A Missão Austríaca no Brasil e as aquarelas do pintor Thomas Ender no século XIX

Monike Garcia Ribeiro [1]

RIBEIRO, Monike Garcia. A Missão Austríaca no Brasil e as aquarelas do pintor Thomas Ender no século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/thomas_ender.htm>.

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As aquarelas de Thomas Ender (17951875) estão entre essas fontes históricas que são excepcionalmente significativas para a compreensão dos modos de percepção através dos quais os pintores viajantes europeus construíam uma imagem do Rio de Janeiro do século XIX. Pretendemos examinar a problemática histórica e cultural que acompanha a presença deste pintor que esteve no Rio de Janeiro neste período efervescente de intercâmbios culturais, enquanto componente da Missão Austríaca que aqui aportou em julho do ano de 1817. Thomas Ender engajou-se nesta Missão como pintor de paisagens, e esteve no Brasil entre 1817 e junho de 1818.

O Brasil do século XIX foi uma época efervescente em termos de circularidade cultural. O Novo Mundo estava na moda entre os círculos acadêmicos e artísticos da Europa, entre os círculos de pesquisadores de diversos níveis e vinculados a distintos campos de saber, ou simplesmente entre os aventureiros de modo geral. O Brasil era então uma aventura: os grandes espaços verdes, aparentemente ilimitados, a natureza exuberante e os povos exóticos que habitavam as florestas, a sociedade colonial plena de diversidades e misturas que habitava as cidades... tudo era motivo de curiosidade para os cientistas e artistas de vários países europeus. Em vista disto, o Brasil do século XIX foi percorrido em toda a sua extensão por viajantes de todos os tipos, e estes deixaram para os futuros historiadores fontes históricas riquíssimas para a compreensão daquela época, seja sob a forma de crônicas, seja sob a forma de ensaios científicos, ou mesmo sob a forma de desenhos e aquarelas.

Salientamos quanto à possibilidade de utilizar precisamente a produção iconográfica de Thomas Ender como uma documentação histórica preciosa para a investigação de problemas relacionados à ‘alteridade’ cultural, ao confronto de um ‘olhar europeu’ habituado a pequenos espaços com um mundo colonial de grandes espaços abertos, à interação entre a diversificada sociedade colonial e as expectativas dos viajantes europeus que aqui estiveram no período enfocado, ou, ainda, à inserção destas várias questões dentro do quadro mais amplo das políticas culturais desenvolvidas pela Corte Portuguesa no período.

Para ingressar a expedição científica que viria ao Rio de Janeiro, a Missão enviada pelos governos da Áustria e da Baviera contou também com outras personalidades que convém registrar, pois elas traduzem precisamente a efervescência cultural que caracterizava as missões deste tipo no Brasil do século XIX. Vale a pena indicar a presença do Professor Johhann Christof Mikan, botânico e entomólogo; do Dr. Johann Emanuel Pohl, Médico, mineralogista e botânico; de Johann Buchberger, pintor de plantas; de Johann Natterer, zoólogo; de Rochus Schüch, mineralogista e bibliotecário; sem esquecer ainda a presença do jardineiro botânico Heinrich Schott. A estes se juntaram ainda  –  a convite do Imperador da Áustria e da Baviera – dois viajantes e pesquisadores que se celebrizariam pelos seus depoimentos e escritos sobre o Brasil da época: o  zoólogo Johann Baptista Spix e o botânico Karl Friedrich Philip Von Martius. Como se pode observar, Thomas Ender era o único componente sem formação nas chamadas “Ciências Duras”, com uma inserção total no campo das Belas Artes.

O grupo de artistas e pesquisadores trazido pela princesa Leopoldina de Habsburgo –que em princípios do século XIX chegou ao Brasil para se casar com o príncipe D. Pedro de Alcântara –  ficou conhecido como Missão Austríaca. O grupo contava com uma diversidade privilegiada de pintores e cientistas. Entre eles, fora contratado um artista de 23 anos  para registrar o andamento da Missão Austríaca que acompanharia a princesa na sua instalação no novo reino. Thomas Ender produziu mais ou menos 766 trabalhos inspirados no Brasil (São Paulo e, principalmente, Rio de Janeiro). A maior parte destes trabalhos foi elaborada com a utilização da técnica de aquarela (sobre papel). Deve-se notar ainda que, em decorrência de problemas de saúde, Thomas Ender não pôde completar uma viagem que iniciara juntamente com Spix e Von Martius pelo interior de São Paulo. É por essa razão, também, que a maioria das suas aquarelas tematizam principalmente o Rio de Janeiro e a sua gente.

