Proposições para o estudo da crítica de arte do século XIX [1] [2]

Dario Gamboni

GAMBONI, Dario. Proposições para o estudo da crítica de arte do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Tradução de Arthur Valle. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/dgamboni_critica.htm>.

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As artes são um vasto domínio, do qual eles possuem todas as chaves em seus bolsos […]

Eugène Delacroix, “Des critiques en matière d'art”, 1829

Definição, delimitação

1.       O que devemos entender por “crítica de arte” do século XIX? No Petit Larousse de la peinture, Philippe Junod distingue duas acepções do termo “crítica de arte”: de um lado, um sentido estreito, que designa um gênero literário específico, cuja aparição no século XVIII coincide com a retomada da organização regular de exposições públicas e do qual os Salons de Diderot constituem o protótipo por excelência; de outro lado, um sentido amplo, que se aplica a “todo comentário sobre uma obra contemporânea ou do passado”, e abarca gêneros tais como a poesia, a ficção romanesca, a biografia, o ensaio, a correspondência e o diário[3].

2.       Nesse segundo sentido, a “crítica de arte” recobre aquilo que Julius von Schlosser denominou a “literatura artística” (Kunstliteratur), ou seja, do ponto de vista de Schlosser, o conjunto de “fontes escritas secundárias, indiretas”, com exceção somente “dos testemunhos impessoais como as inscrições, atas e inventários”[4]. Em balanço teórico e metodológico das relações entre arte e literatura no século XIX, Jean-Paul Bouillon propôs uma lista provisória de “categorias” de textos compreendidos nessa “literatura artística”, mencionando alguns exemplos conhecidos:

3.                                             o artigo de imprensa ou o verbete de dicionário, a crônica de arte (Burty, Geffroy), a resenha de exposição (os Salons), o guia de museu (Gautier), o relato de viagem, a monografia (Champfleury, Goncourt), o estudo histórico (Thoré, Chesneau), o texto polêmico (Silvestre, Mirabeau), o manifesto (Duranty, mas também Courbet ou Manet), a coletânea de aforismos (Dolent), o romance sobre arte (Burty, Goncourt, Zola), o romance de arte, […] a correspondência de arte (Pisarro, Van Gogh, Cézanne) […] [5]

4.       Percebemos, de imediato, que todas essas categorias foram praticadas por autores considerados como “críticos de arte”. Com efeito, os laços unindo o Salon ou, mais amplamente, a resenha de exposição, aos outros gêneros são numerosos e importantes, como testemunha o parentesco não somente de autores, mas também de órgãos de publicação, de canais de difusão e de públicos, assim como a complementaridade das funções. Dessa maneira, a fronteira separando a definição estreita e a definição ampla de crítica de arte se revela permeável e mesmo imprecisa, suscetível de se tornar objeto de debates e de constituir um tópico de discussão para os protagonistas, assim como para os seus historiadores[6]. Eu proponho, portanto, considerar que, para compreender a estrutura da “crítica de arte” do século XIX, é necessário levar em conta a priori do conjunto da “literatura artística” do período.

Heterogeneidade, pólos, tipologias

5.       Esse conjunto é, evidentemente, heterogêneo, composto de todo tipo de textos, de autores e de publicações, tratando de temas muito diversos, e sua análise demanda uma tipologia ou, melhor, tipologias.

6.       Em um estudo sincrônico dos modos de descrição das obras de arte na França de fins do século XIX, Catherine Lepdor distinguiu, com base em uma análise interna, duas concepções antagônicas de crítica de arte, que ela associou a tipos opostos de autores, de órgãos de imprensa e de públicos[7]: tratava-se, de um lado, de uma concepção “científica”, que preconizava a objetividade e a exatidão, defendida e ilustrada por educadores ou administradores das Belas Artes, como Georges Lafenestre, Eugène Müntz, Louis Courajod e Paul Mantz, em revistas prestigiosas e duráveis, tais como a Revue des Deux Mondes e a Gazette des Beaux-Arts; e, de outro lado, de uma concepção “literária”, que privilegiava a expressão subjetiva e “sintética” - na tradição da crítica “poética” romântica e baudelariana[8] -, praticada por jovens escritores independentes, como Albert Aurier, nas pequenas revistas efêmeras (à exceção do Mercure de France) e autofinanciadas do simbolismo. Eu proponho considerar essas duas “concepções” como pólos, e a estes acrescentar um terceiro, o pólo “jornalístico”, desenvolvido sobretudo nos jornais diários, por profissionais de imprensa. Me parece possível avançar a hipótese de que, durante século XIX, mais particularmente em sua segunda metade, aquilo que chamamos “crítica de arte” conheceu um processo de profissionalização[9], no curso do qual o pólo jornalístico se tornou dominante, enquanto o pólo científico foi objeto de uma especialização, constituindo a “história da arte” - essencialmente consagrada às obras do passado -, e o pólo literário se viu marginalizado e relegado como uma forma de “literatura pura”.

