Os Desenhos de Pedro Weingärtner

Alfredo Nicolaiewsky *

NICOLAIEWSKY, Alfredo. Os Desenhos de Pedro Weingärtner. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 3, jul. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/pw_an_desenhos.html>.

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O que é de lamentar profundamente é que o rico material de desenhos, pequenos estudos a óleo e aquarela que deixou, feitos no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, em Roma, em Antícoli, em Nápoles, em Pompéia, em Herculano e Portugal, esteja atualmente tão disperso, que se tornará quase impossível reuni-lo de novo. (GUIDO,1956: 76)

Este estudo, que encontra-se em fase inicial, tem como um de seus objetivos contrariar as palavras pessimistas do importante crítico e artista Angelo Guido, tentando reunir novamente o maior número possível de desenhos de nosso grande artista Pedro Weingärtner.

Para tanto a obra de Weingärtner esta sendo objeto de uma pesquisa mais aprofundada: foram organizadas exposições e estamos procedendo a um levantamento de suas pinturas. A sua produção de gravuras já mereceu um estudo, com catalogação e mostra de tudo que se conhece, em 2006 no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Mas o segmento menos estudado e mostrado, por enquanto, são seus desenhos. Talvez as explicações estejam na tradição de somente se valorizar a pintura, ao desconhecimento deste segmento da produção do artista ou ao fato desta obra estar extremamente dispersa e não documentada, como nos lembra o professor Guido. É esta situação que pretendemos, dentro do possível, corrigir através desta pesquisa, e sobre algumas questões já levantadas me deterei neste momento.

Adotaremos como ponto de partida uma certa liberdade conceitual, e denominaremos de desenho toda sua produção sobre papel, com exceção das gravuras. Ou seja, incluiremos na categoria de desenho, não só os trabalhos feitos a grafite, conte, carvão e nanquim, mas também aqueles à aquarela e à pastel.

A maior parte desta produção gráfica não foi feita com o objetivo de ser exposta, e é esta sua principal característica: a de serem desenhos feitos para aprimoramento da técnica, para registros ou como projetos, que hoje os tornam tão interessantes para serem estudados. Através deste levantamento poderemos entender um pouco melhor seu método de trabalho e visualizar o seu desenho como parte desse processo.

Sobre os primeiros desenhos feitos, quando de sua chegada à Alemanha, na Real Academia de Berlin em 1880, e considerando o material produzido a partir daquele momento que fazemos nossa pesquisa, sobre o qual escreve Angelo Guido que

guarda-se um pequeno caderno de desenho onde talvez se encontrem as primeiras anotações de detalhes da figura e de objetos que ele fez na escola. São desenhos sem a maior importância do ponto de vista artístico, mas significativos como documentos da orientação para o traço claro, firme e sutil para a qual já se encaminhavam os estudos acadêmicos do nosso artista. Esses primeiros desenhos mostram que o aluno de (Theodor) Poeckh e de (Ernest) Hildebrand já tinha apreciável maestria de traço, bom golpe de vista e linha incisiva e limpa. Dois retratos a lápis, datados respectivamente de 1879 e 1880, demonstram que firmeza Weingärtner já tinha alcançado no desenho da figura.

Além de estudos de objetos e detalhes de figuras, caprichosamente feitos, nos diz dos progressos realizados por Weingärtner um interessante desenho a lápis que ele fez da casa onde nasceu seu pai, na localidade de Pfaffenroth, em Baden. Era uma casa de madeira de um único piso, com escada externa de material, cercada de arvores, de aspecto pitoresco. Este trabalho talvez seja a mais antiga paisagem que de Weingärtner se conservou. Já se vê com que cuidado, carinho mesmo, o talentoso filho de Inácio Weingärtner desenhou com traço limpo e firme, a casa onde seu pai nasceu e talvez morou até vir para o Brasil. (GUIDO,1956: 21-22)

Voltando então ao material encontrado até o presente momento, já percebemos que:

- Existe um número relativamente reduzido de desenhos localizados (45, apesar de termos conhecimento de pelo menos outros 15, aos quais ainda não tivemos acesso);