Primeiramente, o que motivara Thomas Ender a engajar-se na experiência da Missão Austríaca fora o desejo de conhecer novos mundos, de desbravar novas realidades a serem decifradas e retratadas pictoricamente, de viajar por um mundo diversificado que ansiava por conhecer. É o próprio pintor quem retrata as motivações iniciais que o levaram à sua viagem aos trópicos:

A expedição deveria incluir também um pintor. Sempre tive grande vontade de viajar, e uma viagem assim me parecia ser a maior dádiva. Candidatei-me e tive realmente grande sorte... [2].

Pode-se dizer, assim, que aquela experiência estaria fadada a trazer a Ender um novo mundo de imagens e possibilidades pictóricas, uma vez que a natureza Austríaca que ele conhecia era seguramente bem distinta da realidade natural do Rio de Janeiro. Era precisamente a diferença - a alteridade, para utilizar um termo mais em voga nos dias de hoje - o que atraía irresistivelmente os viajantes europeus ao encontro de uma realidade topográfica ao mesmo tempo misteriosa, sedutora e exuberante. A riqueza e beleza tropical da América, tão decantada e divulgada na Europa, passava então a atrair os europeus in loco, pois todos queriam conhecer de perto esta geografia natural que tanto instigava o seu imaginário. Por outro lado, a freqüência da preferência pela representação pictórica da paisagem brasileira nos países europeu, deveu-se em boa parte à percepção estética e científica proveniente do modelo humboltiano. O Atlas pitoresco da viagem[3] de Humbolt[4] e Bonpland, surgido no período de 1814 à 1819, e o Atlas de viagem ao Brasil, de Spix e Martius de 1817 à 1820, determinam uma visualidade fortemente ancorada no saber científico.

De modo geral, Thomas Ender teria a seu cargo a tarefa de criar representações para o que visse e sentisse. Sua tarefa implicaria em documentar a paisagem carioca e a sua população através do seu filtro emocional, criativo, cultural e intelectual, fornecendo dados que mostrassem para a Áustria (e sobretudo para o Imperador Austríaco Francisco I) que tipo de país era este que se encontrava na América, e que se tornaria o novo lar da sua filha. Não esqueçamos que, em 1817, uma das tarefas que cabiam às artes plásticas, entre outras, era a de captar e reter momentos inesquecíveis – função esta que só a partir de 1839 poderia ser assumida principalmente pela fotografia. Desta forma, esperava-se sobretudo de Ender uma função de documentarista através da imagem.

É importante salientar que no ano anterior já havia aportado no Brasil um grupo de franceses, dentro do qual se encontravam um arquiteto, um escultor e dois pintores que logo se tornariam célebres: Nicolas Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret. Eles foram os principais participantes da experiência que ficou conhecida como Missão Artística Francesa. Estes homens de procedências diversas e cada qual portador de sua vivência individual – embora em algum ponto irmanados pelo imaginário europeu que àquela época se entretecia na Europa em torno das imagens do Novo Mundo  –  também entravam pela primeira vez em contato com a sociedade colonial brasileira. Entre estranhamentos e fascínios diante do novo mundo que tinham diante de si, todos eles, austríacos e franceses, produziram representações peculiares sobre a cidade e a sociedade com a qual passaram a conviver. Este deslocamento de um campo de cultura para outro, vale sempre ressaltar, implica quase sempre em um problema social e cultural bastante interessante.

Os homens da Europa, mesmo os eruditos, não conheciam o mundo dos trópicos senão por “ouvir dizer” ou através de leituras várias. Acostumados com um mundo de espaços físicos pequenos, estes homens que aqui chegavam eram subitamente postos em contato com um mundo de imensos espaços, muitas vezes ainda inexplorados  esse “Brasil, pouco povoado e conhecido”[5] ao qual se referem em algumas oportunidades Spix e Von Martius no livro Viagem pelo Brasil. São exatamente estes espaços imensos (“a baía do Rio de Janeiro, uma das mais belas e vastas...”[6]), que serão retratados avidamente por Thomas Ender, conforme poderemos comprovar  mais adiante. Repentinamente os viajantes europeus que aqui chegavam se viam em meio a uma cidade de beleza natural e exuberante, e passavam a testemunhar as modificações que o Rio de Janeiro estava passando para tornar-se uma cidade mundial (ponto de maior referência geográfica no continente Americano), tomando-se por base o padrão Europeu.

