Cultura, história e gênero: a pintora Abigail de Andrade e a geracão artística carioca de 1880

Cláudia de Oliveira [1]

OLIVEIRA, Cláudia de. Cultura, história e gênero: a pintora Abigail de Andrade e a geracão artística carioca de 1880. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 3, jul./set. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/co_abigail.htm>.

*     *     *

O texto que se segue apresenta uma pequena reflexão sobre a vida e a obra da pintora Abigail de Andrade. Propomos uma démarche sobre sua identidade, como mulher e artista, no contexto da geração artística carioca da década de 1880 - momento em que a capital do Império do Brasil, segundo Margarida de Souza Neves[2], se apresentava como uma “cidade partida”: um espaço cultural onde o “moderno” convivia com o “arcaico”. Cidade onde as resplandecentes expressões da civilização coexistiam com realidades e temporalidades distintas marcadas pela situação de uma sociedade escravista. Estas expressões da civilização eram fruto da presença maciça de estrangeiros nas artes, na música, na literatura, no entretenimento, na moda, no cotidiano da cidade. Esta cultura estrangeira parece ter funcionado nesta sociedade oitocentista pressionada pela modernização, como um veículo de transferência cultural, revelando-se, também, como componente fundamental na formação da identidade da cidade e de seus indivíduos. Situação cultural que acreditamos ter sido propiciadora para a emergência de novos grupos sociais e individualidades. De modo que Abigail de Andrade, assim como os demais artistas de sua geração, parecem ter se tornado os herdeiros desse legado adquirido pelo contato com estes estrangeiros, situação propiciadora para a emergência de uma nova sensibilidade intelectual e artística, construtora de novas linguagens, novas oportunidades de carreiras e maneiras de fazer um “nome”, pelo prisma de sua refração na vida intelectual e na cena artística local.

A notoriedade que Abigail de Andrade adquiriu em seu tempo é um tema fascinante para uma etnografia das relações de gênero. Por outro lado, nos ilumina para os contrastes, as diferenças e as similitudes observadas no campo artístico e intelectual. Por isso elegi como foco central a análise de sua carreira e sua trajetória social: mulher expressiva, que não só fez seu “nome”, em sua época, mas, também, escolhas afetivas e amorosas que colocou Abigail em embate com os preconceitos sociais de seu tempo em relação à mulher.

A questão analítica mais ampla que alinha essas frentes de investigação, a saber: a arte, o campo intelectual e artístico e a sociedade, diz respeito à equação entre gênero e suas articulações com o problema da autoridade artística feminina frente ao campo intelectual e artístico, quase que exclusivamente masculino e, também, frente à sociedade em geral. Tal perspectiva nos permite captar os constrangimentos, os espaços possíveis e as perspectivas de carreira que se abriram e fecharam para Abigail de Andrade.

A primeira questão a ser colocada em destaque na reflexão sobre Abigail - como mulher e pintora - foi sua trajetória inseparável de sua parceria amorosa e profissional com o artista Angelo Agostini, com quem teve uma relação afetiva durante 11 anos, embora Agostini fosse casado, pai de uma filha, e ainda 21 anos mais velho que Abigail. A relação apaixonada e dramática de ambos levou o casal a ter que deixar o Brasil em 1888 - já que Abigail dera a luz a uma filha de Agostini - a futura pintora Angelina Agostini. Repelidos pela sociedade carioca da época, o casal parte para Paris, cidade que Abigail veio a falecer de tuberculose dois anos depois, em 1891, com apenas 27 anos de idade, deixando ainda, um segundo filho, Angelo, que também veio a falecer, logo após a sua morte, da mesma doença.

A relação entre Abigail e Angelo se torna mais um dos recursos expressivos a sinalizar como Abigail se envolveu com as clivagens culturais de seu tempo. A comparação entre estas clivagens permite aquilatar diferenças relevantes nos domínios da biografia, da trajetória e da obra. Permite ainda a circunscrição de pontos em comum, derivados tanto dos condicionantes que modelaram os espaços possíveis para a atuação das mulheres na época, quanto pela maneira como lidaram com os constrangimentos decorrentes das relações e inflexões de gênero no campo artístico e cultural.