- Há falta de depoimentos escritos do artista sobre seu trabalho, pois a maior parte de sua correspondência foi queimada pela viúva, segundo nos informa Angelo Guido “porque estas cartas ‘continham referências a coisas íntimas e de familia’. Salvaram-se alguns postais, que não deixaram de servir para o nosso trabalho de pesquisa.” (GUIDO, 1956, p.154);

- E considerando, por último a inexistência de um levantamento exaustivo de sua obra pictórica, torna-se difícil saber com exatidão as intenções e objetivos dos desenhos de Weingärtner. Alguns são indiscutíveis tais como as academias, os desenhos anatômicos ou os retratos. Mas sobre a maior parte somente podemos tecer suposições: se são simples registros ou projetos para alguma pintura ou, ainda, exercícios de observação.

Correndo o risco de cometermos equívocos, decidimos organiza-los pelo que entendemos terem sido suas intenções, e não por técnicas, temas ou datas, ou seja, um grande grupo de exercícios e outro, bem menor, de obras finalizadas. O conjunto de exercícios comporta também uma subdivisão em academias, os estudos e as anotações.

Mesmo imaginando a possibilidade de cometermos alguns enganos, pois pode ocorrer que um determinado trabalho que classificarmos como uma obra acabada, posteriormente, possamos descobrir que ela é um estudo para uma pintura, faremos desta maneira. Mas estas retificações somente virão à tona através das pesquisas e de levantamentos mais exaustivos.

Um último aspecto que deve ser citado é que diversos destes trabalhos não puderam ser examinados pessoalmente, ou seja, somente tivemos o acesso a eles através de reproduções, muitas vezes sem informações sobre medidas, técnicas, etc. o que também pode provocar algum equivoco.

Vejamos então algumas características destes desenhos, começando pelos exercícios, que são em maior número:

1. Academias

Segundo Étienne Souriau (1999: 566) entre outros sentidos o termo

academia designa um quadro ou um desenho representando um nu, executado para adquirir, desenvolver ou manifestar um bom conhecimento plástico e anatômico do corpo humano, e o interesse se coloca sobre a maneira como são obtidas as formas dos corpos mais do que sobre as aparências ou as qualidades de expressão. Por extensão, e um pouco pejorativamente, academia designa também um nu, em uma composição pictórica, que mais parece um trabalho de escola ou um pedaço de exibição técnica, do que uma obra inspirada.

Já localizamos dez academias, algumas delas magníficos desenhos, que demonstram seu domínio no desenho da figura humana. Dentre estas podemos enumerar algumas características que nos chamam a atenção:

- Weingärtner utiliza diversos materiais nestes trabalhos, como conte, carvão, grafite e bico-de-pena (técnica esta que não é usual em academias por ser mais demorada);

- algumas destas academias são extremamente elaboradas, inclusive com a utilização de elementos gráficos de fundo, como forma de valorizar a luz e sombra nos modelos [Figura 1];

- outras, apesar do requinte da elaboração de partes do desenho, estão inacabadas [Figura 2];

- em uma delas, com fatura bastante simplificada, vê-se que ele não estava satisfeito com o resultado do desenho dos pés, pois os refez ao lado, uma prática bastante comum, até hoje, nas aulas de modelo vivo;

- em mais de um exemplo, a bico de pena ou a grafite, vemos uma série de traços, próximos da borda do papel, como testes [Figura 2], para ver como está a linha (se muito grossa ou com excesso de tinta), prática também bastante comum, até hoje, nos ateliês.

- em uma, vale a pena chamar a atenção como um registro da maneira como ocorriam as sessões de desenho no final do séc. XIX, vê-se um gancho pendurado, no qual o modelo se segura, para poder ficar mais tempo imóvel, com o braço levantado [Figura 3]. Esta prática se perdeu, e estes ganchos não existem mais, na maior parte dos ateliês ou academias.

2. Estudos

Este grupo se compõe de desenhos feitos com intenções bastante variadas. Encontramos estudos anatômicos, como as pranchas com um crânio [Figura 4] e outra com uma estrutura óssea, ambas com uma série de anotações com a nomenclatura das diversas partes e ainda uma terceira que representa um modelo, provavelmente em gesso, da musculatura humana.