Para além disto, havia uma série de tipos sociais, de novas profissões, de novos hábitos, inscritos e enredados em uma vida social complexa e diversificada com a qual teriam de se familiarizar a partir dali os viajantes europeus. Tal idéia se mostra clara, nos escritos destes dois componentes da Missão Austríaca, Spix e Von Martius, dois grandes companheiros e compartilhadores de Ender, no sentimento de estranheza acima comentado:

Logo lembra ao viajante que ele sê acha numa parte estranha do mundo, é sobretudo a turba variegada de negros e mulatos, a classe operária com que ele topa por toda a parte, assim que põe o pé em terra. Este aspecto foi-nos mais de espanto do que de agrado.[7]

Tal como vários de seus contemporâneos, Spix e Von Martius já traziam da Europa, antes de chegar ao Brasil, um repertório de imagens mentais dos países do Novo Mundo que, em um primeiro momento, correspondiam com as expectativas já cultivadas anteriormente (as primeiras páginas de seus relatos nos comprovam isto amplamente).

Mas é também visível que – após a emoção da chegada, a acomodação, e o contato real – esta impressão parece começar a se modificar significativamente. As expectativas de Thomas Ender, que bem expressamos acima, combinam-se com as destes dois outros viajantes quando nos falam da suas primeiras impressões ao se defrontarem com o país belo e selvagem:

Mais do que qualquer outra porção da América, o Brasil, o seu mais belo e mais rico país, é, entretanto pouco povoado e conhecido, embora seja ele o coração desse novo continente.[8]

Mais à frente, no mesmo relato, Spix e Von Martius afirmam que, apesar de terem trazido uma expectativa que os acompanhara antes de aportarem no Brasil, ao pisarem em solo brasileiro esta primeira impressão esvaiu-se.

Quem chega convencido, de encontrar uma parte do mundo, descoberta só desde três séculos, com a natureza inteiramente rude, forte e não vencida, poder-se-ia julgar, ao menos na Capital do Brasil, tanto fez a influência da cultura da velha e educada Europa para remover deste ponto da colônia os característicos da selvajaria americana, e dar-lhe o cunho da mais alta civilização. [9]

É assim que Spix e Martius declaram que já possuíam uma expectativa anterior, expressa sobretudo nas palavras que assinalamos em itálico logo ao início da citação (“Quem chega convencido”). O mundo que eles esperam encontrar é de uma “natureza inteiramente rude, forte e não vencida”. Enfim, uma “selvajaria americana”. Ender, participante do mesmo sistema de expectativas socioculturais de seus companheiros de viagem, possivelmente tenderia a apresentar sentimentos análogos.

O interesse europeu pelo conhecimento científico da natureza tropical brasileira coincide com a motivação maior presente na viagem. Além de Spix e Von Martius, este mesmo conjunto de expectativas atraiu também cientistas como Saint-Hilaire e o Barão Langsdorff. É a este tipo de expectativas mais ligadas à pesquisa e ao saber científico que veio se juntar também um outro tipo de motivações, agora presentes em artistas como Thomas Ender. A estes artistas, que não possuíam propriamente nenhum tipo de interesse científico, interessavam particularmente as possibilidades artísticas do Novo Mundo.

Outro aspecto importante a se considerar quando falamos nas missões culturais que aqui estiveram no século XIX refere-se ao contexto político. A chegada da Expedição Científica da Áustria em 1817 ao Rio de Janeiro, trazendo Thomas Ender como integrante, e de outras missões aproximadamente na mesma época (Missão Diplomática Inglesa em 1820, e Missão Francesa em 1816) pode ser considerada, em certa medida, como uma decorrência das iniciativas tomadas por D. João VI no campo cultural. Assim, desde há muito os historiadores tem ressaltado que “a presença da Corte encorajou a vinda ao Brasil de várias Missões exploradoras, científicas e artísticas européias. Sobressaem as do mineralogista alemão Von Eschwege e dos bávaros Spix e Martius, as viagens do naturalista Francês Auguste de Saint-Hilaire e,  no campo das artes, a missão artística francesa [...]”[10].