Para não essencializar tais marcadores sociais sob o feixe anêmico da “condição feminina” e para mostrar que eles devem ser apreendidos em relação e na relação com outras dimensões igualmente relevantes para o entendimento da estrutura e da dinâmica específica dos campos de produção cultural, tomamos para a compreensão da trajetória de Abigail, como artista e mulher, na década de 1880 e sua relação com o campo artístico de seu tempo, os conceitos de troca e de outillage mental[3], desenvolvidos pelo historiador da arte Michael Baxandall, e os conceitos de habitus e de campo[4], do sociólogo Pierre Bourdieu - conceitos que nos parecem inteiramente imbricados, tornando-se fundamentais para o entendimento do processo analítico do sistema de referência cultural que age sobre o individual-artístico, possibilitando a compreensão da relação entre obra, indivíduo e contexto, por um lado, e da obra em si mesma, por outro.

Pois, na relação entre os artistas e o campo artístico, e dos artistas com a sociedade, em geral, a moeda de troca é muito mais diversificada que o dinheiro: ela inclui um sentimento de aprovação e de crescente confiança do indivíduo em si mesmo, junto a posições no campo, desde as amizades até a afirmação de uma história pessoal, ligada ou não a uma linha de hereditariedade artística. Para Pierre Bourdieu, tais relações são animadas pelas disputas ocorridas no interior do campo, cujo móvel é invariavelmente o interesse em ser bem-sucedido nas relações estabelecidas entre os seus componentes e a sociedade.

A propósito desta relação entre o artista e o campo, e o artista e a sociedade, o jornalista da Gazeta de Notícias, fazendo a crítica à Exposição Geral da Academia de Belas Artes, em 23 de agosto de 1884, descrevia a importância dessas relações:

Os artistas caminham por entre os grupos que se formam em frente aos seus quadros, e desejando que os espectadores os não conheçam pessoalmente, suspiram por ouvir a apreciação espontanea, o pequeno grito de applauso, que lhes paga todos os esforços, porque, por mais que os artistas desejem ganhar para viver, nada vale tanto para elles como a consagração do seu talento pelo applauso do publico.

Abigail de Andrade nasceu em Vassouras [Figura 1], em 1864, no seio de uma família tradicionalmente ligada à lavoura de café. Era filha dos fazendeiros José Maria de Andrade e de D. Maria Carolina de Andrade e tinha ainda uma irmã, Violeta. O pai de Abigail, José Maria de Andrade era também um advogado atuante, com banca de advocacia montada na cidade de Vassouras servindo a elite cafeeira. Abigail teve uma educação aristocrática: estudou em um dos colégios mais refinados que havia para moças na cidade, a escola para moças de Madame Grivet - colégio que também havia estudado a famosa vassourense Eufrásia Teixeira Leite, neta dos Barões de Campo Belo e de Itambé e sobrinha do Barão de Vassouras. Eufrásia Teixeira Leite foi das primeiras mulheres financistas no Brasil. Administrou a fortuna de sua família de Paris, onde fora viver em 1873, com apenas 23 anos de idade - época em que fora também amante de Joaquim Nabuco. Embora, Abigail fosse pouco mais nova que Eufrásia, ambas pertenciam ao mesmo grupo social. Certamente Abigail e Eufrasia compartiram não só do mesmo capital cultural, mas também simbólico.

Portanto, o modelo educativo feminino que compartiu foi o adotado pelas mulheres das camadas altas na Europa [Figura 2], desde o Iluminismo[5]. Contudo, mesmo tendo vindo da provinciana Vassouras e vivendo na pouco menos provinciana Rio de Janeiro de meados do século XIX, onde à mulher, especialmente das classes altas, não era permitida a entrada no mercado de trabalho, Abigail quis ir além. O desejo em participar da vida social e transformar-se em uma profissional das artes, nos aponta para uma jovem que desejava afirma-se como indivíduo.

Assim, com dezoito anos, Abigail deixa Vassouras, com o desejo de viver a intensa vida cultural da cidade que lhe acenava com oportunidades. A jovem chega ao Rio de Janeiro em 1880, onde vai viver com sua tia, D. Rosa Fernandes de Almada. Nada, a princípio, poderia dificultar-lhe a carreira e a projeção social, a não ser o fato de ser mulher e ter-se envolvido, no século XIX, com um homem casado, conhecido no mundo das artes e da política. Mas, a carreira de Abigail, ao contrário, foi extremamente curta e dela praticamente não existe registro oficial. Donato Mello Junior, em As Exposições Gerais na Academia Imperial das Belas Artes no Segundo Reinado, diz que: “sua carreira foi um breve cometa no ambiente artístico de fim de século”[6].