Dentre os estudos também encontramos, até o momento, dois desenhos feitos a partir de estátuas como, por exemplo, a do “Escravo”, de Michelangelo, e mais outros dois, nos quais o modelo é uma mão apoiada sobre uma base, modelo este provavelmente de gesso [Figura 5]. Nestes últimos, além da mão de gesso se vê em um, uma cabeça de um homem jovem em escorço, debaixo para cima, aparentemente feita a partir de modelo vivo. Na outra um detalhe de arquitetura, que poderia ser um detalhe de fachada, mas acredito que seja um móvel com duas luminárias de parede ao lado.

Temos mais um desenho com uma cabeça de velho a bico-de-pena, que parece ter sido feita a partir de uma escultura, pela rigidez dos traços [Figura 6]. Na mesma folha, temos dois pequenos desenhos à grafite feitos com traços rápidos: a cabeça de um homem (ao que tudo indica um auto-retrato) parcialmente atrás de um elemento, que entendemos ser uma tela em um bastidor e uma outra cabeça masculina de costas.

E por último temos uma série de pequenos trabalhos à grafite [Figura 7], provavelmente retratos. Se estes são estudos para trabalhos posteriores, exercícios ou mesmo obras finalizadas, por enquanto, não temos como saber. Boa parte deles chama a atenção pelo grau de detalhamento e requinte do desenho das cabeças e pela incompletude do restante das figuras, apenas esboçadas. E também pelo fato de algumas serem assinadas e datadas, o que indicaria um trabalho finalizado. Quem sabe não são retratos de conhecidos, aos quais presenteava?

3. Anotações

Para definir as características deste terceiro conjunto de desenhos que tem também características bastante variadas, valho-me da definição de croquis, que é um

Desenho rápido, representando por meios muito simplificados um objeto qualquer que mereça a atenção do desenhista [...] feitos em condições que obriguem a uma extrema rapidez de execução. Por exemplo, se tratar de um personagem em movimento, ou de um animal, de um edifício percebido em uma viagem ao qual não se pode ficar longamente a estudar; é por isso que os croquis são feitos seguidamente sobre pequenos cadernos. [...] Muitos dos croquis são feitos pelo artista para ser utilizado posteriormente como documentação e servir sobretudo como ajuda para a memória.(SOURIAU,1999: 531)

Vamos aos desenhos localizados até o presente momento:

- são 5 desenhos feitos ao ar livre registrando paisagens ou construções simples. Um único tem a referência que foi feito em Roma e um outro, pelo tipo de paisagem representada, podemos supor que também foi feito na Europa. Um terceiro parece ser uma anotação feita no sul do Brasil, pelo tipo de construção apresentada [Figura 8];

- um desenho de vegetação a nanquim;

- uma folha com diversas anotações à grafite, com certeza feitas no campo, mostrando um homem com gado, outros com enxadas e um cavalo [Figura 9] e que lembram bastante as figuras de homens trabalhando em diversas de suas pinturas, principalmente as paisagens de Antícoli;

- há um delicado esboço de um cachorrinho nos braços de alguém [Figura 10], sobre o qual talvez seja a referência que Guido faz quando escreve sobre os desenhos feitos em 1882 e 1883 em Paris ao descrever “... vários estudos de nus femininos e masculinos, cabeças do natural, alguns animais, como uma cabeça de cão finamente desenhada ...” (GUIDO, 1956: 31);

- uma folha [Figura 11], que supomos ter sido feita em um zoológico, dividida em quatro partes: há a representação de um macaco; de um tigre e temos também um homem descansando sob um guarda-chuva (o que nos leva a confirmar a suposição de um passeio ao zoológico), a quarta imagem parece ser a de um porco, e considerando os outros desenhos, deve ser de um porco do mato, ou algo semelhante;

- neste conjunto temos um desenho que pode ter sido um estudo para a figura masculina da pintura Tempora Mutantur, pois apresenta um homem com uma enxada, como na pintura, e que tem alguma semelhança na postura, apesar de estar invertida. Reforça esta possibilidade as colocações de Guido quando comenta que Weingärtner fez uma série de estudos de paisagens e pessoas para executar a obra. “Os estudos das posições, várias vezes mudadas, das duas figuras, encontram-se em algumas paginas de um velho caderno” (GUIDO, 1956: 91). Mesmo considerando que este desenho foi feito alguns anos antes da execução da obra finalizada, entendemos ser possível que tenha sido um dos elementos de estudo preparatório;