Não se trata obviamente de uma coincidência o fato de que foi apenas por ocasião do casamento de Dom Pedro de Bragança com a Arquiduquesa Austríaca que cientistas e artistas austríacos como Ender, Spix começaram a acorrer ao Brasil. O fato é que, se esta Missão aportou no Brasil em 1817, foi somente graças à permissão e ao incentivo muito direto de D. João VI e de sua nova política cultural para o Vice-Reino. Vale lembrar que. antes da transferência da família real para o Rio de Janeiro, “a metrópole havia cuidado para que as outras nações européias ficassem a distância, desconhecessem as riquezas do Brasil[11].

As aquarelas de Ender escolhidas por nós para serem examinadas neste esforço de síntese, correspondem a algumas das mais significativas entre as que apresentam uma  ‘temática urbana’. No entanto, é bom frisar que estaremos denominando “paisagens urbanas” também aquelas que se constituem de cenas externas, ao ar livre, interligadas pela representação de elementos que falam da cidade Carioca, das construções arquitetônicas, das ruas, do comércio, e de seus habitantes. As paisagens urbanas de Thomas Ender, onde ele apresenta a cidade Carioca e organiza artisticamente uma riqueza de diversificados tipos humanos e a disposição destes na obra, suscita-nos enorme interesse. De algum modo, pode-se dizer que não fomos nós, brasileiros, os criadores pictóricos da nossa imagem do começo do século XIX, e sim os Austríacos, Franceses, Alemães, Britânicos ... uma vez que foram estes os que se entregaram à tarefa de pintar e retratar o Rio de Janeiro e a sua gente.

Sobretudo na década de 1970, com o trabalho de pesquisa do historiador Gilberto Ferrez, os documentos iconográficos de Ender passaram a ser amplamente examinados, divulgados e reconhecidos; contando até, com grandes exposições realizadas em Museus Nacionais, revelando para os brasileiros o Rio de Janeiro do século XIX, sob a perspectiva agora, de um Austríaco. Para Ferrez, como para nós, a questão que se coloca diretamente para Thomas Ender é a de representar e mostrar como se processou a implantação de uma cidade de grandes dimensões em meio a uma natureza tão exuberante.

O processo de urbanização que a Europa já atravessava há bastante tempo, no Rio de Janeiro ainda estava se apresentando nas suas etapas iniciais. Tratava-se na verdade de um processo recente, impulsionado pela vinda da Corte Portuguesa, inscrevendo-se aqui a chegada em 1817 de Thomas Ender ao Brasil. Este processo então nascente era visto pela cultura Européia como um sinal de civilização[12]. Isto encontra clara ressonância nos escritos de Spix e Martius, pois, para estes, diante da “passagem da colônia dependente para reino autônomo [...] reconhecerão os brasileiros quão depressa foram levados aos diversos graus de civilização no espaço de tempo de doze anos, que D. João VI permaneceu no país[13].

Na obra Aspecto da rua principal do Rio de Janeiro [Figura 1][14], como aliás em todo o conjunto iconográfico escolhido, encontramos a retratação do centro urbanístico e do comércio do Rio de Janeiro – mas ainda mais particularmente percebe-se a retratação de um tipo de comércio muito crescente na cidade carioca: aquele que era feito por ambulantes (negros de ganho)[15].

A presença do comércio em pleno centro Carioca, nas obras de Thomas Ender, coincide com a demonstração do seu interesse em documentar vividamente também esta parte do centro econômico-comercial que era exercido com a significativa contribuição do homem negro[16], notando-se particularmente a sua atuação como ambulante (vendendo todo tipo de mercadoria), o que marca um forte diferencial em relação à Europa.

Nas aquarelas de Thomas Ender intituladas Chafariz do terreiro do Paço [Figura 2] e Chafariz do Largo do Moura [Figura 3] verificamos no próprio título o seu interesse pela temática do chafariz. Ender em ambas as obras retrata mastros de embarcações, e mais especificamente na obra Chafariz do Largo do Moura podemos identificar, no segundo plano do campo plástico, proas de navios. Mas qual seria o significado deste interesse de Ender em registrar navios e mastros de embarcações nas suas aquarelas?