Logo ao chegar à Corte, Abigail matricula-se no Liceu de Artes e Ofícios [Figura 3] - escola criada em 1856 com o objetivo de promover cursos profissionalizantes para a educação das classes populares e difundir o ensino das belas-artes. Em 1881, o Liceu passou a oferecer o Curso Profissionalizante Feminino: muito polêmico para a sociedade da época, mas defendido em campanha pelos intelectuais nos jornais[7]. Machado de Assis, em artigo para o jornal ilustrado A Estação, em 1885, intitulado O Liceu de Artes e Ofícios - Aulas para Sexo Feminino, na coluna, Cherchez La Femme, dizia:

O século caminha para a verdade, ergamos nós a Mulher para que ela possa ver de que ponto do horizonte irrompe essa luz divina, cujo reflexo há de alumiar a Família, acrescentar a Pátria e engrandecer a Humanidade [...] eduquemos, façamos ainda maior e mais belo o Feminino Eterno, e que a instrução irradie n’uma esplendida e eterna aurora boreal...[8]

Sua escolha pelo Liceu não foi aleatória, já que às mulheres não era dada a oportunidade de estudar pintura no ambiente masculino da Academia Imperial de Belas Artes - o que iria ocorrer somente com a República. É neste ambiente intelectual que Abigail e Angelo se conhecem. Ele, seu professor de desenho, há 32 anos no Brasil, dono da Revista Ilustrada e seu principal artista.

Em 1884, Abigail já é amante de Agostini e está com 20 anos. Neste ano, Oscar Guanabarino, fazendo a crítica à Exposição Geral de Belas Artes de 1884, faz o seguinte comentário a respeito da relação entre mestre e pupila - aliás, um dos raros comentários no qual os nomes de Abigail e Angelo aparecem juntos na imprensa durante todo o período em que estiveram juntos.

Diz Oscar Guanabarino:

A Sra. D. Abigail de Andrade, distincta amadora já creou um nome digno do seu talento e do seu professor o Sr. Angelo Agostini [...], assim attenta as condições do meio em que expande a sua actividade, e as influencias que recebe sobre suas producções artisticas, exerce o temperamento de uma moça de muito pouca idade.

Não é preciso assinalar que era de conhecimento público a relação afetiva e também de pupila e mestre entre D. Abigail e o Sr. Angelo Agostini.

A Exposição de 1884 foi a última, a maior e a mais brilhante que se realizou no Segundo Reinado. Nela, Abigail participou na seção de pintura, apresentando quatorze trabalhos: quatro óleos representando cenas do cotidiano, dois retratos, três cópias e cinco estudos de desenho, segundo Catálogo da Exposição. Apesar de estreante, Abigail de Andrade foi premiada com uma primeira medalha de ouro, láurea que dividiu com paisagens de Thomas Driendl, Giovani Castagneto e Georg Grimm - tornando-a a primeira mulher a ganhar uma medalha de ouro em exposição organizada pela Academia Imperial de Belas Artes. Dois óleos, dentre o total da obra apresentada destacavam-se e foram eles que geraram o cobiçado prêmio: Um canto do meu ateliê [Figura 4] e Cesto de compras [Figura 5].

Em Um canto no meu ateliê, a artista dá seguimento à retórica de auto-representação em ateliê - representação vista como “digna” da condição feminina no século XIX - e já tratada em auto-retrato de 1881, em tela exposta no Salão do Liceu de Artes e Ofícios daquele ano [Figura 6].

