Gonzaga Duque: Crônicas dos salões na Revista Kósmos

Cristina Pierre de França

FRANÇA, Cristina Pierre de. Gonzaga Duque: Crônicas dos Salões na Revista Kósmos. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/gd_kosmos.htm>.

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Gonzaga Duque foi um intelectual e escritor típico do final dos oitocentos brasileiro[1]. Jornalista e escritor ligado ao simbolismo, produziu uma obra de referência sobre a história da arte brasileira do século XIX.  Como um homem do seu tempo incorpora a figura do dândi, influenciado pela mentalidade francesa em voga no Brasil daquele período.

O interesse por Luiz Gonzaga Duque Estrada, ou Gonzaga Duque como é conhecido, se origina do livro que escreveu sobre a arte brasileira [A arte brasileira] em que discutia e procurava tecer uma história crítica da arte no país. De modo que este autor é uma referência importante quando se estuda a arte brasileira do final do século XIX e início do século XX, tendo atuado na imprensa carioca entre 1887 e 1911 [2], em jornais e revistas de grande circulação.

Gonzaga Duque nasceu em 1863 e morreu em 1911 de enfarte fulminante, era filho de mãe brasileira e de pai suíço, o qual não conheceu, sendo criado pela família materna. Não freqüentou uma universidade, sua incursão no mundo das letras aconteceu através do jornalismo. Atuou na imprensa carioca escrevendo em jornais e revistas importantes da cidade como: O Paiz, A Semana, Diário de Notícias, Folha Popular, Kósmos e Fonfon, entre outros.

Nesses veículos Gonzaga Duque criticava e comentava principalmente assuntos relacionados à Arte, ao funcionamento dessa atividade na cidade.   Não obstante um viés crítico, construiu  diversas historias  ficcionais a respeito das  exposições  e dos Salões de arte daquele período específico, que ficou denominado de Belle  Époque do Rio de Janeiro.  Nesse sentido, seus textos encontram paralelo com um tipo de escritura muito próprio da imprensa daquele momento na cidade: as crônicas.

Em seu sentido literal as crônicas são o registro da passagem do tempo, uma vez que etimologicamente deriva do termo latino chronica, “registro de fatos sucessivos”[3]. Historicamente, a crônica apresenta duas acepções: designa um tipo de narrativa de origens medievais, centrada na  questão temporal, em que o relato pode  apresentar uma leve teor ficcional, outro significado está  relacionado ao seu sentido na imprensa, em que  faz  um registro dos fatos cotidianos, que apresentam uma significação para o cronista que o relata, mas que incorpora por vezes, algum aspecto ficcional.

Nesse sentido, a crônica é um gênero literário híbrido, nem romance, nem ficção, sua configuração  não está relacionada apenas aos aspecto formal do texto, mas propõem uma forma de diálogo, uma  escritura, que permite uma  leitura da cidade, através dês textos deliciosos que funcionavam como  um vetor para discutir a cidade e seus meandros.

Essas crônicas da imprensa carioca, no final do século XIX e início do século XX, eram a maneira  sob a qual os jornalistas e escritores apresentavam uma interpretação da cidade que se transformava,  fisicamente e culturalmente. Discutia-se nelas, tanto os fatos banais, da vida do cidadão comum, quanto os fatos políticos mais relevantes.  Nessa plêiade encontramos ainda, cronistas que se debruçavam especialmente sobre assuntos como: política, humor, crítica dos costumes e arte.

Entre os cronistas do Rio de Janeiro encontramos figuras tão distintas quanto Ângelo Agostini, Olavo Bilac, Machado de Assis, João do Rio, José do Patrocínio, Arthur Azevedo e Gonzaga Duque entre outros. As crônicas destacavam a vida cultural da cidade e ofereciam-se aos mais diversos comentários e debates.

Uma imprensa que incluía além dos jornais diários, outras publicações como as revistas ilustradas, de caráter político, humorístico, científico, literário ou artístico. Trataremos aqui dos escritos sobre arte publicados na Revista Kósmos, por Gonzaga Duque, mais precisamente dos seus textos relacionados aos Salões de Belas Artes realizados entre 1904 e 1907, procurando detectar quais os conceitos de arte que conformava e que relações fazia com a cidade e com o momento cultural que vivia. 

Escritor e crítico seus textos eram marcados pelo Simbolismo, o que trazia já de antemão um problema, uma contradição com o momento vivido pela cidade e pelo país naquele momento específico, já que apresentava certos anacronismos referentes a uma cidade atemporal e não em vias de se modernizar como o Rio de Janeiro.

