A insubmissão narrativa de Horto de mágoas, de Gonzaga Duque: apresentação geral

Liliane Machado [1]

MACHADO, Liliane. A insubmissão narrativa de Horto de mágoas, de Gonzaga Duque: apresentação geral. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 3, jul./set. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/gd_horto.htm>.

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Durante meu curso de doutorado e o tempo em que escrevia a tese, os colegas que me perguntavam qual era o assunto de minha pesquisa surpreendiam-se quando dizia que era o Horto de mágoas, de Gonzaga Duque.

A maioria não conhecia nem o autor, nem a obra. Mas a surpresa não acabava nesse ponto: continuava se lhes dizia que se tratava de um autor e de uma obra do início do século XX, representativos da narrativa simbolista/decadentista brasileira.

Mesmo especialistas, acostumaram-se, pela leitura dos Compêndios de Literatura mais consagrados, a reduzir o estudo das narrativas daquele momento àquelas cujo viés era realista ou naturalista. Do Simbolismo, normalmente só se conhece a produção poética e de Cruz e Sousa.  Há mesmo, por muitos, a defesa de que o Simbolismo, pela natureza de sua linguagem, é incompatível com o discurso em prosa, o que tornaria natural a ideia de que a narrativa simbolista no Brasil seria irrisória ou mesmo inexistente.

A surpresa com a qual convivi cotidianamente, toda vez que falava de Gonzaga Duque e de sua obra, na verdade, indiciava aquilo que mais interessava a meu projeto de estudo: a discussão sobre o papel periférico ocupado no cânone não só pelos contos de Gonzaga Duque, como também, mais amplamente, pelo tipo de prosa de ficção por eles exemplificada.

A falta de notabilidade dessas produções hoje é, certamente, resultado de um longo processo de alijamento, que as apagou da memória literária brasileira, e cujo primeiro sujeito foi, sobretudo, o grupo dominante dos formadores da opinião literária da época.

Naquele tempo, vigorava um modelo crítico afinado com as estéticas que eram fortes desde a segunda metade do século XIX - o Realismo e o Naturalismo Para esse modelo crítico, as narrativas simbolistas, como as do Horto de mágoas, eram consideradas produções menores, de baixa qualidade literária. Só para exemplificar, queria citar aqui, o comentário que José Veríssimo fez sobre o romance Mocidade Morta, de Gonzaga Duque, em um artigo seu publicado no Jornal do Comércio, em 5 de fevereiro de 1900:

Não digo de um livro sem lê-lo todo, e infelizmente não pude, por mais esforços que fizesse, ler completamente os dois romances Mocidade morta, do sr. Gonzaga Duque e a Fazenda Paraíso, do sr. Artur Guimarães. Nestas condições prefiro apenas confessar que não me foi possível, apesar de toda minha boa vontade, lê-los.

Esse tipo de julgamento do mais renomado crítico da época foi, evidentemente, decisivo para o ostracismo em que caíram o autor e sua obra, e explica, de certa forma, a surpresa de muitos quando falo de minha pesquisa.

Por outro lado, também não é a pretensão desta tese invalidar totalmente a avaliação feita por tantos críticos importantes daquela época e de épocas posteriores, arvorando-se na correção de uma injustiça ou no resgate de um vulto incompreendido da literatura brasileira.

Não. Nosso objetivo é mais modesto. O que queremos mesmo é tentar restabelecer a polifonia que existiu naquele momento, e que se emudeceu com o passar dos anos, lançando um outro olhar sobre a obra narrativa de Gonzaga Duque, em particular o Horto de mágoas, tentando entender as complexas relações que ela manteve com o campo intelectual em que circulou.

Para começar, apresentemos a obra para aqueles que não a conhecem:

Horto de Mágoas foi publicado postumamente, em 1914 - Gonzaga Duque morrera em 1911, aos 44 anos, de infarto fulminante, ao sair da redação da revista Fon-Fon!, que ajudou a fundar - e a obra é composta por 12 contos. São narrativas em tudo diferentes do modelo realista a que estamos acostumados, tanto no plano do enunciado, com o desenvolvimento de temas que vão do ocultismo à emancipação feminina, quanto no plano da enunciação, com uso de uma linguagem inventiva extremamente complexa e requintada.

Essa obra não teve 2a. edição até 1995, quando a professora Vera Lins e o professor Júlio Castagnon Guimarães a retiraram do limbo em que estava. Ainda assim, continuou, evidentemente, obra de conhecimento restritíssimo.

Agora, passemos à tese:

Gonzaga Duque, ao posicionar-se no campo intelectual brasileiro da virada do século XIX para o XX como militante de estéticas como o Simbolismo, o Decadentismo e o Art Noveau, tinha a total consciência de ocupar um lugar à margem.

Essas estéticas, cada uma a seu modo, opunham-se ao Positivismo e ao Cientificismo dominantes e, por consequência, criticavam a euforia belepoquiana em relação ao conforto e ao bem-viver fundados no progresso material e preconizados pela sociedade capitalista industrial moderna.