No novo contexto, ou seja, na tela Um canto no meu ateliê, já mais amadurecida, a artista utiliza um percurso diferente. A fonte de luz, viva e brilhante, que entra pela janela revela a artista na posse de sua atividade como pintora. Os pontos mais luminosos se tornam delicadas contas de luz e são usados com especial eficácia na construção do ambiente, ressaltando ao observador, a firmeza das mãos brancas da artista, que seguram o pincel, o rosto voltado que conversa com a tia à janela. Emoldura-as uma coleção de objetos que desempenham uma função específica no ambiente. O conjunto de objetos parece evidenciar o desejo da artista em mostrar o seu treinamento na arte do desenho. A estátua da Vênus de Milo, as esculturas de corpos gregos masculinos que apontam para seu treinamento em anatomia masculina, pinturas de anjinhos rafaelescos, uma natureza-morta, um retrato de homem com chapéu e um retrato de mãe e filha; todos esses elementos parecem compor uma imagem de mulher em plena firmeza de suas atividades e intenções: ser uma profissional. O que está em questão nesta tela é a mulher se afirmando como indivíduo e artista. Nem mesmo o seu rosto, que comporia a sua linda aparência feminil, está em evidência - a artista está de costas para o observador, como a mostrar que sua preocupação não é representar a mulher, mas a artista junto aos seus objetos em seu ateliê, os quais ali estão dotados de uma função: mostrar o treinamento da artista. Portanto, Abigail, nesta tela, não está confinada à posição de modelo ou musa do artista, não é objeto, não é ícone, não é motivo ou tema. Ela é sujeito.

Já em Cesto de compras, um foco de luz da esquerda para a direita ilumina os vegetais e as penas da ave, apontando para um diálogo com o realismo das naturezas-mortas holandesas do século XVII. Não é preciso destacar que, no século XIX, naturezas-mortas também eram consideradas sob o feixe da pintura feminina. Nesta tela, os reflexos, as gradações de cores, tons e matizes dão vida aos vegetais e até mesmo ao troco, que atrai a atenção pelo realismo da nota suja e amassada, onde pode-se ler 500 réis e as moedas no canto direito da mesa da cozinha. Em Um cesto de compras percebemos o primor do acabamento, a perfeição na execução, a minuciosidade, mas não só, vemos também equilíbrio de linhas e uma justa combinação de forças e de elementos.

Angelo Agostini na Revista Ilustrada de 26 de outubro de 1884 fazia os seguintes comentários sobre as duas telas de Abigail: “Esta Exma Sra., conseguiu, pela perfeição de seus trabalhos [...] chamar a atenção do público e toda a imprensa que lhe teceu os maiores louvores. Excusado é dizer que não faremos exceção a tão, merecidos encomios à jovem e distintíssima artista”[9]. Os elogios à Abigail eram de um homem enamorado, cuja admiração e respeito pela amada aparecem em suas litogravuras [Figura 7a e Figura 7b] e textos repletos de louvores a obra da artista: “São os melhores trabalhos que até hoje se tem visto na Academia”.

Mas a Exposição Geral de Belas Artes de 1884 revelava também um gênero de pintura que parecia marcar um novo momento na pintura brasileira em geral: a paisagem. O gênero paisagem ligado a ideia de modernização não era novo - tanto na Europa, quanto aqui. Os textos de Charles Baudelaire sobre os Salões de 1845, 1846, 1855, 1859 e também os de John Ruskin sobre a Paisagem Moderna e seu estudo sobre o pintor William Turner mostram o novo lugar da pintura de paisagem no contexto burguês e, especialmente, no contexto das discussões no interior da Grande Arte. Aqui no Brasil, Ana Cavalcanti ao fazer um estudo sobre a pintura de paisagem, chama atenção para o gênero entre nós, como um vetor de modernidade no meio artístico carioca do final do XIX.

O importante nesta pequena digressão sobre a paisagem é fazer um vôo de pássaro sobre duas telas de Abigail, as quais parecem introjetar a nova tendência. As duas telas de Abigail parecem sinalizar para a preocupação e desejo da pintora em incluir-se na tendência geral de representações artística do campo, ou seja: a pintura de paisagens.

Na primeira tela, Paisagem a caminho do Novo Mundo com o Morro do Pão de Açúcar ao fundo (s/d) [Figura 8], Abigail apresenta-nos uma vista solar, cujos tons claros, cinza-azulados do céu e do morro contrastam com o verde da folhagem das árvores, da gramínia espalhada ao chão e do mato que cresce junto à cerca. Esta luz solar inunda a atmosfera que ressalta a calma do ambiente, com as galinhas que ciscam em círculos, a vaca e seu bezerrinho que sobem lentamente o morro, o casebre com suas portas e janelas contíguas dão um ar pitoresco, com suas paredes descascadas de frente para a linha de roupas penduradas no varal de bambu. Um toque de vermelho surge como um pequeno foco de luz, ao fundo, no turbante que veste a negra curvada, que colhe ou apanha algo no chão. Os olhos do espectador são conduzidos ao fundo através de duas paralelas que convergem inclinadas para o morro do Pão de Açúcar que fecha a paisagem.