Constatamos que o mar representado na obra Chafariz do Largo do Moura ocupa somente o terceiro plano na obra. Porém, este mar não possui o papel de encantamento idílico, mas sim lembra muito mais especificamente a sua função de porto (contendo embarcações) e de comércio fundamental para o desenvolvimento da civilização. Ender pinta, e assim faz um registro de lembrança, em diferentes ângulos, retratando o que existia concretamente na cidade até o século XIX, que é a atual Praça XV de Novembro (atual área histórica do Rio de Janeiro) e suas imediações.

Certamente o pintor Austríaco voltou a sua atenção para este ponto por constituir-se ele num centro de crescente valor econômico e político naquela época (1817), não só para o Rio de Janeiro, como para todo o Brasil. Aquele foi o momento em que o Rio de Janeiro assumiu o papel de porto exportador de ouro trazido do interior, e a este fato acrescentava-se o seu valor estratégico decorrente da fundação da colônia do Sacramento. Os dois fatores acima referidos são igualmente significativos para transformarem o Rio de Janeiro a partir do século XVIII, e são particularmente marcantes na transformação da praça XV de Novembro e de seus arredores, em principal entreposto do litoral sul no período na qual Thomas Ender esteve no país.

Segundo alguns historiadores, estas seriam as razões que impeliam a elevação desta cidade à capital da Colônia Brasileira. Outra razão para Ender pintar o chafariz luxuoso que decora o cais do Largo do Palácio que aparece na aquarela - o Chafariz do terreiro do Paço como também pintar um outro chafariz que aparece na obra intitulada Chafariz do Largo do Moura - reside para nós no fato de que estes se  destinavam ao abastecimento de água do bairro. Mas também a retratação de Ender do Chafariz do terreiro do Paço devia-se por ser um local que servia para o abastecimento dos navios ancorados na Baía da Guanabara .

Excepcionalmente, em uma minoria  de seus desenhos aquarelados percebe-se que a atenção de Thomas Ender dirigiu-se para São Cristovão, mais especificamente para o palácio da Quinta da Boa Vista, tal como observamos na aquarela Palácio de São Cristovão [Figura 4]. Essa rara escolha demonstra também, a sua preocupação em satisfazer a curiosidade dos Austríacos e, talvez, em mostrar que a Arquiduquesa austríaca passaria a morar em um país relativamente civilizado, mesmo que fora da Europa. Por outro lado, Palácio de São Cristovão é a única obra de Ender que não se configura em numa paisagem totalmente urbana. No primeiro plano, segundo Ferrez[17], aparece retratado o Príncipe Regente D. Pedro e a Princesa Leopoldina passeando numa carroça, em direção ao Palácio real, este pintado entre o segundo e terceiro plano do campo plástico.

Além disto, transparece nesta obra de Ender o seu interesse pela retratação daquilo que poderíamos chamar de “encontros étnicos” em um mundo moderno em que o negro e o branco encontram-se e passam a ocupar o mesmo espaço físico na cidade Carioca, ainda que um ocupe o lugar do dominante e ao outro seja dado meramente acatar as suas ordens. Este aspecto, na verdade, é encontrado na maioria das obras escolhidas por nós, e não apenas na obra Palácio de São Cristovão. Nesta obra, o encontro étnico realiza-se do seguinte modo: aparecem retratados no mesmo plano da obra membros da família real que são escoltados por dois oficiais, e dois negros que se ajoelham durante a passagem da carruagem que conduz D. Pedro I e a Princesa Leopoldina. É significativo notar que também nesta obra identificamos a já mencionada coexistência de variados tipos humanos, de classes sociais distintas: branco abastado, branco desprovido, e o negro (elemento freqüente).

Na obra Val-longa [Figura 5], tomada neste aspecto como um entre os vários exemplos que constituem o nosso corpus documental, é também através da indumentária que podemos descobrir qual a etnia e qual a ocupação dos seres humanos retratados por Ender. Nesta obra identificamos a existência de um homem branco, um passante, localizado à direita no segundo plano, trajando cartola azul, fraque azul, botas marrons e bengala, co-habitando com homens negros retratados no mesmo plano dentro desta representação do cotidiano do século XIX. Thomas Ender os retrata na obra Val-longa na mesma proporção, no mesmo plano e sem destaques. Estes personagens são obviamente de camadas sociais opostas. O homem negro é pintado por Ender desprovido de recursos monetários, andando descalço, sem cartola e sem fraque, e o que porta na cabeça são pedaços de pano em forma de turbante ou barril. A roupa que lhe cabe é mais um farrapo, que portanto diferencia e acentua para nós espectadores a sua situação social no começo do século XIX.

