Oscar Guanabarino: Críticas à Exposição Geral de Belas Artes de 1884

contribuição de Fabiana Guerra Granjeia

Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/

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Edição de 1 de setembro de 1884 - Ano 63 - N. 240 - Jornal do Commercio - página 1

FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO

De 28 de agosto de 1884

A EXPOSIÇÃO DE BELLAS-ARTES

            Está aberta a exposição de Bellas-Artes[1].

            Mandão os estatutos da Academia que essas provas da nossa actividade artistica sejão apresentadas de dous em dous annos; entretanto, foi ha cinco annos a ultima; porém, não é sómente a falta dellas, que se deve lamentar, senão tambem a direcção que se lhes dá.

            Não nos parece, por exemplo, muito regular e consentaneo com o fim que se tem em vista com taes certamens artisticos a admissão de quadros que já estiverão expostos e forão discutidos e julgados. Ora, é, justamente, essa a primeira observação que nos occorre ao visitar as salas, onde figurão télas que não pertencem a colleção nacional especificada no catalogo.

            Poderia, entretanto, ser desculpada até certo ponto essa exhibição, se taes quadros se recommendassem como concepções raras ou, pelo menos, como obras exemptas de graves defeitos. Mas tal não se dá.

            Outro reparo que também accode ao visitante, e muito mais grave que o antecedente e é a facilidade com que se acertão certos trabalhos. Ha alli desenhos detestaveis, pinturas ridiculas e télas que revelão ausencia completa dos mais insignificantes conhecimentos rudimentaes da arte, e a mais decidida negação pelo seu cultivo.

            A importancia de uma exposição desta ordem não provém do numero de trabalhos offerecidos á vista do publico; provém, antes, da qualidade de cada um desses trabalhos considerados de per si.

            A admissão concedida por um jury severo ou não, deveria ser o primeiro estimulo para o expositor; e o segundo - os premios offerecidos pelo governo, e conferidos com toda a justiça e sem o menos vislumbre de sympathia.

            Feitas estas considerações entremos na apreciação das obras mais salientes.

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            Mas sob que ponto de vista encararemos a exposição? Rapidez

            Applicaremos ás nossas indagações as theorias complexas da critica ou estudaremos os trabalhos exhibidos de accôrdo com o meio actual? Benevolencia ou severidade? Eis o lado difficil da empreza.

            É certo que não podem haver mestres consummados e artistas irreprehensiveis onde a arte é tão descurada como aqui; mas tambem não é menos exacto que a mal entendida complacencia causa muitas vezes verdadeiros desastres.

            Dahi provém a necessidade de variar o processo indagativo; mesmo porque não seria justo nem razoavel, que se exigisse de discipulos aquillo que só deve ser esperado dos mestres ou dos que presumem sê-lo.

            Será, pois, sómente conforme os nomes dos autores que encararemos os diversos productos dos nossos artistas e amadores.

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            Fallaremos em primeiro lugar do Sr. Rodolpho Bernardelli[2] que, por conta da Academia estuda actualmente em Roma.

            É de caso pensado que encetamos o estudo das nossas impressões pela estatua, original em gesso, denominada A Faceira.

            Impossivel seria occultar que de tudo quanto vimos foi o que mais nos impressionou.

            Na mesma sala em que esta bellissima creação se ostenta, encontra-se a correctissima Venus Callipygia, cópia em marmore do original grego que se acha no Museu de Napoles, feita também pelo Sr. Bernardelli; porém mesmo assim, apezar daquellas fórmas serenas, macias e proporcionaes, postas em relevo e encarecidas pelo marmore, que tem enormes vantagens sobre o gesso, com material de estatuaria, a Faceira não perde com o confronto agradando muito desde o primeiro relance, de olhos, não só elegancia do conjuncto, como pela phisionomia altamente expressiva e de um cunho bem original.

            Não será um typo de bellesa, dessa bellesa convencional; mas é, com certesa, uma creação de grande merecimento como producto da escola realista, com todas as seducções do modernismo.

            A Venus Callipygia agrada porque é bella; a Faceira é bella porque agrada.

            A Venus é um attestado de uma época, de uma arte e de uma civilisação: tem todos os predicados da arte do seu tempo, e se nos apresenta sem o reclame de uma pose indagada e premeditada, sem a fascinação do olhar fulgurante e sem o sorriso contagioso da mulher galante.

            A Faceira ostenta muito propositalmente as suas formosuras, tem o olhar penetrante, a bocca entreabrindo-se n’um sorriso de meiguice; de rosto mais sympathico do que formoso, transmitte ao espectador uma impressão, talvez um pouco exagerada mas, com franquesa, muito duradoura e agradavel.

            A moderação dos movimentos e a sobriedade do gesto constituem, entretanto a primeira lei da estatuaria, poderão objectar.

            Responderemos que os grandes revolucionarios nas artes quebrão as leis tradiccionaes e conservão-se sempre ao lado da verdade.

            Com a denominação da estatua é que não nos concordamos inteiramente; quer parecer-nos que lhe assentaria melhor o de - Seductora.