7.       Elementos de categorização análogos se encontram em declarações sobre a crítica de arte, feitas no final de século XIX. Em 1893, com o intuito de colocar em relevo as excepcionais qualidades de crítico que atribuía a Joris-Karl Huysmans, Roger Marx reconhecia, por exemplo, que “o momento presente não carece nem de historiadores eruditos, nem de repórteres em busca de atualidades, nem de cronistas sedutores e volúveis”[10]: os “historiadores eruditos” evocam o pólo científico e os “repórteres em busca de atualidades” o pólo jornalístico; quanto aos “cronistas sedutores e volúveis”, podemos relacioná-los ao pólo literário, pelo primado formal da língua, e ao pólo jornalístico, pelo gênero da crônica. Em 1903, ao definir a “missão da nova crítica” e ao declarar que “muitos artistas desprezaram a profissão por causa dos profissionais”, Camille Mauclair excluiu, por seu turno, o modelo jornalístico, afirmando que “a ideia do crítico é quase análoga àquela do poeta, e um misto entre aquela do poeta e do sábio”[11].

8.       Esse esquema tripolar deveria servir a uma classificação, mas tipologias mais precisas são necessárias a fim de analisar, sobre os eixos sincrônico e diacrônico, o espectro de autores, de textos, de órgãos de publicação e de objetos da crítica. A questão das categorias de textos já foi evocada, e aquela dos objetos da crítica a ela se relaciona muito diretamente; seria necessário afinar as divisões (distinguindo, por exemplo, no contexto dos artigos de imprensa, as resenhas de exposição individual, de exposição coletiva, de grupo de exposições ou de salon(s), as entrevistas e as enquetes, os exames retrospectivos da obra de um ou de vários artistas, os necrológios, as definições de um grupo ou de um movimento, os debates estéticos, históricos ou políticos gerais etc.) e destacar os elementos de hierarquização que as atravessam, como a oposição entre o geral e o particular, ou aquela entre o durável e o efêmero[12].

9.       Sendo a crítica de arte desprovida de formação específica e não constituindo a ocupação exclusiva de seus autores, uma atenção particular deveria ser concedida ao estudo comparativo das formações e sistemas de atividade desses últimos, assim como de suas origens sociais e de seus vínculos institucionais. Por quais vias os diversos “críticos de arte” chegaram à crítica de arte? Além disso, quantos e quais autores escreviam poesia ou ficção, trabalhavam na imprensa, ensinavam, ocupavam um posto na administração de Belas Artes, colaboravam com os marchands, produziam eles próprios obras de arte[13]? A partir de uma primeira sondagem efetuada com base em obras publicadas, de um lado, pelos autores de resenhas do Salon de 1859, e, de outro, pelos autores catalogados como críticos de arte em 1893, Martha Ward constatou uma fraca, mas crescente, tendência à especialização entre os críticos, bem como a preponderância de autores que se dedicavam igualmente à crítica literária[14].

10.    Por fim, uma tipologia de órgãos de publicação deveria levar em conta a sua periodicidade (do periódico diário ao livro), o seu grau de especialização, a sua tiragem e difusão, assim como a composição sócio-política de seus colaboradores, de seus financiadores e de seus públicos. Aí também, os elementos de hierarquização, bem como de divisão, devem ser destacados, remetendo a princípios de hierarquização e de classificação em parte diversos e concorrentes. A supremacia incondicional do livro foi afirmada por escritores como Huysmans, que, de maneira progressiva, submeteu a essa forma o conjunto de sua produção como crítico de arte[15]. Tal supremacia é nuançada pela referência ao grau de especialização feita por Redon, por exemplo, quando este escreve:

11.                                          A única força na qual se produzem artigos capazes de conferir algum impulso ao pensamento é as revistas, essa nova forma do livro, onde alguns espíritos distinguidos tratam por vezes de questões mais gerais. Mais essa espécie de publicação não cai sob os olhos de todos, apenas o especialista dela se preocupa; enquanto o amador menos refinado, para o qual a arte é um luxo e que dela se ocupa somente em seu tempo livre, só pode fruí-la quando o artigo da revista, recolhido e agrupado, tomou a forma mais durável e mais determinada do livro.[16]

Modos de seleção, campos e interesses

12.    Dando prosseguimento aos trabalhos de Julius Von Schlosser e de Johannes Dobai, o estudo da crítica de arte do século XIX deve agora enfrentar esse imenso corpus de textos[17]. Em face de tal tarefa, podemos com razão lamentar que, até recentemente, a publicação e o exame de textos de crítica dependeu sobretudo da sua facilidade de acesso, da qualidade literária que lhes era reconhecida e da glória literária de seus autores[18]. Mas, se tais princípios de escolha se revelam tendenciosos e restritivos em relação às necessidades e aos objetivos atuais, vale a pena nos interrogarmos sobre o sentido desse mecanismo de seleção: o fato é que, durante um período que chega talvez ao seu fim, a crítica de arte do passado dependeu, para sua conservação e sua transmissão, da condescendência, da crítica e da história literárias, mais do que da história da arte.

13.    Essa dupla dependência acadêmica deriva da natureza dual e da posição intermediária da crítica de arte. De um ponto de vista semiótico, ela se encontra, com efeito, ligada tanto ao sistema icônico quanto ao sistema verbal, os quais ela procura por em relação. Em termos sociológicos, podemos situá-la na interseção de vários campos, notadamente do campo artístico e do campo literário[19].

14.    O termo “campo” é empregado por Pierre Bourdieu para designar os espaços sociais relativamente autônomos, constituídos progressivamente para as diversas práticas culturais, em uma evolução na qual o século XIX representa uma etapa decisiva[20]. Ele exprime uma visão dinâmica, que permite compreender a interdependência essencial das diversas concepções e posições que coexistem no interior de tais espaços, bem como os conflitos que as opõem, em torno do princípio de hierarquização e da delimitação de suas fronteiras. Podemos considerar, assim, a “crítica de arte” do século XIX como um campo e procurar analisar sua estrutura e evolução - lembrando que a estrutura de um campo representa apenas o estado transitório de uma relação de forças sempre em movimento. Um de seus traços maiores parece ser, todavia, um grau de autonomia bastante fraco e uma sensível submissão à atração de outros campos que na crítica de arte se entrecruzam.

15.    A atração mais visível é aquela do campo literário, da qual a seleção do corpus acima evocada representa apenas um testemunho mais e menos indireto. Essa pregnância do modelo literário foi particularmente marcante na França, como constantemente se sublinhou[21]. Ela afetava igualmente o conjunto do campo artístico e do campo da imprensa. Assim, na virada do século, em seus Racontars de rapin, Gauguin denunciava o monopólio exercido pelos “homens de letras”, não somente sobre a posição de crítico, mas também sobre aquelas de diretor e conservador de museus[22]. Quanto à imprensa, Chantal Georgel notou que um vínculo essencial, que causava “o espanto e a admiração dos observadores estrangeiros”, unia o mundo da literatura e o do jornalismo francês no curso dos três primeiros quartos do século XIX, antes de se desfazer em seus últimos decênios[23].

16.    O pertencimento a um campo define, entre outras coisas, um certo número de interesses específicos - simbólicos, assim como materiais - que contribuem para orientar a ação. No contexto de uma análise de relações de Odilon Redon com a literatura e os escritores, tentei identificar aquilo que resultava, para os críticos de arte “decadentes” e simbolistas, de seu pertencimento ao campo literário[24]. No interior desse último, a crítica de arte constituía sobretudo um espaço de lançamento, de relação e de relegação. Tratava-se de uma posição marginal, até mesmo inferior, por causa de sua associação com a “literatura industrial” e da importância do referente extralinguístico; ainda assim, graças ao prestígio cultural das belas artes - especialmente da pintura -, e ao exemplo de escritores famosos, podia-se a ela recorrer a fim de se lançar como literato, bem como a fim de assegurar um rendimento.

17.    Seria necessário situar, de maneira análoga, a crítica de arte e os críticos de arte no interior do campo da imprensa (com a sua distinção entre jornalistas políticos e culturais, e, entre esses últimos, entre críticos de arte, críticos literários, críticos de teatro e críticos musicais) e no interior do campo artístico, tentando reconhecer os interesses associados a essas posições. O que poderia representar o fato de escrever crítica de arte para este ou aquele tipo de jornalista, para um inspetor de Belas Artes, para um professor universitário ou da Ecole des Beaux-Arts? De que maneiras as formações, as possibilidades e as expectativas correspondentes podiam contribuir para definir as suas concepções e práticas de crítica de arte? Enfim, como a influência do campo político, transmitida notadamente pela organização da imprensa, era repassada e interpretada no interior do campo da crítica de arte?

18.    Um interesse simbólico específico que podemos atribuir a esse campo é a “autoridade” reconhecida a um crítico. Esta parece depender, sobretudo, do pioneirismo e do sucesso de suas escolhas e julgamentos. É assim que Huysmans saúda, em 1885 - sob o disfarce de um pseudônimo - a sua própria obra de crítica:

19.                                          Ele igualmente escreveu os Salons reunidos em seu livro L’Art moderne, o primeiro volume que explica com seriedade os impressionistas e assinala a Degas a posição superior que ele virá a ocupar no futuro. O Sr. J.-K. Huysmans foi também o primeiro a fazer notar  Raffaelli, quando ninguém considerava esse pintor; foi o primeiro, ainda, a explicar e lançar Odilon Redon. Que outro crítico de arte atual é dotado desse faro agudo e dessa compreensão da arte, em suas mais diversas manifestações?[25]

20.    Oito anos mais tarde, Roger Marx fez notar que o valor dos escritos de Huysmans foi imediatamente reconhecido por sua crítica de arte, explicando que “o tempo desempenhou aqui o ofício de consagrador, certificando, em curto termo, como eram bem fundadas as opiniões emitidas e confirmando um a um os vereditos lançados”[26]. Nesse sentido, a descoberta do “gênio do futuro”, na qual Anita Brookner quis ver um traço maior da crítica francesa até Huysmans[27], pôde, efetivamente, constituir um objetivo comum e unificador para o conjunto de críticos. Mas um outro tópico, mais fundamental, constituía o próprio fundamento do direito de exercer o poder da crítica.

Poder, competências, interdependência

21.    Há, com efeito, entre o julgamento individual emitido por um crítico e a consagração coletiva que transmuta esse julgamento em “autoridade”, outros vínculos além do tempo, evocado por Roger Marx. Durante o século XIX, o poder detido pelo crítico de arte tornou-se uma evidência. Em 1829, Delacroix fala, com uma lucidez zombeteira, dos críticos aos artistas:

22.                                          [...] mesmo ferindo-vos, eles revelam ao mundo que vós viveis; vós seríeis, sem eles, insetos sufocados antes de chegar à luz: [...]. Prestai, portanto, um pouco de reconhecimento ao trabalho ao que eles se dão, para fazer de vós alguma coisa.[28]

23.    No artigo já citado, Mauclair evoca seu “poder discriminatório”[29], e, em 1890, avaliando retrospectivamente um século de crítica do Salon, Philibert Audreband escreveu em l’Art que “realmente, um resenhador de Salon renomado distribui, à maneira de um deus, a glória e o desdém, a reputação e o esquecimento, a vida e a morte”[30].

24.    Harrison e Cynthia White mostraram que, no último terço do século XIX, um novo sistema de consagração e difusão de obras de arte (que eles chamaram “sistema marchand-crítico”) se estabelece, com base em um mercado livre de valores simbólicos e econômicos[31]. Este sistema confere à critica de arte um poder ampliado, que atiça as lutas em torno de seu exercício legítimo. Cada grupo envolvido - em virtude das proveniências e dos pertencimentos já evocados - procura impor a definição da crítica de arte que corresponde a sua própria concepção e lhe atribuir uma posição dominante em seu campo. Seria necessário estudar sistematicamente os elementos de teoria da crítica de arte que participam neste conflito e que se encontram dispersos nos escritos do período.

25.    Utilizando as categorias propostas acima, podemos classificar os critérios de competência avançados nos debates segundo sua natureza prioritariamente linguística ou referencial, como correspondentes, em maior ou menor medida, a uma concepção literária, científica ou jornalística da crítica de arte. Estes critérios incluem, por exemplo, de um lado, a capacidade de escrever - de bem escrever - enquanto tal, a de criar um equivalente verbal da obra visual, a de exprimir em palavras a intenção que lhe deu origem ou, ainda, a de explicar o seu tema com a ajuda de fontes literárias, bem como, por outro lado, a erudição do connaisseur, um conhecimento da atualidade artística e um acesso direto às declarações dos artistas. Uma posição radical é adotada pelos artistas, que buscam reafirmar sua antiga exclusividade em matéria de pertinência crítica[32]. É o caso de James McNeill Whistler que, em 1878, depois de ter intentado um processo por difamação a John Ruskin, publicou um panfleto no qual denunciava a crítica como uma instrumentalização da arte pela literatura, e, em última análise, como um mal inútil: “The cry, on their part, of 'Il faut vivre', I most certainly meet, in this case, with the appropriate answer, 'Je n'en vois pas la nécessité'”[33].

26.    Mas a função que confere à crítica de arte o seu poder, o de “revelar ao mundo” e o de “distribuir [...] a vida e a morte”, era indispensável e não podia ser exercida por aqueles mesmos que deveriam ser dela o objeto. Pierre Bourdieu falou, a esse propósito, de “produção do valor”, enfatizando o fato de que a produção das obras de arte modernas não é um feito do artista apenas, mas representa um processo coletivo, que exige a colaboração de todo o campo artístico[34]. É desse modo que, por exemplo, um caricaturista podia ridicularizar, como um auto-coroamento derrisório, a recusa de Courbet de sua exclusão na Exposição universal de 1855[35], e que Mallarmé, em 1876, podia repreender o júri do Salon por não ter sabido proclamar Manet “pontífice supremo por sua própria eleição, investido, por sua fé, da missão de curar as almas”[36]. O tabu da auto-consagração igualmente permitia ao crítico nova-iorquino Royal Cortissoz escrever que não se podia culpar o crítico de arte “por sorrir aos Whistlers desse mundo, com seus ipse dixits a respeito de quem é e de quem não é autorizado a abrir a boca a respeito de pintura”[37].

27.    Assim, em seus próprios antagonismos, críticos e artistas eram mutualmente dependentes e solidários. De maneira idêntica, a luta em torno dos critérios de competência, corolário da inexistência de qualquer autoridade absoluta, unia o conjunto dos protagonistas e testemunhava uma relativa autonomia. Os limites dessa autonomia se evidenciavam, entretanto, na virtual inexistência de uma posição radical que afirmasse a auto-suficiência da crítica de arte. Esta posição é encontrada, excepcionalmente, em Oscar Wilde, que, em 1891, publica, como uma resposta implícita a Whistler, um ensaio intitulado O Crítico como artista, no qual reivindica, para o crítico “a mesma relação em face à obra de arte que a do artista em face ao mundo visível da forma e da cor, ou do mundo invisível da paixão e do pensamento”[38].

28.    Em 1903, Camille Mauclair adianta, por sua vez, mas de maneira mais débil, que “a verdadeira e bela crítica [é] uma criação” e poderia se tornar uma arte[39]. Mais do que uma provocação ofensiva, esse seu pleito é uma defesa nostálgica do modelo literário (a crítica “deveria ser um objeto de orgulho para os escritores, estes deveriam se orgulhar de uma bela crítica tanto quanto de um belo poema”) contra a preponderância dos jornalistas profissionais, qualificados pejorativamente como “articulistas”, “ocupantes de rubrica” e “folhetinistas patenteados”[40]. Nesse momento, o jornalismo começa, com efeito, a ser percebido e organizado como uma profissão; simultaneamente, a história da arte universitária define seu território e a defesa purista da especificidade das artes relega à periferia, tanto em literatura como em pintura, qualquer prática intersemiótica e referencial.

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[1] Originalmente publicado como GAMBONI, Dario. Propositions pour l'étude de la critique d'art du XIXe siècle. Romantisme, 1991, v. 21, n. 71, p. 9-17 (nota do tradutor).