O Simbolismo como movimento artístico pode ser caracterizado por uma aspiração a uma espiritualidade, que deita suas raízes, não  neste mundo fenomênico, mas numa dimensão metafísica e imaterial, que se configura numa perenidade ideal, numa imutabilidade. Ora, aquele momento que a cidade e o país atravessavam pediam uma atitude oposta. Grassavam aqui, ações que apoiavam a idéia de mudança, de transformação, almejando o novo e o moderno.

Embora fosse uma modernidade “encenada” e teatralizada, no sentido que não era extensiva a todos e se constituía principalmente a partir da construção de uma aparência localizada e pontual, representada pela  Avenida Central, seu principal  cenário e paradigma; não se deve desconsiderar que   metonimicamente esse “palco moderno” atendia a um desejo de transformação, de substituição através dela de toda a cidade  velha, com seus cortiços, com seus problemas sanitários e doenças que se queria superar. 

Esse modelo derrubava, destruía a antiga cidade colonial do Rio de Janeiro, pelo menos em um determinado espaço geográfico, e em seu lugar, construía uma outra cidade civilizada, cuja principal meta era alcançar Paris, com sua arquitetura eclética, com seus passantes sofisticados e elegantes. 

Essa contradição estava presente na crônica de Gonzaga Duque que ao mesmo tempo se pretendia um dândi [4], refinado e culto, um homem das letras, intérprete das artes para a cidade e seus cidadãos tanto os de vida rude a qual a arte não tinha lugar, quanto para os seus amadores.

Esse caráter artificial revela um dandismo um tanto ou quanto blasé de nosso cronista,  uma atitude na qual a  Professora Vera Lins encontra traços de semelhança com Baudelaire. De fato, Gonzaga Duque via-se como um conhecedor das artes, como um erudito e escritor, capaz de discutir sobre os mais diversos assuntos, desde a Historia da Arte Brasileira até a História de suas revoluções, o que o colocava em conexão com o meio intelectual europeu. 

As crônicas de arte de Gonzaga Duque, podem ser consideradas um tipo particular de texto em meio aos cronistas do mesmo período, tanto em relação ao seu assunto, quanto em relação ao dia-a-dia da cidade. Nos textos lidos não foi encontrada uma citação mais intensa do cotidiano de “Sebastianópolis”, como eventualmente denominava a cidade, nem dos seus habitantes,  desconstruindo minha  hipótese inicial para esse trabalho. Quando o autor faz referências ao entorno, estas são breves e em raríssimas passagens.

O que fica patente nas críticas é um desconforto, a contradição, como já afirmamos anteriormente, entre essa modernidade, esse cosmopolitismo que o autor cultua, na sua filiação a um caldo cultural europeu e um nativismo, e o  sentido de nacionalismo; entre a  transformação e a  continuidade.

Nesse sentido, escrever na Revista Kósmos também pode ser considerado um sintoma dessa contradição.  Em seu primeiro número em 1904 a revista se apresenta como  uma revista moderna, que  tem por modelo “as mais notáveis publicações ilustradas européias e norte-americanas”[5], o editor da revista apresenta as dificuldades de sua produção e  pontua  seus objetivos com a publicação, o de difundir  o conhecimento nas mais diversas áreas de conhecimento, quer fazer dela “um artístico álbum de nossas belezas naturais, dos primores de nossos artistas, propagando conhecimento a outros pontos do país e  do estrangeiro”[6].

A revista se caracteriza por um apuro na produção, tanto em relação a sues componentes tipográficos e visuais, como tipografia, diagramação, ilustrações e fotografias, quanto em relação à própria materialidade, a capa é produzida em um papel de maior gramatura, de cor cinza com a tipografia em rosa sobre  ilustração com fundo rosa, já as páginas internas  tem como suporte papel couché mais brilhante. A revista apresenta em torno de sessenta páginas por publicação e apresenta um formato  que fica a meio do caminho entre o jornal e as revistas da atualidade.

As Crônicas dos Salões

Gonzaga Duque admite sua condição de crítico[7] e de  cronista, já nas primeiras  frases do texto em que apresenta o Salão de 1904[8].  Com relação a tarefa de crítico, define-a como a tarefa de  classificação dos trabalhos  do Salão, além da  determinação acerca das escolas estéticas que  compõem as obras apresentadas. Com relação à crônica refere-se a si mesmo como  um “rabiscador de crônicas, habitualmente desajeitadas e pretensiosas”[9]  buscando a concordância e  a atenção de seu leitor.