            Quanto aos detalhes são elles tão evidentes que não nos demoraremos em assignalar o que claramente se manifesta ás naturezas mais frias e aos temperamentos mais refractarios ás grandes emoções perante a arte vivificada pelo sopro de um cultor de talento real.

            Voltemo-nos agora para o salão principal, onde vemos, em primeiro lugar, a téla do Sr. José Maria de Medeiros[3], professor de desenho figurado na Academia.

            Iracema, é o seu título, e o catalogo diz assim: - “Inquieta Iracema pela ausencia do esposo sahe em busca delle e chega á beira do lago, já quando as doces sombras da tarde vestião os campos. Encontrando alli fincada, na areia da praia, a flecha do guerreiro transpassando um guayamum, e de que pende um ramo de maracujá, enchem-se-lhe os olhos de lagrimas, interpretando as ordens que aquelle symbolo lhe revela - como o guayamum deve ella andar para traz, e como o maracujá, que guarda a flôr até morrer, conservar a lembrança do esposo.”

            “Sem volver o corpo nem desviar os olhos da symbolica flecha, a filha dos Tabajaras retrahe lentamente os passos.”

            Iracema, Alencar, Ceará, repetimos nós ao terminar a leitura, e por isso mesmo achamos que aquella paysagem não está de accôrdo com a verdade local nem com a discripção do catalogo.

            Nem o lago, nm[4] as sombras da tarde revestindo os campos. Vimos uma praia do Occeano, com as aguas de tom discordante das matizes do céo; o solo revestido de vegetação robusta mas não caracteristica das regiões do Ceará, e ao fundo uma ponta de rochas adiantando-se pelo mar quando naquella provincia, segundo cremos, esse mineral é importado.

            Fazemos uma idéa muito differente daquillo tudo; a praia de Copacabana talvez podesse dar ao Sr. Medeiros um local mais apropriado para a paysagem do que o imaginado pelo distincto professor da Academia.

            Mas este defeito será compensado pelo desenho da figura?

            Parece-nos que não.

            Iracema está completamente deslocada do seu centro de gravidade. Fazendo um movimento lento de recuar, acha-se com a perna direita fora da perpendicular devendo actuar o peso do corpo e forçosamente sobre o pé esquerdo que no emtanto não se appoia no chão.

            Notamos também ausencia de expressão phisionomica. O fundo em compensação, tem uma vegetação bem tratada, e[5] areia da praia é muito boa e o mar, soprado por viração fresca, encrespa-se com bastante naturalidade e fórma uma onda, quebrada em parte, que se move bem.

            Nas immediações desta téla achão-se agrupados os trabalhos da Sra. D. Abigail de Andrade[6], distincta amadora que já creou um nome digno do seu talento e do seu professor o Sr. Angelo Agostini[7].

            Promettêmos modificar a nossa severidade quando tratassemos de discipulos ou de amadores; achamos, porém, que a talentosa artista dispensa perfeitamente qualquer benevolencia e resiste com facilidade a um exame detido, profundo e severo, attentas as condições do meio em que se expande a sua actividade, e as influencias que, sobre as producções artisticas, exerce o temperamento de uma moça de muito pouca idade.

            São 14 as suas télas; mas destacão-se duas: - O cesto das compras e Um canto do meu atelier, que são dous excellentes estudos do natural.

            No primeiro, de um genero pouco attrahente, ha objectos tratados com mão muito segura. Apontaremos a gallinha, cujas pennas são de uma verdade incontestavel e de um desenho fóra do vulgar, a cebola, o cesto com a posta de carne, e o troco, que attrahe constantemente a attenção por causa da verdade com que estão pintados a nota suja e os nickeis.

            No segundo, de genero mais proprio ás suas condições, apezar do acanhamento do lugar copiado, e da excessiva agglomeração de objectos destacão-se com muito boa harmonia e excellente desenho o retrato da respeitavel tia da autora e a sua propria figura vista pelas costas trabalhando em frente ao seu cavallete.

            Ha muita harmonia na composição das duas figuras; e para dar certo realce, ou quebrar a monotonia do chão, estando as paredes guarnecidas com modelos, quadros, instrumentos musicaes e outros objectos de atelier, poz a artista com muita graça, uma mesa com uma jarra de flôres tiradas de uma cesta que repousa ainda no chão, contendo as que não servirão para o ramo.

            Bom colorido, vivo e brilhante, é o que se nota nesse trabalho; mas para que se não diga que elogiamos sómente, quando não é crivel que com pouca idade e muito pouco tempo de estudo se possa apresentar uma producção artistica, isenta de qualquer motivo de reparo, pedimos permissão para assignalar a igualdade nos processos empregados na reproducção de todos os objectos; referimo-nos ao toque, - que não é variado. Quizeramos que a madeira, por exemplo, não tivesse o mesmo pincel delicado com que forão traçadas as flores. Algumas durezas e alguns traços mais firmes dão ás vezes muita vida e calor ás figuras.