[2] Esse artigo é baseado em uma comunicação apresentada oralmente no 78. congresso anual do College Art Association (Nova Iorque, 14-17 fev. 1990), na seção “Art Criticism in Nineteenth Century France”, sob convite de Michael Orwicz, a quem eu aqui agradeço.

[3] JUNOD, P.. Critique d'art. In: Petit Larousse de la peinture, vol. 1. Paris: Larousse p. 405-410.

[4] “Auch der Begriff der Quellenkunde selbst bedarf einer Einschränkung; gemeint sind hier die sekundären, mittelbaren, schriftlichen Quellen, vorwiegend also im Sinne der historischen Gesamtdisziplin die literarischen Zeugnisse, die sich im theoretischen Bewusstsein mit der Kunst auseinandersetzen, nach ihrer historischen, ästhetischen oder technischen Seite hin, während die sozusagen unpersönlichen Zeugnisse, die Inschriften, Urkunden und Inventare, anderen Disziplinen zufallen und hier nur einen Anhang bilden können”. SCHLOSSER, J. Von. Die Kunstliteratur. Ein Handbuch zur Quellenkunde der neueren Kunstgeschichte. Viena: Schroll, 1924, p. 1. (Livre tradução: “O próprio conceito de ciência das fontes necessita de uma delimitação; se entendem aqui as fontes escritas, secundárias, indiretas, sobretudo, no sentido histórico, os testemunhos literários que se referem em sentido teorético à arte, sob seus aspectos histórico, estético e técnico, enquanto que os, por assim dizer, testemunhos impessoais - inscrições, documentos e inventários -, dizem respeito a outras disciplinas e podem aqui ser apenas matéria para um apêndice”).

[5] BOUILLON, J.-P.. Mise au point théorique et méthologique. Revue d'histoire littéraire de la France, nov.-dez. 1980, p.880-899 (p. 897).

[6] Sobre a implicação dos historiadores de arte no estudo da crítica de arte, ver GAMBONI, D.. Remarques sur la critique d'art, l'histoire de l'art et le champ artistique à propos d'Odilon Redon. Revue suisse d'art et d'archéologie, vol. 39, 1982, p. 104-108.

[7] LEPDOR, C.. Ekphrasis 1890. Fonctions et formes de la description dans le commentaire d'art (mémoire de licence, Université de Lausanne, jun. 1989).

[8] ver DROST, Wolfgang. Kriterien der Kunstkritik Baudelaires. Versuch einer Analyse. In: NOYER-WEIDNER, Alfred (ed.). Baudelaire (Wege der Forschung, vol. 283). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976, p. 410-442 (p. 410-412).

[9] Durante a seção “Art Criticism in Nineteenth Century France” (ver nota 2), Susan L. Siegfried descreveu a primeira etapa desse processo, com a renúncia do anonimato e a aparição do folhetim cultural na imprensa pós-revolucionária (“The Politics of Retrenchement in the Postrevolutionary Press”).

[10] MARX, R.. J.-K. Huysmans. Paris: Kleinmann, 1893, p. 9.

[11] MAUCLAIR, C.. La mission de la critique nouvelle. La Quinzaine, 1 set. 1903, p. 1-25 (p. 15 e p. 13).

[12] Assim é que, ao passar em revista as publicações que tratavam das artes do desenho, oferecidas ao público não especializado, Odilon Redon deplora as limitações inerentes às resenhas de exposição, afirmando que “essa espécie de escritos, cuja base está na atualidade, não permite que aqueles que a publicam se afastem de um dado particular, cujo fim não seja o da instrução” (texto datado de 14 de maio [1878], em REDON , O.. A soi-même. Journal (1867- 1915). Notes sur la vie, l'art et les artistes. Paris: Corti, 1961, p. 66).

[13] Evocando “o crítico” em geral, Mauclair escreve, em 1903 : “Ele tem relações com os marchands de quadros e negocia indiretamente as compras e as vendas. Ele disputa os cargos oficiais, a inspetoria de Belas Artes, as decorações, a participação nas Comissões de Estado” (op. cit., nota 11, p. 5). A respeito da diversidade de papéis desempenhados pelos críticos de arte e sua importância em suas relações com os artistas, ver GAMBONI, D.. La Plume et le pinceau. Odilon Redon et la littérature. Paris: Minuit, 1989, p. 79-84.

