RICARDO SEVERO E O DEBATE PRESERVACIONISTA NO BRASIL

Maria Lúcia Bressan Pinheiro (FAU/USP)

Resumo: Num evento dedicado à reflexão sobre os intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal, parece oportuno reavaliar a contribuição do erudito engenheiro e arqueólogo diletante Ricardo Severo (Lisboa, 1869 - São Paulo, 1940), editor da revista portuense de cultura Portugália, entre 1897 e 1907. Nestes anos, Severo mostrou-se bastante receptivo ao movimento de valorização das habitações tradicionais portuguesas conhecido por “Casa Portuguesa”, no qual estiveram envolvidos estudiosos de várias áreas, como o historiador Rocha Peixoto e o arquiteto Raul Lino.

Radicado definitivamente no Brasil desde 1907, Severo exerceu aqui importante papel no despertar de um interesse pela arquitetura brasileira dos primeiros séculos - condição primordial para a emergência das primeiras iniciativas preservacionistas entre nós, na década de 1920. De fato, em 1914, em meio a um grande surto de remodelações urbanas e arquitetônicas nas principais cidades do Brasil, Severo concluiu sua palestra “A Arte Tradicional no Brasil” exortando os “jovens arquitetos nacionais” a iniciar “uma nova era de Renascença Brasileira...”. Em 1917, o engenheiro ensaiou uma primeira abordagem histórico-tipológica da arquitetura brasileira, em que, a par de enfatizar sua filiação à arquitetura portuguesa, indicava características a serem aproveitadas na produção arquitetônica contemporânea. Estavam lançadas assim as bases para o movimento que logo ficaria conhecido como Neocolonial, e que se mostraria capaz de promover significativa mobilização simbólica, extravasando os estreitos círculos acadêmicos e alcançando grande popularidade em meios bastante diversificados. Embora o alcance e significado da tendência costumem ser menosprezados na historiografia da arquitetura brasileira, pesquisas recentes [1] permitem situá-lo entre os movimentos pioneiros de matizes nacionalistas que mais ampla difusão alcançou entre nós - e isso, tratando-se de uma proposta ancorada na arquitetura, que exige para sua concretização o comprometimento efetivo de recursos vultosos, não é pouca coisa.

Em São Paulo, as propostas de Ricardo Severo foram explicitamente elogiadas por Mário de Andrade já em suas primeiras crônicas da década de 1920. Mais tarde, na segunda metade da década de 1930 - ambiente favorável a iniciativas de preservação do patrimônio nacional, tanto no âmbito estadual como federal -, os escritos sobre arquitetura brasileira publicados pelo engenheiro português constituíram importante subsídio para as atividades desenvolvidas pelo escritor paulista a esse respeito.

No Rio de Janeiro, as ideias de Severo foram explicitamente encampadas pelo médico pernambucano e diletante das artes José Mariano Filho, patrocinador de pesquisas sobre arquitetura brasileira e concursos de projetos neocoloniais, em que teve destacada participação o arquiteto Lucio Costa.

Assim, o presente trabalho pretende explorar a repercussão das ideias de Ricardo Severo em Mário de Andrade e Lúcio Costa, intelectuais diretamente vinculados à criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN, o primeiro órgão federal brasileiro de preservação do patrimônio.

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[1] PINHEIRO, M.L.B. Neocolonial, Modernismo e Preservação do Patrimônio no Debate Cultural dos Anos 1920 no Brasil. São Paulo, EDUSP-FAPESP, 2011.