            Mas em todo caso: - Bravo!

            E como o espaço é limitado e a materia sobeja, daremos alguns saltos no catalogo para concluir as notas tomadas na primeira visita.

            Tratemos do Sr. Rodolpho Amoedo[8], alumno da Academia e pensionista em Pariz.

            Expõe 10 quadros.

            Agrada-nos o n. 276 - Tronco de mulher e 277  Meia figura[9], dous estudos do natural, de bôa côr e bastante desenho.

            Além dessas duas télas, encontramos quatro cabeças de estudo; são inferiores às duas cópias dos originaes de Ribeira[10] e de Pagnest[11], S. Paulo Eremita e O Tronco.

            Resta-nos - Marabá e O Ultimo dos Tamoyos.

            A primeira devia representar um typo de raça mestiça, mas o seu colorido está muito longe d’isso. Quanto á execução dir-se-hia que o tronco foi copiado de um modelo que não concluio o numero necessario de sessões para o acabamento da obra, recorrendo o pintor a outro modelo para obter um par de pernas que por felicidade estão encolhidas.

            A tradição diz-nos que os indigenas não se casavão com as marabás; se a cópia do natural fosse de uma authentica, de uma verdadeira representante do typo, poderíamos concluir que a repugnancia desses selvagens era devida ás formas desproporcionadas daquella gente e á enfermidade, não menos deformante, da anchylose, sendo certo que nesta pobre mestiça o joelho tem o volume de uma bala de artilharia antiga de calibre 68.

            O segundo já figurou em uma exposição de Pariz, e o gracioso folhetinista do Ver, ouvir e contar[12] fez algumas judiciosas observações sobre o vulto do Anchieta, representado como Capuchinho, quando era Jesuita.

            Além desse peccado historico ahi está o immortal poeta brazileiro - Magalhães[13], que no seu poema - A Confederação dos Tamoyos, nos diz:

            “Quando no dia crastino os valentes

            Companheiros dos Sás, já destas plagas,

            Que Anchieta abençoara, se apossárão,

            E a S. Sebastião um templo erguerão;

            Virão nas ondas fluctuar dous corpos,

            Que o mar na enchente arremessára ás praias.

            De Aimbire e de Iguassú os corpos erão!

            Vi-os Anchieta com chorosos olhos;

            Para terra os tirou, e nessa praia,

            Que inda depois de mortos abraçavão,

            Sepultura lhes deu p’ra sempre unidos!”

            No entanto a téla representa apenas um indio e esse mesmo com muitos poucos acessorios e quasi sem detalhes.

            A tradição nos obriga a procurar o corpo de Iguassú, mas em vão. Debalde percorre-se todo o quadro esperando ver indicado em algum ponto, ainda mesmo remoto, o vulto da companheira de Aimbire.

            Não póde, pois, ser considerado como um quadro historico, por isso que lhe falta uma das condições essenciaes - a verdade.

            Á esquerda da maior téla do Sr. Amoedo está a melhor composição do Sr. Augusto Rodrigues Duarte - As exequias de Atalá, que já foi julgado.

            Apresenta-nos ainda uma collecção de retratos que não agrada; um bom estudo de fructas; uma paisagem[14] bem tocada - a Lagôa nas margens do Parahyba, superior ao n. 68 que é do mesmo assumpto e genero; o Militar pensativo, de boa execução; um estudo de interior muito bem acabado e de bastante merecimento, attentas as innumeraveis difficuldades do scenario reproduzido.

            Vimos em seguida tres estudos do natural feitos por tres estreiantes, filhas do Sr. Dias Machado, que occultárão os seus nomes no catalogo. Excessiva modestia. São dignas de animação, porque revelão muito talento, sobretudo a que expôz os ananazes. Mas não se contentem com isso. O que apresentão é relativamente bom, mas pouco ainda.

            Do Sr. Grimm[15], que é um bom e consciencioso artista, encontramos quatro paysagens; não sabemos se já estiverão expostas. Agrada-nos em primeiro lugar a Vista do Cavallão, superior ao panorama da cidade do Rio de Janeiro e ás outras duas que representão a Boa Viagem e a Ponta do Icarahy.

            Todos elles são de bom desenho, tóque original e mais ou menos bem acabados; mas o effeito seria outro se o Sr. Grimm procurasse reproduzi-los com côres mais verdadeiras, mais tropicaes, mais nossas.

            Vivemos n’um occeano de luz; aqui as paysagens estão continuamente iriadas por uns tons festivos e cheios de encanto.

            Todas as suas télas são novas, mas parecem ter já grande numero de annos. Cremos que o seu autor prepara as suas meias tintas misturando as côres com o preto; d’ahi provém, talvez, o tom sujo dos seus quadros que perdem muito com este processo feio de colorido antigo.

            Terminaremos, por hoje, o resumo das nossas impressões pelos dous trabalhos do Sr. Driendl[16] - Uma scena da Baviera e um retrato.

            Fallaremos do ultimo porquanto o primeiro já é bem conhecido.

            A téla representa o Sr. Dr. