de modelo.

                  54.            A análise do discurso ou do quadro é composta de duas partes que são: o fundo e a forma. O fundo, ou seja o assunto, compreende tudo quanto o homem pode expressar com o pensamento, na procura do belo e deverá reunir os preceitos de Quintiliano para a Retórica: instruir, agradar e comover. Contudo,  salienta que estas três dimensões são pertinentes à literatura, “porque em arte só poderá agradar e comover, porém nunca instruir!”

                  55.            Reconhecemos nessa assertiva de Modesto Brocos a influência do pensamento de Winckelmann, apesar de parecer opor-se, sutilmente, ao historiador alemão: “Todas as artes têm dupla finalidade: devem ao mesmo tempo agradar e instruir”.[15]

                  56.            Modesto Brocos, então, acaba confirmando o que Winckelmann referendou:

                  57.                                                  Devemos concordar que hoje as ilustrações que se intercalam nos livros, sejam ou não didáticos, com a facilidade da gravura química, tornaram-se um instrumento de instrução , pois a apresentação de uma figura num livro fala mais claro do que uma longa descrição.[16]

                  58.            Percebemos aqui nesse trecho, em que há uma clara defesa da supremacia da eloquência da imagem em comparação à da palavra escrita, filiações ao pensamento de Leonardo da Vinci, quando em seu Tratado da pintura - O paragone - defende a mesma tese da superioridade da pintura sobre a poesia.[17]

                  59.            Devemos ressaltar que  a imagem ilustrada, em todos os tempos teve uma função  instrutiva, pois, afinal, a divulgação de tantos trabalhos no campo da arte foram sendo assimilados e retrabalhados,  graças à circulação de gravuras, a partir de seus  modelos originais. O historiador Giulio Carlo Argan nos apresenta o conceito de “gravura de tradução”, em decorrência da importância da circulação e difusão das gravuras, na cultura artística europeia nos séculos XVII e XVIII.

                  60.            Avançando no texto de Modesto Brocos, nos colocamos diante  dos cinco estados do discurso: invenção, disposição, elocução, pronunciação e fundo, a seguir apresentados:

                  61.                                                  A invenção é o esforço que faz nosso espírito para encontrar o assunto.

                  62.                                                  Para descobrir um  assunto será preciso, antes de mais nada, ter muitos assuntos em projeto, sejam esboços ou rascunhos. Depois se escolhe, entre os que temos em mão, aquele que fale diretamente à nossa alma e que temos o convencimento que é a melhor ideia a por em execução. [18]

                  63.            Neste ponto de sua argumentação Modesto Brocos coloca-nos a invenção como ideia. Entretanto, seu pensamento não é muito claro, posto que introduz noções de assunto, projeto, esboço e rascunho, todas entrelaçadas dentro do escopo da invenção. Ainda que possamos entrever as sutilezas de seu raciocínio, torna-se paradoxal ao dizer que para o encontro do assunto, é preciso ter muitos assuntos em projeto.

                  64.            No desenvolvimento de seu texto, mais adiante, põe em relevo a questão da novidade como ponto a ser observado pelo artista, ou apresentar uma ideia/forma já utilizada anteriormente, de modo original, que não traga à memória nenhum quadro já visto:

                  65.                                                  A principal preocupação do escritor, como a do artista, deverá ser a de que o argumento ou o assunto sejam apresentados com novidade, e que não se pareçam com outro quadro já visto. A ideia poderá não ser nova, mas deveremos lembrar La Fontaine que, com ideias tiradas de outros, fez fábulas que ficarão eternas e serão lidas com prazer.[19]

                  66.            Acrescenta a inspiração como esforço, produto da concentração do espírito, enfim, consequência do trabalho, e não fruto do acaso. E para a indolência imaginativa propõe “deve-se-lhe dar excitantes” e exemplifica:

                  67.                                                  Se for, por exemplo, um assunto bíblico o que precisamos fazer é ver a bíblia de Snord, ou de Gustavo Doré, ou a de Tissot [...] Quando não vêm [as ideias], deveremos fugir do mundo, isolando-nos num lugar retirado, onde não se recebam jornais, nem revistas, nem visitas, que venham interromper a nossa solidão. O isolamento é o remédio eficaz para domar a apatia do cérebro.[20]

                  68.            Assim nos aproximamos, de alguma forma, do seu processo de trabalho - como se dava a construção de sua obra:

                  69.                                                  Foi na Barreira do Soberbo [Teresópolis, RJ], lugar alto, de ar oxigenado e águas puríssimas, onde tive as minhas melhores ideias, tanto em arte como em literatura: este mesmo trabalho foi esboçado ali, há mais de quinze anos.