Para elas, essas estéticas, vivia-se, na verdade, um tempo nebuloso e decadente, em que o utilitarismo e o pragmatismo haviam relegado para a arte, um lugar secundário, e para o sujeito, a fragmentação.

Dentro desse contexto, Horto de mágoas apresenta um interessantíssimo panorama da relação opositiva com o centro do campo intelectual, relação essa que a formação do cânone acabou escondendo.

A obra mostra uma série de narrativas que vão promovendo a relativização e a crítica, muitas vezes contundente, do que se vinha estabelecendo como dominante no âmbito do pensamento, da arte e da literatura brasileira naquele começo de século.

A fim de compreender a extensão desse papel consciente de oposição exercido por Horto de mágoas,  dividimos seus contos em grupos, seguindo um critério predominantemente temático.

Um dos grupos de textos com o qual trabalhamos é constituído por três contos: “Ciúme póstumo”, “Confirmação” e “Posse suprema”. Em comum, esses contos discutem uma das mais complexas questões não só daquela época, mas ainda da nossa: os limites da Ciência como balizadora da verdade e da lógica racional como articuladora do conhecimento.

Eles narram acontecimentos insólitos, em que o ocultismo é uma das forças motrizes, e apresentam a seus leitores histórias que fogem à representação razoável da realidade. Contra o domínio da matéria, defendem a existência do espírito. Contra as certezas da ciência, instauram a dúvida sobre o modo como acreditamos que se organizam o mundo e as coisas.

Assim, dão voz a uma mundividência dissonante e marginal, recusando-se a aceitar as fórmulas de explicação preparadas pela ideologia positivista da época, promovendo uma discussão que pode ser considerada de fundo epistemológico, porque relativiza o próprio conceito de verdade.

Além de colocar-se como oposição ao pensamento positivista dominante, Horto de mágoas revisita as relações socialmente estabelecidas entre homens e mulheres e instaura uma inusitada e revolucionária representação feminina. Isso ocorre particularmente nos contos “Aquela mulher!”, “Miss Fatalidade” e “Agonia por semelhança”.

É aqui que devemos lembrar que, para Gonzaga Duque, como para os decadentistas de maneira geral, a oposição à burguesia se fazia nos espaços à sua margem, especialmente na boemia, em que circulavam figuras como as mulheres fatais emancipadas e os dândis com sua inutilidade social, personagens que povoam vários contos de Horto de mágoas.

Na vaga decadentista, surgem Salomés que dessacralizam a moral vigente, a pleitear o direito ao prazer, ao protagonismo social e a seduzir os homens que se deixam enlevar por sua volúpia. Novamente, a oposição ao estabelecido é flagrante.

Mais flagrante do que isso só mesmo nos contos em que surge a autorreflexão artística explícita, contos como “Sapo”, “Ruínas” e “Morte do palhaço”.

Neles, o centro da discussão é a própria posição do artista no mundo utilitário que se apresenta.

Num mundo em que só se dá valor para aquilo que possa ter um uso imediato e prático, a arte deixa de ter sentido, a não ser que assuma uma posição de hipervalorização daquilo que marca sua excepcionalidade diante dos outros produtos humanos.

É isso que defendem tais contos: a marginalidade social e ideológica necessária do artista no campo intelectual de seu tempo e o trabalho estético meticuloso em oposição ao pragmatismo social vigente.

Contra o progresso, a natureza. Contra o futuro obscuro, o passado irrecuperável. Contra o objetivismo, o subjetivismo.

Nesse contexto é que entendemos a enunciação insólita dos contos de Horto de mágoas.

O excessivo burilamento do discurso em prosa que é a marca de Gonzaga Duque está intimamento ligado a esse projeto de oposição que estamos demonstrando.

Em um mundo em que o tempo para a reflexão acabou, já que o principal objetivo das coisas é o utilitarismo, investir em uma linguagem literária complexa e de dificílima compreensão é andar na contra-mão. É valorizar o artesanal que estava sendo substituído pela produção em série. É deixar a indefectível marca da humanidade.

E é justamente essa marca da humanidade que se constitui como a grande oposição que Horto de mágoas faz ao centro do campo intelectual de seu tempo e que se expressa em um tema perseguido por praticamente todos os contos do livro: a morte.

A morte, que fingimos todo tempo não existir, e cuja sensação de inexistência é usada pelo senso comum para falsear nossos dramas existenciais, não se esconde no livro de Gonzaga Duque.

Refletir sobre a morte, como fazem especialmente contos como “Idílio roxo” e “Sob a estola da morte” é, em última instância, negar a alienação de nossa própria humanidade, negar nossa reificação, uma vez que somos os únicos e solitários seres a ter consciência dela.

Dela que nos interpela e que nos leva à mais cruel de todas as indagações: para que tudo isso?

Assim, Horto de mágoas, com seu discurso deslocado do centro, executa seu projeto consciente de insubmissão narrativa, tornando muito mais matizado e complexo o panorama das Letras brasileiras do início do século XX.


[1] Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Professora do Colégio Pedro II.