Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte

transcrição de Alice Damasceno, Cristiane Souza de Oliveira e Daniel Belion

VALLE, Arthur (org.). Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/revista_brasil.htm>.

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M. L.. Resenha do Mês. A exposição do Saci, Revista do Brasil, São Paulo, ano II, nov. 1917, n. 23, p.403-413 [Texto com grafia atualizada].

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Produtos de um concurso conseqüente a um inquérito que está na memória de todos, estiveram expostos ao público vários quadros e esculturas, onde, pela primeira vez na terra natal do Saci, foi o Saci guindado às regras da arte. O tema era difícil. Fixar um tipo puramente subjetivo, de formas instáveis, cheio de variantes, existente apenas na imaginação do sertanejo, é tarefa que requer do artista um bocado mais de talento do que o preciso para broxar um melão, retratar um empatacado Cav. Uff. ou copiar os fundos da Tabatinguera, tema dileto dos nossos paisagistas que enebriam-se ali com uns toques de Veneza muito sedutores. Requer inventiva, requer composição, e composição das que não possuem cômodos pontos de apoio, isto é, obras anteriores do mesmo gênero já consagradas, nas quais o pintor “monta” sem percepção do público. Devido a isso, talvez, os nossos pintadores de Bretanha e Cav. Uff. abstiveram-se. Compositores geniais de Perdões, Salomés e Tabatingueras, não lhes convinha perder a máscara de Regnaults do Café paulista, e Corots da Várzea do Carmo para essa arriscada aventura do algo nuevo. Continuam no algo viejo, e fazem muito bem. Um dos meios de ter talento é simulá-lo.

Nacionais compareceram em pintura apenas dois trabalhos, uma aquarela ligeira do Sr. Celso Mendes, bando de cavalos que o Saci dispersa à noite, e o Saci do Paraná do Sr. Joab de Castro, que é uma criança e pertence ao número dos “curiosos”. A Sra. Malfatti também deu sua contribuição em ismo. Um viandante e o seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada vermelha, degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se-lhes pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo. Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo, degringola-se a cabeça do cavalo, tentando arrancar-se do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do Pará. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo, cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está hors concours.

Não cabe à critica falar dele porque o não entende: a crítica neste pormenor corre parelhas com o público que também não entende. É de crer que os artistas autores entendam-nos tanto como a crítica e o público. Em meio deste não entendimento geral é de bom aviso tirar o chapéu e passar adiante.

As demais telas são de artistas estrangeiros. Roberto Cippichia, o premiado compareceu com uma interpretação romântica muito sensata e harmoniosa, notável pelo movimento que imprime à cena da cavalhada em fuga, dentro da noite, cavalgada por um Saci [Figura 1]. Foi a tela que melhores louvores recebeu do público, que os repartiu ainda com suas duas esculturas [Figura 2 e Figura 3], deveras originais, muito sugestivas, e onde a característica diabólica do duende está muito bem interpretada.

Richter apresenta duas aquarelas e um óleo; a das quatro negras em torno do fogo com um Sacisinho que entra a aporrinhá-las [Figura 4], está ótima no estudo das pretas, uma das quais é a negra mais bem estudada que conhecemos. O caráter físico e mental da africana está fixado nela com rara felicidade.

Pecou unicamente em afastar-se da lenda dando proporções microscópicas ao diabinho. A outra, um caipira que ao transpor uma pinguela esbarra com o Saci [Figura 5], está bem estudada, com um fundo eclético e epitômico de paisagem brasileira; só foi comentado desairosamente a inserção da cabeça no tronco. O terror do caipira não vai até à desnocacar das vértebras. Seu terceiro trabalho, a óleo, constituiu ainda uma das boas coisas do certame.

Iara, pseudônimo de Norfini, compareceu com quatro aquarelas episódicas, todas muito interessantes. O tema da cavalhada a galope, com Sacis a espantá-la [Figura 6], desenvolveu-o ele com largueza e ótima movimentação. As demais foram compostas com o espirituoso tom anedótico que caracteriza esse fino e elegante artista.

Della Latta aquarelou um Saci no rodomoinho bastante sugestivo e decorativo [Figura 7]. No Saci satisfeito, moleque cavorteiro sentado como o tição da discórdia entre um casal de pretos brigados, a fisionomia do diabinho exprime melhor que em todos os trabalhos expostos o seu ar brejeiro de demônio familiar. São estes os trabalhos dignos de nota. Os demais revelam apenas boa vontade. Na escultura o Sr. M. Velez traz um gesso bem estudado e interessante, mas acadêmico em excesso.

É um fauno grego com cabeça de menino africano e não um diabo. O outro gesso incide no mesmo juízo. É só. Minto. Há ainda o barro do Poá do Sr. Oliveira Filho, que não é escultor, mas compendiou em argila todos os característicos da sua concepção Sacisesca... Tem um mérito: foi o primeiro Saci modelado no país que o almirante Alvares descobriu por acaso em 1500 e que os aliados redescobriram agora por negócio. - M. L.

Ilustrações Originais

O SACI E AS PRETAS, aquarela de Richter, p.405.

O SACI E O CAIPIRA, aquarela de Richter, p.407.

A TRANÇA DA CRINA, medalhão em gesso de R. Cippichia, p.409.

O SACI E A CAVALHADA, quadro a óleo de R. Cippichia, p.411.