- existe também um desenho com um detalhe que a mim chama a atenção: a representação, em traços rápidos, de uma figura masculina vestida com uma espécie de túnica. O que o torna curioso é o ponto no qual foi colocada a assinatura, isto é, a folha de papel é retangular e foi usada na horizontal, e a figura encontra-se na extrema esquerda, com a assinatura na extrema direita. Isto indica que o espaço branco do papel (mais ou menos a metade direita da folha) faz parte do trabalho, provavelmente uma maneira de equilibrar o desenho. Este é um tipo de raciocínio que ocorreria normalmente em uma obra acabada, e não em uma anotação, como parece ser devido ao tratamento da figura.

Para reforçar nossas palavras acima, quando falamos das anotações, valho-me da referência que Ângelo Guido faz dos hábitos de Weingärtner:

Não compunha nunca diretamente na tela. A composição era antes demoradamente meditada; [...] A medida que no espírito o quadro se formava, as fases dessa elaboração iam sendo acompanhadas por schizzi ou esbocetos, desenhos de figuras humanas, de animais, de objetos, feitos do natural, a lápis ou bico-de-pena.

Diversos de seus pequenos cadernos estão cheios de rápidos projetos de composições, de desenhos de figuras ou detalhes das mesmas, em que se vê que vai reunindo o material para quadros que está compondo na mente antes de passar a realizá-los na tela. No mesmo caderno, na mesma página, às vezes, figuram em desenhos de traços, delicados elementos que iremos encontrar neste ou naquele quadro ou, em alguns casos, em mais de um quadro.

Pelo que se pode deduzir de vários cadernos que examinamos, não viajava nunca, não realizava mesmo um passeio, como os que fazia, aos domingos, em geral, em companhia do íntimo amigo Carlos Magalhães de Azeredo, então cônsul em Roma, sem levar o seu pequeno caderno em que ia anotando o que lhe interessava ou podia servir-lhe para uma composição. E os desenhos miúdos, cuidados ou rápidos, mas sempre reveladores de perícia surpreendente e da elegância conquistada pelo seu traço, iam enchendo páginas e páginas, constituindo um dos aspectos da sua obra sumamente interessante, não só pelo que nos revela do seu valor como desenhista, como observador agudo e estudioso apaixonado do conteúdo estético das coisas, mas também pelo que documenta relativamente aos seus processos de trabalho, ao cuidado e honestidade com que era a sua obra de arte elaborada. (GUIDO, 1956, p.75 e 76)

Vejamos agora alguns trabalhos que supomos sejam obras finalizadas.

É um conjunto, por enquanto, pequeno e com características bastante variadas:

- Temos duas aquarelas, sendo que uma representa uma escada junto a uma construção. Pela descrição feita por Guido em seu livro (conforme citação acima), esta poderia ser a casa dos pais do artista, na Alemanha, que ele teria visitado e desenhado em sua primeira ida a Europa.

- Uma paisagem a pastel, que talvez seja um estudo para uma pintura, da qual ouvimos falar, mas não tivemos acesso.

- Temos quatro retratos. Um aparentemente a bico de pena e grafite, provavelmente um auto-retrato, em pequeno formato. Três retratos a grafite sendo um deles do Presidente Prudente de Moraes [Figura 12], sendo que aos outros somente tivemos acesso por arquivos digitais de baixa qualidade.

Finalizamos este texto, repetindo nossa colocação inicial. Este estudo encontra-se em um estágio inicial e com certeza outras obras serão incluídas. Na continuidade da pesquisa poderemos apresentar, em um futuro próximo, um quadro mais detalhado deste importante segmento da obra de Pedro Weingärtner. Mas já é possível perceber a qualidade dos desenhos de nosso artista e o quão significativo será este levantamento amplo para compreendermos sua produção como um todo.

Referências Bibliograficas

GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. RS: Diretoria de Arte da Divisão de Cultura, 1956.

SOURIAU, Etienne. Vocabulaire d’esthétique. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.


[*] Artista plástico e professor. Mestre (1997) e Doutor (2003) em Artes Visuais - Poéticas Visuais, ambas pela UFRGS. Professor Adjunto no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Diretor do Instituto de Artes da UFRGS,.