Em todas as crônicas percebe-se em nosso cronista um apreço pelo conceito naturalista da arte, pela verossimilhança dos temas retratados. Em diversas passagens o vemos apontando para essa característica. Ao analisar uma pintura de Augusto Petit, um retrato do Barão Homem de Mello, Gonzaga Duque comenta:

Este retrato do Sr. Barão Homem de Mello é uma tela que merece francos elogios [conta que enquanto estava contemplando a pintura, chega o retratado ao salão] [...] Tive portanto a oportunidade de comparar retrato e retratado, ... em foco da minha visão. Não há dúvida, as cabeças eram as mesmas, as mesmíssimas expressões. Apenas um senão: para não destruir o efeito do olhar as grossas lentes, de operado de cataratas, que o Sr. Barão usa nos seus óculos, iguais as que eu uso, [...] foram substituídas por vidros finos nos óculos do retrato. Pouco vale o reparo.[10]

Ainda em outra crítica de um quadro de Vasquez que apresenta um rosto feminino completa:

O aveludado do pastel dá-lhe a epiderme a maciez voluptuosa das penugens nascentes, o reverbero do fundo, em vivos apoteóticos de alaranjados ilumina-lhe o contorno do perfil, a nudez do busto que parece feita de uma maravilhosa pele de seda frouxa vivificada por beijos.[11]

Entretanto, como simbolista, não prescinde também da idéia de evocação que essas obras devem configurar.  São diversas as passagens em que mergulha nas idéias rememorativas e imaginativas que as obras lhe provocam, aludindo a meditações, idealizações e imaginações relacionadas aos  trabalhos expostos.

Com relação a obra  Quietude, que representa uma mulher com uma criança ao colo,  de Heitor Malagutti  descreve-a como  um “pedaço de tela meditativo”[12] e mais, como  uma obra que possui uma idealização, nascida da simplicidade que vai  diretamente ao espírito, e na qual  esta condição opera como um  obstáculo entre  artista  e público  e ainda que este tipo de pintura pode ser “restringida  a um pequeno círculo de amadores”; continua comentando com respeito a figura feminina que:

A firmeza macia de seu olhar possui  uma penetração que excita pensamentos. E para tranqüilidade, [...] nessa criança loura adormecida no seu regaço, tal houvessem ambas saídas dum muro do templo cristão onde as deixavam os cândidos pincéis dum decorador primitivo.

Daí provem a fixação intencional do artista que pretendeu e conseguiu dar ao  quadro o caráter pré-rafaelista dos estetas rebelados contra a tendência copiadora da arte contemporânea.[13]

Talvez esse seja um dos trechos em que mais fortemente se perceba a crítica de nosso autor à modernidade nas Artes, uma vez que os pré-rafaelitas como um segmento do simbolismo, trabalhavam com a idéia de uma permanência metafísica da arte, sustentada por um caráter eminentemente 'realista', que dava a suas obras uma característica de irrealidade.

Na crônica “Salão de 1904” de imediato, o escritor  aponta para uma  produção artística destituída de originalidade, tanto na temática quanto nas técnicas apresentadas, a diferença segundo ele,  assenta  sobre a  habilidade de cada artista em interpretar adequadamente   seus motivos.

A falta de novidade leva  nosso escritor a apresentar com o correr dos anos um cansaço com respeito aos Salões, escreve ele, no início de sua crônica  do Salão de 1907,  “quando comprei o meu bilhete de entrada no Saguão da Escola Nacional de Belas Artes senti um fastio, pareceu-me desnecessário subir para ver coisas que não me sacudiriam os nervos nem me comoveriam”[14].

Nesse sentido, para tornar o  texto mais ágil, introduz como recurso estilístico em  algumas de suas crônicas um terceiro elemento, além do  narrador-cronista e do leitor.

Na crônica sobre o Salão de 1905 inicia e termina seu texto aludindo a uma mulher misteriosa, com características desse estilo moderno[15] que está em voga na cidade e a qual acrescenta certo ar misterioso a partir de  metáforas  cromáticas:

No átrio pouco distante do Gladiador, vejo passar a silhueta ornamental duma esvelta Sra., encantadoramente cingido por um costume-tailleur cor de musgo. Num gesto rápido, em que a elegância  se confunde com a prática, a sua estreita e fina destra, em pelica branca, arrepanha a saia. Descubro a linha de escorço dum borzeguim de verniz ... Ela galga os degraus [...] apanho-lhe o perfil de  relance. É claro. Tem a pupila negra. Negros lhe são os cabelos, sobre os quais decliva para frente o chapéu de palha  negra ... [16]