Ao retratar os tipos humanos, podemos dizer que as fontes de Ender – ao disporem estes tipos humanos de maneira a ocuparem o mesmo campo plástico de forma igualitária e, a grosso modo, sem diferenciações de tamanho ou de importância – revelam que para o seu autor os vários tipos étnicos e sociais despertam igual interesse. Se aquela sociedade do começo do século XIX era segregadora, esta imagem não se espelha (esteticamente falando) de forma tão clara nas obras de Ender. Portanto, é através do ofício que desempenham na cena, bem como dos objetos e roupas usados, que podemos identificar a que grupo social pertencem os tipos humanos pintados por Ender.

Os elementos identificadores da segregação, deste modo, concentram-se nos detalhes, e não na hierarquização do espaço representacional. Esta mesma situação se repete nas demais aquarelas. É certo que Ender, como outros pintores viajantes, como por exemplo Nicolas Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret, nunca pintaram o homem negro se revoltando diante da sua condição de escravo, da mesma forma que nunca pintaram um quilombo. Mas também Ender nunca pintou o homem negro sendo açoitado ou sendo tratado como um animal doméstico, tal qual o fez Debret[18], que neste sentido reforçou a sua condição de submissão em relação ao homem branco. Ender sobretudo retratou o homem negro exercendo o seu ofício no comércio e em alguns aspectos do seu dia-a-dia, desta forma, meio que esqueceu a realidade mais dura da condição de escravidão desses homens.

Quanto ao esquecimento em Ender, chamamos atenção para o fato de que a sua própria forma de representação é motivada por um conjunto complexo de fatores que remetem não apenas às lembranças pessoais do pintor austríaco. De igual maneira, remetem a um repertório de estratégias de representação e de direções mentais que lhe foram legadas por sua sociedade de origem, a Áustria, e por uma maneira de ver o mundo, que é o patrimônio coletivo. Enfim, estamos falando de um produto cultural de anos de elaboração, conduzindo muitas vezes a esquecimentos de situações. Podemos interpretar que, como Ender não presenciou a escravidão na Áustria, para este teria sido difícil pintar algo tão cruel e oposto ao seu referencial cultural. Desta forma, talvez por impossibilidade de entendimento ou de aceitação, é que Ender optou por não retratar a sina infeliz a que estavam fadados os negros no Rio de Janeiro do começo do século XIX.

Como já foi dito, os seres humanos de diferentes etnias, estratos sociais e profissões são retratados por Thomas Ender no seu habitat natural, no seu trabalho e vida cotidiana. Desta forma, Ender também pintou as forças armadas uniformizadas e aparelhadas, conforme verificamos na aquarela Quartel de Mata–Porcos [Figura 6]. Nesta obra, faz-se presente o quartel da cavalaria que, no começo do século XIX, localizava-se  na atual rua chamada Haddock Lobo, notando-se que na aquarela do pintor austríaco pode ser visto um homem parado no segundo plano, trajando roupas militares (ao lado da igreja) enquanto homens negros, no primeiro plano, conduzem um tonel contendo pólvora. Este exemplo é oportuno para registrar como em determinadas oportunidades Thomas Ender mostra-se bem sucedido em instaurar na suas obras uma dimensão de movimento, como se pretendesse trazer para as suas aquarelas a mesma dinâmica social de uma sociedade que estava se movimentando, se constituindo. Tal observação pode ser também aplicada em uma análise do Quartel de Mata–Porcos.

A aquarela Quartel de Mata–Porcos estrutura-se a partir de uma cena que inspira movimento, sobretudo nas ações humanas, tal qual o momento onde um tonel é carregado pelos escravos, e todos as pessoas que participam desta cena não estão estáticas. Ao contrário, Ender pintou nesta aquarela as pessoas de forma à insinuar movimento. Em Quartel de Mata–Porcos identificamos no 1° plano, à direita, esta idéia de movimento. Pois, Ender pintou uma figura masculina portando sob à cabeça um tabuleiro, cujas as pernas estão entreabertas de modo que este homem negro, pintado de costas para o observador, fornece a idéia de estar andando.