[14] WARD, M.. Representing and Reproducing Critical Authority in the 1880's, comunicação apresentada na seção “Art Criticism in Nineteenth Century France” (ver nota 2); as fontes utilizadas são, para 1859, a bibliografia estabelecida por M. Ward com Christopher Parsons (A Bibliography of Salon Criticism in Second Empire Paris. Cambridge: Cambridge University Press, 1986) e, para 1893, o Anuário da imprensa francesa, publicado a partir de 1891. A partir dessa fontes, se constata que os críticos de arte que publicavam somente obras sobre as belas artes representavam 6,5% do total em 1859, contra 15% em 1893; e que a porção daqueles cujas publicações concerniam igualmente a literatura se elevou à 42%, em 1893.

[15] ver La Plume et le pinceau (op. cit., nota 13), p. 106-107.

[16] Ver nota 12. Fazendo notar que “a atualidade é hoje o invariável pretexto da crítica”, Mauclair aconselha ao “crítico inteligente” a “considerar os artigos como fragmentos de um livro futuro”, a fim de poder se limitar, no fim do ano, “de desembaraçá-los dos parágrafos relativos à atualidade que lhe serviu de pretexto” (op. cit, nota 12, p. 23).

[17] Ver a nota 4 e DOBAI, J.. Die Kunstliteratur des Klassizismus und der Romantik in England. Berna: Benteli, 1974-1977 ; para o século XIX francês, ver a bibliografia da crítica do Salon sob o Segundo Império (note 14), cujo desdobramento, consagrado à Monarquia de Julho e à Segunda República, foi anunciada por Neil McWilliam, assim como o projeto conduzido conjuntamente pelas Universidades de Clermont e de Montréal (ver La Critique d'art en France 1850-1900, atas do colóquio de Clermont-Ferrand, 25, 26 e 27 mai. 1987, reunidas e apresentadas por J.-P. Bouillon, Université de Saint-Etienne, CIEREC, Travaux LXIII, 1989, p. 11-12).

[18] Em 1980, J.-P. Bouillon assim denunciava “a seleção a priori de textos em função de um julgamento qualitativo implícito a partir dos 'grandes nomes' -, bem como da facilidade de acesso dos documentos” e reivindicava um “trabalho de inventário e repertoriamento de textos” longamente negligenciados (op., cit., nota 4, p. 889 e p. 893) ; na introdução de sua bibliografia, С. Parsons e M. Ward escreveram, no mesmo sentido: “By expanding out from the limited hierarchy of writers that has resulted from this emphasis upon literary style and personal connexions with artists and movements, it may be possible to arrive at a fuller, more informed picture of the values, composition and function of midnineteenth-century criticism” (op. cit., nota 14, p. ix).

[19] Ver JURT, Joseph. Huysmans entre le champ littéraire et le champ artistique. In: Huysmans: une esthétique de la décadence, atas do colóquio de Bâle, Mulhouse e Colmar de 5, 6 e 7 nov. 1984, organizado por André Guyaux, Christian Heck e Robert Kopp, Genève-Paris, Slatkine, 1987, p. 115-126.

[20] Ver notadamente BOURDIEU , P.. Le marché des biens symboliques. L'Année sociologique, vol. 22, 1971, p. 49-126; La production de la croyance: contribution à une économie des biens symboliques. Actes de la recherche en sciences sociales, n° 13, fev. 1977, p. 3-44; e Questions de sociologie. Paris: Minuit, 1980, p. 113-120: Quelques propriétés des champs.

[21] Harrison e Cynthia White viram nisso o efeito conjugado da doutrina acadêmica e de um modo de educação: “As remains true to the present day, an educated Frenchman felt himself qualified to write on any subject - and most particularly on the arts. The conception of art as a learned profession, fostered by the Academy, had placed it within the range of topics upon which a learned man might discourse. ” (Canvases and Careers: Institutional Change in the French Painting World. New York-Londres-Sidney: Wilney & Sons, 1965, p. 10).

[22] GAUGUIN, Paul. Racontars de rapin. Paris: Falaize, 1950 (1a. ed. 1919, redação 1902), p. 15.