                  70.                                                  A vida real é também campo para busca de elementos que constroem o arcabouço da imaginação.[21]

                  71.            E continua propondo orientações:

                  72.                                                  Por disposição entende-se a colocação lógica do que se vai compor, de modo a saber-se o que vai no primeiro plano, no segundo e nos últimos.

                  73.                                                  Todos os elementos que entram em uma composição devem ter por fim a unidade do conjunto, e fazer com que todas as figuras, os movimentos variados, as direções das linhas, tudo tenha por fim ajudar  ação que se quer representar.[22]

                  74.            Por disposição propõe personagens, ações, movimentos, direções, entrelaçando-se para tornar claro o discurso pictórico:

                  75.                                                  [...] precisará ser grande observador, conhecer o coração humano, estudar os gestos que as paixões operam na fisionomia dos indivíduos. Também será preciso que, tanto o artista como literato, sintam a paixão que desejam expressar.[23]

                  76.            Sem nos esquecermos da Epítome de Anatomia (1837 [cf. link]) de Félix-Émile Taunay, obra seminal que compila a teoria das expressões de Charles Le Brun, entre outros tratados para o ensino artístico, esta ideia tem conexões com Diderot:

                  77.                                                  Eis o que diz respeito aos caracteres e suas diferentes fisionomias; mas não é tudo: é preciso acrescentar a esse conhecimento uma profunda experiências das cenas da vida. É preciso ter estudado a ventura e desgraça humanas sob todos os seus aspectos.[24]

                  78.            Comparando o texto literário com o texto pictórico, Modesto Brocos adverte que os recursos de que dispõe o orador, não são pertinentes ao artista, “porquanto está limitado, em absoluto, a representar um dado momento, um instante da cena ou drama que se quer representar”.[25]

                  79.            Há um trecho do abade Du Bos[26], sobre o recorte cronológico da ação dentro do poema e dentro da pintura, em sua narrativa do paralelo entre a pintura e a poesia, que diz:

                  80.                                                  Como o quadro que representa uma ação nos permite ver apenas um instante da sua duração, o pintor só pode elevar à condição de sublime coisas que precederam a situação atual e que à vezes sugerem um sentimento comum. A poesia, ao contrário, descreve todos os incidentes notáveis da ação que trata e aquilo que ocorreu e lança frequentemente algo de maravilhoso sobre uma coisa comum que foi dita ou acontecerá em seguida.[27]

                  81.            Cotejando os textos anteriores, do Modesto e Du Bos, fica configurada uma intensa proximidade.

                  82.            Sobre a elocução Modesto Brocos propõe que os elementos sejam bem desenhados e  pintados  para o convencimento e deleite do público:

                  83.                                                  A elocução corresponde na pintura à perfeita execução do quadro, que tem as qualidades que pode ter o discurso: de expressar com verdade o assunto, que a cor seja justa, que a execução seja franca, briosa e de fácil aspecto, que os movimentos dos personagens que entram em cena sejam variados e expressivos, e que o artista apresente no quadro um conjunto harmonioso de beleza e verdade.[28]

                  84.            Nesse ponto de texto, põe em relevância  sua ideias sobre o desenho, dentro da obra artística:

                  85.                                                  A pronunciação bem sentida, bem acentuada, com suas paradas, suas mudança de voz no correr do discurso, não pode ser comparada a outra coisa que ao desenho de um quadro, que, pela exatidão dos seus contornos, a verdade das formas, a justeza dos acentos, e a exatidão dos detalhes impressiona agradavelmente ao espectador e seduz a todos os instantes que nos encontremos em sua presença na obra.

                  86.                                                  O desenho, num quadro, é o elemento inseparável do assunto. [29]

                  87.            As ideias acima apresentadas, são as ideias correntes do texto de Ingres, no qual diz: “O desenho é a probidade da arte e compreende tudo, exceto a tinta”.[30]

                  88.            Modesto Brocos afiança que o desenho é “alma do quadro” e a probidade da arte, como disse Ingres:

                  89.                                                  Uma obra bem desenhada faz passar despercebida os defeitos de um quadro; seja a cor a composição, e mesmo A invenção passam ao segundo plano, isto é, quando o desenho está feito com verdade, todas as outras qualidades lhe ficam subordinadas.