Em Trecho de Paisagem (s/d) [Figura 9], a paleta de Abigail é clara e o sol inunda a paisagem, as manchas escuras dos coletes, calças, casaco, telhados, da vegetação em seus vários matizes de verde escuro, pendendo para o marrom, pontilham a vista, que chega a ser quase bucólica. O mesmo tom de marrom é visto também na linha de postes e na fiação. Estas machas escuras contrastam com os tons e matizes areia dos chapéus e das casas ao fundo, em pinceladas bem visíveis, despertando para uma sensação visual que também alude para certa calma, para certa placidez nos rostos e da hora que passa.

Estamos em 1888, ano da partida de Abigail e Angelo para a Europa. Nesse momento, o enaltecimento à obra de Abigail parte da imprensa em geral, inclusive do crítico de arte Gonzaga Duque, que escreve que Abigail de Andrade, ao contrário das demais pintoras de seu tempo e enfrentando o preconceito existente contra as mulheres, fez da pintura a sua profissão, o que nos sinaliza para a importância de Abigail no campo artístico de sua época.

Abigail torna-se pintora conhecida. Faz duas exposições individuais. A Academia Imperial de Belas Artes propõe comprar algumas de suas telas, o que é recusado pela pintora[10]. A recusa de Abigail nos mostra a impossibilidade para uma mulher de sua classe social, na sociedade carioca do Segundo Reinado, ter uma profissão. Abigail, embora lutasse pelo seu reconhecimento como pintora, não pode tê-lo por completo, pois as hierarquias sociais a impediam de se realizar como indivíduo e artista.

Concluindo, procuramos neste texto jogar um pouco de luz sobre uma artista, cuja memória foi praticamente apagada da história. A partir de uma reflexão sobre a construção social e cultural de sua identidade como mulher e como artista, buscamos mostrar as novas visadas sobre o papel da mulher, no emergir da modernidade no Rio de Janeiro, bem como, parte da produção da artista esteve em compasso com as demais criações do campo artístico de seu tempo, o que fez de sua obra sintonizada com a sensibilidade histórica e cultural de sua época. Abigail fez seu “nome”, mas suas escolhas pessoais a tornaram uma transgressora aos olhos da sociedade patriarcal e provinciana, carioca, de fim-de-século. O seu relacionamento com Angelo Agostini sofreu controle total da moral da época, o que levou o seu afastamento do convívio com a geração artística de seu tempo. Abigail de Andrade caiu no esquecimento.

Todavia, esta relação de complementariedade de alma e de criação está ligada à possibilidade do estabelecimento de relações de reciprocidade e de influência mútua, as quais se manifestam não só em suas telas, mas também aponta para uma resignificação do papel social da mulher. Nessa linha de reflexão, indicamos as contradições e ambiguidades vividas por Abigail à sua época. Contudo, não podemos deixar de sublinhar que nesta relação de criação por complementariedade, o modelo binário de interpretação, no qual a mulher é percebida apenas como um corpo e uma alma ensandecida de sensações e sentimentos e o homem como símbolo da mente racional, cabendo a mulher o papel de simples copista e o homem de sujeito realizador, parece submeter-se a conexões e ligações bem mais amplas e complexas.


[1] Cláudia de Oliveira é Professora Adjunta da Escola de Belas Artes (UFRJ) e Doutora em História Social (UFRJ).

[2] NEVES, Margarida de Souza. Uma cidade entre dois mundos – o Rio de Janeiro no final do século XIX. In: O Brasil Imperial. V.3 – 1870-1889. RJ: Civilização Brasileira, 2009.

[3] BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção. A explicação histórica dos quadros. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

[4] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas (introdução, organização e seleção de Sérgio Micele). São Paulo: Perspectiva, 1974.

[5] GODINEAU, Dominique. A Mulher. In: Michel Vovelle (Org.). O homem do Iluminismo. Lisboa: Editorial Presença, 1997.

[6] MELLO JUNIOR, Donato. As Exposições Gerais da Academia Imperial de Belas Artes no Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Erca, 1989.

[7] Op. cit, p. 2.

[8] A Estação, de 1885.

[9] Revista Ilustrada, Rio de janeiro, 26 de outubro de 1884 (4/5).

[10] SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista. Pintoras e Escultoras Acadêmicas Brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2008, p.86.