A citação a essa mulher entremeia sua crônica, volta e meia, deixa de lado a observação das obras para se fixar nesta bela dama,  ao final da crônica conjectura: 

[...] E quem seria? ... Ora que me importa lá saber [...] Uma deusa talvez descida a terra para dar a um pobre mortal arruinado e triste a alegria necessária à sua penosa missão [ir ao Salão]. De qualquer forma verdadeira ou imaginária, deusa ou simples madame três estrelinhas de qualquer forma, uma linda mulher! Isto basta! [17]

No “Salão de 1906” introduz um interlocutor, com o qual dialoga durante toda crônica, trata-se de um moço chamado Polycarpo, com o qual se encontra por acaso: “Na Praça de São Francisco de Paula encontrei o meu ilustre amigo Polycarpo todo dominical numa fatiota cinzenta, enfeitando a sua lapela com um ramilhete de hortênsias, de fronte de achavascado brutamontes, vendedor de flores”[18].

Ao descrevê-lo Gonzaga Duque nos dá um retrato do vestuário e da forma dos diálogos travados, da  linguagem  empregada no cotidiano. Aliás, esta crônica é a única em que existe uma referencia a situação da cidade com suas ruas em reconstrução e cheias de poeira com “casas alegres, muita gente em casemiras claras, algumas mulheres bonitas”, é também  aquela em que aparecem gestos de caráter mais popular,  que são sempre atribuídos a Polycarpo, quando  ultrapassa o limite da boa educação ao bradar em alto e bom tom  sua  admiração por determinada obra.

Essas passagens causam estranheza porque nas crônicas lidas Gonzaga Duque mesmo quando tenta pilheriar, apresenta um certo caráter intimista, um certo escapismo, na medida em que mergulhar nas obras de arte e faz delas o seu mundo, a sua artificialidade, em seu sentido mais profundo, como construção, algo que não é dado naturalmente. Compreendo essa configuração como uma característica de sua opção artística pelo simbolismo. Como uma produção que busca encontrar o metafísico, de cada obra e traduzi-lo em seus escritos.

Bbibliografia

GONZAGA DUQUE. Contemporâneos (Pintores e Escultores). Rio de  Janeiro, Typografia Benedicto de Souza, 1929

_________________. Graves & Frívolos. Rio de Janeiro Fundação Casa de Rui Barbosa/Sette Letras, 1997.

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de S. Villar. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.

LINS, Vera. Gonzaga Duque: crítica e utopia na virada do século. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996.

REIS, CARLOS e LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Narratologia. Coimbra, Livraria Almeida, 1996.

Periódicos

Revista Kósmos. Rio de Janeiro, 1904 –1907.


[1] Pra saber mais sobre outros críticos de arte oito-novecentistas consultar: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/artigos_imprensa.htm e http://www.dezenovevinte.net/criticas/txtcriticas.htm

[2] Vera Lins. Gonzaga Duque: crítica e utopia na virada do século. Rio de Janeiro,Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996. p. 5.

[3] Antonio Hoauiss e Mauro de S. Villar . Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001. p. 877

[4]  Segundo o dicionário Houaiss de Língua Portuguesa um dândi é alguém que se veste com elegância e requinte, e que se compota com afetação, em literatura reporta-se ao estilo marcado pelo artificialismo e pelo excesso de refinamento.

[5] Revista Kósmos. Revista Artística Científica e Literária.  Rio de Janeiro, Ano 1, nº1. p. 3.

[6] Ibid, id.

[7] Julgamento de gosto a respeito de determinada produção artística.

[8] Gonzaga Duque. “Salão de  1904”. In: Contemporâneos. p. 101 e seguintes.

[9] Gonzaga Duque. Contemporâneos, p. 101.

[10] Gonzaga Duque. “Salão de 1907”. In: Contemporâneos. p. 146 e seguintes.

[11] Gonzaga Duque. “Salão de 1906”. In: Contemporâneos. p. 136 e seguintes.

[12] Gonzaga Duque. “O Salão de 1905”.  In: Revista Kósmos. Ano 2, nº 9, setembro de 1905.

[13] Ibid, ibidem.

[14] Ibid.

[15] A denominação de Belle Époque remete imediatamente a Art Noveau também denominado de Estilo Moderno. Este estilo é caracterizado pela preponderância das formas femininas e flores, formas sinuosas e curvilíneas, que aludem a graciosidade  e à feminilidade.

[16] Gonzaga Duque. “O Salão de 1905”.  In: Revista Kósmos.  Op. Cit.

[17] Ibid, ibidem.

[18] Gonzaga Duque. “Salão de 1906”. Op. Cit. p.136