                  90.                                                  O desenho, num quadro, é o elemento inseparável do assunto; poderemos prescindir das outras qualidades. Quando, porém, uma obra está bem desenhada, impõe-se à admiração do espectador. Sem esta qualidade superior, a obra não se pode suster, nem resiste à análise do crítico, nem mesmo ao juízo imparcial do espectador. Em suma, para terminar: assim como a pronunciação é a alma do discurso, o desenho, em uma pintura, é a alma do quadro.[31]

                  91.            Para Brocos, “o fundo vem a ser a ação moral que se desprende do discurso [...]. Essa ação moral em arte descobre-se pela impressão de alegria ou tristeza que a vista de um quadro, desperta no espectador, e que poderemos dar o qualificativo de sentimento”[32]. Ele avalia este estado como superior, intrínseco à própria obra e dela inseparável, pois representa a emoção do artista que a criou. E iguala espectador e artista, imantados pela mesmo sentimento frente à obra.

                  92.            O autor advertindo-nos dos limites que se impuseram na busca de definições para Beleza:

                  93.                                                  Não nos vamos ocupar de fazer a descrição da beleza, por ser impossível descrevê-la. Nós nos contentaremos de ler o que dizem os tratados que se ocupam dela.[33]

                  94.            Fazendo eco às palavras de Modesto Brocos, apontamos o que Jean Cassou descreve:

                  95.                                                  Mas se se pode empregar a arte para fins sociais, não é essa, porém, a sua função essencial e específica. Mesmo quando o artista perfilha as doutrinas, as convicções e as mentalidades da sociedade que o utiliza, um sentimento diferente, ainda que obscuro e informulado, guia a sua mão executora e faz do objeto fabricado o receptáculo de uma outra força desconhecida que é a beleza.[34]

                  96.            A beleza de uma obra poderia ser qualificada, para alguns, quando há uma “finalidade de imitação servil da natureza”. Aquele que se aproxime mais do natural era considerado o mais perfeito - como sucedeu em tempos do realismo e do naturalismo. Aqui, referências ao pensamento de Winckelmann podem ser sugeridas, para quem: “A imitação do belo na natureza ou diz respeito a um objeto único, ou reúne as observações sugeridas por diversos objetos e realiza um todo único”.[35]

                  97.            Para Modesto Brocos, existem duas belezas na obra de arte. A beleza objetiva que é inseparável da escultura, do quadro ou do assunto em questão; e a beleza subjetiva a qual se refere às sensações que a obra produz no espectador. A primeira é exterior, aparente, enquanto a segunda pertence ao foro íntimo, ao nosso juízo. Para o autor existem diferenças entre o belo e o formoso. Se para os retóricos o belo está em conexão com a razão e o formoso à experiência individual, para Modesto Brocos, o belo é uma aspiração da alma para fim indefinido e absoluto.

                  98.                                                  A estética vem a ser a sensação que produz em nosso eu, ou seja no íntimo de nossa alma, as obras da natureza, de uma parte, e a dos homens e do artista, do outro; também definem ser a estética a ciência do belo.

                  99.                                                  Só deverá ocupar nossos pensamentos a beleza estética ou seja a beleza das formas, que tem representação plástica.[36]

              100.            E em defesa da obra plástica, - propriamente da pintura -, declara em relação à fotografia, revelando, de uma certa maneira, um debate que deveria estar na ordem do dia - o status da fotografia como categoria estética:

              101.                                                  A imitação pode agradar ao vulgo, porém aos espíritos refinados a simples manifestação fotográfica não pode satisfazer, somente nas obras onde se sinta a interpretação do artista, através de sua visão, porquanto, se fôssemos fazer a imitação do que vemos sem meter a nossa visão particular, a fotografia seria, por si só, o cúmulo da arte: - falo com relação à pintura.[37]

              102.            O autor, em seu texto sobre estética cita: D. Quixote de Cervantes, Hamlet de Shakespeare, Moisés de Michelangelo, os anões de Velazquez, Viollet-le-Duc, Buda, o que nos dá uma compreensão das suas escolhas. E ao pontuar sua definição de estética, percebemos uma adesão ao pensamento de Winckelmann, como já aludido anteriormente: “A ciência do belo na arte, e mais propriamente: a ciência que tem por estudo as manifestações do gênio artístico dos gregos, na literatura e nas artes”.[38]

              103.            Entremeado ao seu discurso, vemos considerações mais gerais sobre o processo artístico que delineiam a construção da obra, naquele momento, ou, particularmente, o processo de criação de Modesto Brocos, que deveria seguir uma tendência, um caminho adotado por demais pintores, como:

              104.                                                  Já tenho dito que será proveitoso, antes de compor, dispor o ânimo vendo revistas de museus, de galerias, ilustrações, etc., para adquirir ideias.

              105.                                                  Será preciso escolher entre os mestres aqueles que deixam ver o processo empregado, como sejam as obras de Giotto, Mantegna, Boticelli, Carpaccio, em geral todos os quatrocentistas. Agora os autores do século XVII pintaram com malícia, ocultando os processos, porém, nos servem para admirar alguns deles como Velazquez, Van Dick, Murillo, Ribera, etc. Fora destes grandes artistas, que nos merecem respeito, deveremos fugir de todos os pintores da época de Luís XV. [...] tudo quanto fizeram naquela época está longe de ser belo, e em vez de arte é um artifício.

              106.                                                  Sobre os processos de pintar não creio que se tenha escrito nada de valor. Nos modernos pintores, o processo percebe-se em poucos; é bem notório em David. Em nosso tempo, em Puvis de Chavannes.

              107.                                                  Para tirar partido do que se vê, eu aconselharia aos que estudam pintura, quando virem um quadro ou uma fotografia que os impressione, ter à mão um álbum dedicado a estes trabalhos e fazer um rascunho a lápis do assunto que o tenha impressionado.[39]

              108.            É impressionante o texto acima, pois revela-nos as preferências estéticas do autor Modesto Brocos, além de acentuar os artistas para os quais direcionava suas pesquisas, bem como seu processo de anotação em caderno - rascunho - das imagens mais estimulantes, fosse pintura ou fotografia. É particularmente curiosa, a inserção da fotografia como recurso para futuros estudos.

              109.            E continuando, propõe um exercício voltado para o desenvolvimento das faculdades imaginativas dos alunos, que é revelador sob o ponto de vista metodológico seguido pelo artista, quando em sua função de professor:

              110.                                                  Será apresentar-lhes em aula o quadro ou assunto de um mestre e dizer-lhes: façam este assunto, porém de outra maneira; isto obrigaria o aluno a compor de diferente maneira o que tinha diante dos olhos, e com aquele modelo bom, eles não poderiam deixar de fazer algo saliente, e o pior que poderia sair seria um pastiche.

              111.                                                  Outra coisa importante que o professor poderia ensinar em aula: - Por que um quadro faz bem? Isto seria a pedra de toque para se apreciar um quadro e também a cultura de um professor.[40]

              112.            Na sua abordagem do tema em questão é flagrante sua adesão ao raciocínio duplo - arte e religião - como entidades quase indistinguíveis, tanto que pensa em uma religião futura:

              113.                                                  A arte é uma necessidade que poderemos chamar de superior, que os homens sentem pelas ideias elevadas e poética, coisas que não estão ao seu alcance imediato e das quais precisam para fazer mais agradável a existência.

              114.                                                  A obra de arte esteve sempre e seguiu “pari passo” a ideia religiosa, e a de fixar nos seus monumentos os grandes feitos da humanidade; mais tarde serviu para as novas religiões, e agora com as modernas ideias, nas quais os povos esperam encontrar seus ideais em um estado de governo mais perfeitos e que poderá dar nascimento à religião futura. Podemos, pois, definir a arte como sendo uma alta manifestação da humanidade ao serviço dos ideais de um povo, sejam estes de interesse imediato, de interesse remoto ou sem interesse algum.

              115.                                                  Resumindo: arte é um sentimento elevado da nossa alma para as coisas que se encontram fora do nosso alcance e que poderemos chamar divinas. O verdadeiro artista precisa ser um sonhador, que na sua vida trata de fugir a tudo quanto o circunda para formar-se o seu mundo ideal e conservar-se nele sempre a uma altura que o afaste dos perigos ordinários que possa oferecer-lhe a vida vulgar.

              116.                                                  A arte, segundo, Tolstoi, é um dos órgãos do progresso humano; pela palavra o homem comunica seus pensamentos, pelas imagens comunica seus sentimentos com todos os homens não só do presente como  também do porvir.[41]

              117.            E acentua a missão do artista:

              118.                                                  Podemos definir a razão como sendo o poder que tem nossa alma para conhecer; e as ideias, a representação deste conhecimento.

              119.                                                  Segundo o que acabamos de dizer, o artista pode escolher entre seus assuntos aqueles que mais agradam ao público, e, seja artista ou literato, não fará com isto mais do que prostituir sua pena ou seu pincel. Agora, o que escolhe os assuntos belos de verdadeiro valor, dará às suas cores um sentimento estético que os primeiros não terão e suas obras, mau grado o insucesso do primeiro momento, passarão à posteridade.

