A FIANDEIRA E A LAVADEIRA: PINTURA DE GÊNERO E HISTÓRIA DO TRABALHO NA BELLE-ÉPOQUE PARAENSE, 1895-1905

Aldrin Moura de Figueiredo (Faculdade de História - Universidade Federal do Pará e CNPq)

Resumo: No final do século XIX, Belém do Pará viveu seu apogeu no mercado das artes plásticas. Com as primeiras mostras datando de 1888, até a constituição de galerias e ateliês preparados para exposições por volta de 1900, houve uma sensível mudança nos locais por onde circulava o mundo da pintura. Das escolas e residências particulares, a pintura cada vez mais ganhava espaço nas casas de comércio, agora com ambientes reservados aos concorridos vernissages. Com o limiar do século XX, a capital do Pará viu nascer a galeria de arte. Neste aspecto, a mostra de estréia do pintor paraense Carlos Custódio de Azevedo, em 1901, num prédio à rua Conselheiro João Alfredo, ficaria célebre. A mostra teve uma recepção ambígua: se por um lado havia um grande interesse em se conhecer os vinte quadros expostos e as influências estéticas que poderiam expressar, pois seu autor estivera fora de Belém desde 1891, estudando como pensionista do Estado do Pará em Paris com Jules Lefebvre, Lucien Doucet, Marcel Baschet, F. Schowmer e Paul Sain; em contrapartida, alguns críticos mais apurados pareciam estar à cata do menor deslize com as linhas e as cores locais.

Nesse aspecto, o nome de Alfredo Sousa, literato e crítico de arte começava a ganhar realce na imprensa local, com suas análises mais detidas sobre os temas, técnicas e fases dos artistas que passavam pela cidade - nacionais ou estrangeiros. Além do mais, os próprios colegas de ofício também ficavam atentos às exposições, nas quais eram mostradas as melhores obras, incluindo aquelas premiadas nos eventos de maior relevo no campo da arte acadêmica. Nessa mostra de 1901, de Carlos Azevedo, por exemplo, já era esperada a tela A fiandeira, adquirida pelo governo do Pará e com a qual o pintor havia participado do Salão de Paris, em 1899. A exposição de Carlos Azevedo foi encerrada em apenas quatro dias, em 19 de maio, com todos os trabalhos vendidos e “comentários elogiosos” da parte do público. Um assunto, no entanto, tomaria conta dos jornais da época a partir de 1901, sobre a obra de Carlos de Azevedo - o tema da figura feminina e o tema do trabalho doméstico se tornariam recorrente em seus quadros. Vários críticos, incluindo outros colegas de ofício, como Theodoro Braga, se ocuparam daquilo que ficaria conhecido como pintura de gênero, estabelecendo relações da obra do pintor paraense com a tradição que se desenvolvera no florescimento do barroco na Europa Católica nos Países Baixos do século XVII, sobretudo na Holanda.

A questão é que Carlos de Azevedo conhecera as obras dos mestres da pintura holandesa e flamenga, incorporando o estilo sóbrio, realista, comprometido com a descrição de cenas rotineiras, temas da vida diária como homens dedicados ao seu ofício e mulheres cuidando dos afazeres domésticos. Porém, a partir de seu retorno à Amazônia em 1901, não somente o estilo, mas a técnica e a escala cromática adotada sofrem profunda transformação no traço do pintor. Assim como na Holanda do século XVII, o tema da pintura de gênero e a própria leitura pictórica do trabalho doméstico podem se interpretados como uma resposta nacionalista da cultura neerlandesa no contexto de afirmação da República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos, durante o chamado Século de Ouro. Pintores como Rembrandt, Willem Kalf, Adriaen van Ostade, Gerard Terborch, Albert Cuyp, Jakob van Ruisdael, Jan Steen, Pieter de Hooch, Vermeer, Willem van de Velde e Meindert Hobbema, que não eram conhecidos no início do século XX senão por especialistas entraram no campo de predileção de Carlos Custódio de Azevedo.

Apesar disto, mais do que a riqueza em detalhes, precisão e apuro técnico, numa tentativa de representar tudo aquilo que o olho humano é capaz de captar, o pintor paraense buscou nessa tradição um ponto de ruptura com a descrição europeia da figura feminina, do universo do trabalho, na incorporação de uma paisagem equatorial e com a própria técnica que passava agora pelo namoro com a factura popular. Entre 1898 e 1905, se operou uma profunda transformação na narrativa visual da pintura de Carlos Custódio de Azevedo que, no meu entender, é reveladora dos movimentos de construção de uma nova identidade nacional que iria se projetar nas décadas seguintes com o modernismo.