[23] GEORGEL, С.. Les Journalistes. Paris: Réunion des musées nationaux (Dossiers du Musée d'Orsay, 5), 1986, p. 8 e p. 20-21.

[24] Ver La Plume et le pinceau (op. cit., nota 13), p. 70 sg.

[25] MEUNIER, A.. J.-K. Huysmans. Paris: Vanier (Les hommes d'aujourd'hui), 1885, reimpresso em HUYSMANS, J.-K.. En marge. Paris: Lesage, 1927, p. 59.

[26] J.-K. Huysmans (op. cit., nota 10), p. 8.

[27] BROOKNER, A.. The Genius of the Future. Studies in French Art Criticism. Diderot - Stendhal - Baudelaire - Zola - the Brothers Goncourt - Huysmans. Londres: Phaidon, 1971.

[28] DELACROIX, Eugène. Des critiques en matière d'art. Revue de Paris, mai. 1829, t. 2, p. 68, reimpresso em DELACROIX, E.. Œuvres littéraires, vol. 1. Etudes esthétiques. Paris: Crès, 1923, p. 1-7 (p. 7).

[29] La mission de la critique nouvelle (op. cit., nota 11), p. 4.

[30] AUDREBAND , P.. Pages d'histoire contemporaine. Les Salonniers depuis cent ans . l'Art, 1890, tomo 49, p. 237-238, citado em Ekphrasis 1890 (op. cit., nota 7), p. 42.

[31] Ver nota 21; para maiores precisões sobre as etapas desse processo complexo, consultar VAISSE, Pierre. Salons, expositions et sociétés d'artistes en France 1871-1914. In: HASKELL, Francis (ed.). Atti del XXIV Congresso Inter nationale di Storia dell'Arte, vol. 7: Saloni, gallerie, musei e loro influenza sullo sviluppo dell'arte de i secoli XIX e XX. Bologne: Cooperative libraria universitaria éditrice, 1981, p. 141-151.

[32] Ver Critique d'art (op. cit, nota 3), p. 409. Podemos supor que é como crítico que Ferdinand Brunetière defende, em 1880, a mesma posição; ver Les Salons de Diderot. Revue des Deux Mondes, 1880, vol. 3, p. 457-469 (citado em EHRARD, Antoinette. L'“impossible” Salon de 1880”. In: La Critique d'art en France 1850-1900, op. cit., nota 17, p. 147-155, p. 154).

[33] WHISTLER, J. McNeill. Whistler vs. Ruskin. Art and Art Critics, reproduzido em The Gentle Art of Making Enemies. New York: Dover, 1980 (reimpressão da segunda edição de 1892), p. 25.

[34] Ver La production de la croyance (op. cit., nota 20) e BOURDIEU, P.. Lettre à Paolo Fossati à propos de la Storia dell'arte italiana. Actes de la recherche en sciences sociales, n° 31, jan. 1980, p. 90-92.

[35] BERTALL. “Ao fim de sua Exposição universal, Courbert concede a si próprio algumas recompensas bem merecidas, na presença de uma multidão seleta, composta de M. Bruyas e de seu cachorro”. Journal amusant, 12 jan. 1856, reproduzido em Courbet selon les caricatures et les images, documents réunis et publiés par Charles Léger, préface de Théodore Duret. Paris: Rosenberg, 1920, p. 35 [cf Imagem].

[36] “[...] a self -created sovereign pontiff, charged by his own faith with the cure of souls [...]” (The Impressionists and Edouard Manet. The Art Monthly Review, 30 set. 1876), tradução de VERDIER, Philippe. Stéphane Mallarmé: “Les impressionnistes et Edouard Manet” 1875-1876. Gazette des Beaux-Arts, nov. 1975, p. 147-156 (p. 148-149).

[37] “The art critic may be forgotten if he smiles at the Whistlers of this world, with their ipse dixits as to who shall and who shall not open his mouth about painting ” (CORTISSOZ, R.. Personalities in Art. New York, Londres: Scribner, 1925, p. 5 sg.).

[38] WILDE, O.. Intentions. Paris: Union générale d'éditions, 1986 (sem menção do autor da tradução), p. 139-140.

[39] La mission de la critique nouvelle (op. cit., nota 11), p. 11.

[40] Ibid., p.19, 15, 21.