              120.                                                  O artista deverá preocupar-se com as relações que existem entre o mundo em que vive e o que imagina e no qual deseja viver; aquele que está cheio de imperfeições, este seguido de grandíssimas dificuldades: o primeiro diz as coisas como elas são, o segundo como elas deveriam ser.

              121.                                                  Devermos, pois, partir da realidade para elevar-nos ao ideal de beleza a que aspiramos, tal será o resultado de um educado entendimento.

              122.                                                  A muitos pintores lhes sucede de olhar com indiferença para os humanos conhecimentos e afiguram-se que, para ser artista, não precisam mais que saber desenhar e pintar; estes no meu entender não são artistas. [...] o artista e o escritor precisam de grande elevação de espírito e muito saber para conservar-se à altura de sua missão.[42]

              123.            As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que foram  registradas nas artes, sobretudo, provocando inquietação. A economia dita novos rumos - São Paulo assume um status novo e sua intelectualidade aciona novos personagens e novo corolário ao programa de arte no país. O nacional é a discussão que se propõe como estética, e que se impõe, às vezes pela força do discurso, pura retórica, do grupo paulista. E é a partir do mesmo recurso - discurso e retórica - que se apropria o autor Modesto Brocos para dar materialidade às suas reflexões, inquietações e inquietações. E consegue, assim, dar corpo, voz e alma ao conteúdo ao longo de seu texto, nem sempre isento como quase sempre desejamos, mas deixando transparecer suas reminiscências, suas heranças e filiações. Coloca em sua pauta  discutir o nacional, propor mudanças, as suas, talvez menos revolucionárias.

              124.            Seu texto está impregnado pelas fragmentações que se fizeram sentir no tecido artístico da virada do século XIX às primeiras décadas do século XX - as propostas modernistas, as vanguardas europeias, o advento da fotografia e sua reprodutibilidade, o uso de novos materiais.

              125.            Mas, o que mais se evidencia é sua preocupação da primeira hora - criar melhores condições para seu primeiro leitor - os pintores em formação. Dar-lhes conteúdo, matéria, substância e espírito.

Referências bibliográficas

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[1] SEVCENCO. Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 28

[2] LICHTENSTEIN, Jacqueline(org.). A Pintura - Vol. 7 : O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, .p. 9.

[3] MASSÉ, Maria Cabrera. Modesto Brocos. Pintores Gallegos  do siglo XIX.

[4] Catálogo da Exposição Modesto Brocos/Retrospectiva. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde/Museu Nacional de Belas Artes, 1952.

[5] DUQUE-ESTRADA, Gonzaga. Contemporâneos (pintores e esculptores). Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929, p. 87.

[6] BROCOS, Modesto. Retórica dos pintores. Rio de Janeiro: Typ. D’A Industria do Livro, 1933, p. 133.

[7] Idem, p. 5.

[8] Ibidem, p. 7.

[9] Ibidem, p. 7.

[10] Ibidem. P. 9.

[11] WINCKELMANN, Johan Joachim. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Movimento/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975, p. 39.

[12] BROCOS, Op. cit., p. 10.

[13] Idem,  p. 10.

[14] Ibidem, p. 11.

[15] WINCKELMANN, Op. cit., p. 69.

[16] BROCOS, Op. cit., p. 12.

[17] VINCI, Leonardo. Tratado da pintura (O Paragone). LICHTENSTEIN, Jacqueline.(org.) A pintura - Vol. 7: O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 17-27.

[180] BROCOS, Op. cit., p. 13.

[19] Idem, p. 13.

[20] Ibidem, p. 14.

[21] Ibidem, p. 14,

[22] Ibidem, p. 15.

[23] Ibidem, p. 16.

[24] DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a pintura. Campinas: Papirus, 1993, p. 88.

[25] BROCOS, Op. cit., p. 16.

[26] DU BOS, Jean-Baptiste. Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura. LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura - Vol. 7: O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 60-73.

[27] Idem, p. 63.

[28] BROCOS, Op. cit., p. 17.

[29] Idem, p. 18.

[30] INGRES. Écrits sur l’art. Paris: Bibliothèque des Arts, 1994, p. 41.

[31] BROCOS, Op. cit., p. 18.

[32] Idem, p. 19.

[33] Ibidem, p. 21.

[34] CASSOU, Jean. Situação da arte Moderna. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965, p. 13.

[35] WINCKELMANN, Op. cit., p. 47.

[36] BROCOS, Op. cit., p. 25.

[37] Idem, p. 26.

[38] Ibidem, p. 28.

[39] Ibidem, p. 32.

[40] Ibidem, p. 34.

[41] Ibidem, p. 38.

[42] Ibidem, p. 40.