Ao observarmos a retratação dos seres humanos nas aquarelas de Ender ¾ como o ofício que exercem na cena, bem como os objetos e roupas usados ¾ é que podemos relacionar a que grupo sócio-econômico pertencem estes tipos humanos. A magnífica riqueza dos documentos iconográficos pintados por Ender tematizando o Rio de Janeiro, segundo a autora Ana Maria de Moraes, “decorre da atitude interessada da descoberta dos perfis do continente americano, das cidades, das floresta, das plantas e de uma gama de etnias, que são tema de seus desenhos[19].

Empreendendo um exame mais acurado, do corpus documental que constituímos, a partir das iconografias de Thomas Ender, verificamos que ele apresenta um modo próprio de captar o todo, apresentando uma fatura rápida. O crucial concentra-se em alguns pontos do quadro, que são tratados pelo pintor com maior detalhamento e cuidado, e é desta forma que Ender destaca o aspecto que realmente mais lhe interessa. Podemos dizer que estas aquarelas do pintor Austríaco são marcadas por um preciso senso de captação abreviada do todo. Para atingir este resultado, de uma percepção significativa, porém abreviada, sobretudo, para salientar determinados personagens e aspectos, Thomas Ender utiliza-se de estratégias específicas, como a utilização e simulação da intensidade de luz e cores, focada em certos planos do campo plástico. Resultam destas estratégias as famosas paisagens urbanas e naturais, sobre o Rio de Janeiro e a sua população, que aparecem dotadas de uma profunda coloração e de um jogo contrastante de luminosidades e sombras. É possível identificar nas obras aquareladas de Ender a vivacidade, a clareza empregada para enfatizar os espaços vazios, e o frescor das cores da sua palheta.  Apesar de realizar uma captação abreviada do todo, como já foi dito, a composição das obras do pintor é cuidadosa, demonstrando um traço precioso, porém de apreensão rápida.

No Brasil, Ender encontrou uma explosão de cores e uma luminosidade que provavelmente o estimularam. Os temas pintados por ele nos revelam tempos remotos, onde a cidade do Rio de Janeiro começava a transformar-se em uma metrópole mundial. Nas obras de Thomas Ender é possível reconhecer construções arquitetônicas que permanecem até hoje, como o aqueduto da Lapa, ou se deparar com o Pão de Açúcar e o Corcovado sem o Cristo Redentor, além de bairros como, Botafogo, Catete, Laranjeiras, Flamengo. Os diferentes temas pintados por Ender, tanto do ponto de vista qualitativo como quantitativo, fornecem informações primordiais para o estudo da iconografia brasileira do século XIX, bem como para a compreensão da própria sociedade no seio da qual esta foi produzida. Nestas aquarelas de Ender, obviamente, não é possível se encontrar a fidelidade de uma reprodução fotográfica da imagem do Rio de Janeiro. Thomas Ender reconstrói a paisagem Carioca que encontra por meio de um filtro constituído pelas vivências e expectativas de um estrangeiro, especificamente de um Austríaco nascido no final do século XVIII (nascido em 3 de novembro de 1793).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tradução e notas de Sérgio Millet. Tomo I (volume I e II) e TomoII (volume III) 3a. ed.. Rio de Janeiro: Editora S.A.

HUMBOLDT, Alexander Von; et BONPLAND, Aimé Jacques Alexander Goujard. Voyage aux Régions Équinoxiales du Nouveau Continent. Partie 1-6 [ em 32 vols. ] Paris 1805-1834.

POHL, Johann  E. Viagem no interior do Brasil empreendida nos anos de1817 à1821. Rio de Janeiro; 1951.

SPIX e MARTIUS. Viagem  pelo Brasil  (1817-1820). Vol. I, II, III. Melhoramentos, 3ªedição.

Bibliografia

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BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes,  2005 ; 2ªedição.

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Um lugar no Universo. Vol.II.

FERREZ, Gilberto. O Velho Rio de Janeiro das gravuras de Thomas Ender. São Paulo, melhoramentos; 1970.

FERREZ, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender 1817. Rio de Janeiro, Fund. João Moreira Salles, 1976.

FLORENTINO, Manolo e GÓES, Roberto. A paz nas senzalas. Rio de Janeiro: Record, 1997.

LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. Editora Campos, edição atualizada e aumentada, Rio de Janeiro, 2000.

MARTINS, Carlos (curadoria). O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro, setembro/novembro de 1999. Paço Imperial.

RIBEIRO, Monike Garcia. As duas facetas do artista Francês Jean Baptiste Debret: o pintor e o desenhista. In: R.I.H.G.B, Rio de Janeiro: a.166, n.29, pp.9-392, out./dez.2005.


[1] Historiadora graduada pela UFRJ, Bacharel em Museologia, e Mestra em Memória Social e Documento pela UNI-RIO(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).

[2] BANDEIRA, Júlio e Wagner, Robert. Viagem nas Aquarelas de Thomas Ender - 1817-1818. Vol.III,ed. Kapa,1°  edição, 2000; p. 659.

[3] HUMBOLDT, Alexander Von; et BONPLAND, Aimé Jacques Alexander Goujard. Voyage aux Régions Équinoxiales du Nouveau Continent. Partie 1-6 [ em 32 vols. ] Paris 1805-1834.

[4] Quanto às idéias, e influências de Humbolt, vale ressaltar que: “A influência das idéias de Humbolt sobre os seus contemporâneos é enorme. A arte- única expressão de dar conta das sensações sentidas pelos viajantes- acompanha sempre que possível os relatos e descrições feitos por naturalistas. As grandes expedições podiam contar com artistas, como Rugendas, Thomas Ender ou Hercule Florence. Porém, o mais marcante da abordagem Humboltiana é o estudo das ‘fisionomias’ das paisagens.” (Catálogo: MARTINS, Carlos (curadoria). O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro, setembro/novembro de 1999. Paço Imperial. p.30.)

[5] Veremos a citação completa deste trecho de Spix e Martius na página 3 e 4.   

[6] SPIX e MARTIUS. Viagem  pelo Brasil  (1817-1820). Vol. I, II, III. Melhoramentos, 3ªedição. p.48;1976.

[7] SPIX e MARTIUS. Op. cit. p.46.

[8] SPIX e MARTIUS. Op. cit.   p.21.

[9] SPIX e MARTIUS. Op. cit.  p. 46 . Grifos nossos.

[10] LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. Editora Campos, edição atualizada e aumentada, Rio de Janeiro, 2000. p.105.

[11] BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Um lugar no Universo. Vol.II. p.92.

[12] O pintor Francês Debret que esteve no Rio de Janeiro entre 1816 à 1831, portanto contemporâneo à Ender, relata no seu livro, a mesma constatação de que mencionamos a respeito das mudanças ocorridas na feição da cidade Carioca:  “Tenho, que descrever, o Brasil de 1816, pois neste belo país, como em toda parte aliás, os rápidos progressos da civilização modificam dia a dia o caráter primitivo e os hábitos nacionais (...)”. (DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tomo: 3; p.353.)

[13] Spix e Von Martius. Op. Cit. , p.52.

[14] Todas as Aquarelas analisadas neste estudo encontram-se registradas no livro : FERREZ, Gilberto. O Velho Rio de Janeiro das gravuras de Thomas Ender. São Paulo, melhoramentos; 1970

[15]- Em geral a função de ambulante no comércio do Rio de Janeiro era exercida também por negros livres mas sobretudo por negros de ganho. Os negros de ganho, tratavam-se de uma “espécie de negro livre”,  pois em vez de ficarem sob as ordens e os cuidados constantes de feitores ou de seus donos nas lavouras das fazendas ou no serviço doméstico, podiam ficar na cidade vendendo mercadorias. Ao final do dia deveriam prestar contas ao seu senhor (ou a um outro empregado carregado desta função) do que haviam vendido na cidade.  

[16] A excessiva presença do negro nas aquarelas de Ender pode ser explicada pelas palavras de Debret: “tudo assenta, pois, neste país, no escravo negro; na roça, ele rega com seu suor as plantações do agricultor ; na cidade, o comerciante fá-lo carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista é como operário ou na qualidade de moço de recados que aumenta a renda do senhor.”(DEBRET, Jean-Baptiste. op. cit., p.139-40)    

[17] FERREZ, Gilberto. O Velho Rio de Janeiro das gravuras de Thomas Ender. São Paulo, melhoramentos; 1970. p. 146.

[18] Na litografia de Jean Baptiste Debret intitulada Feitores castigando escravos na roça, integrante do livro do mesmo autor, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, verificamos esta situação.

[19] BELLUZZO, Ana M. de M. Op. Cit., p, 104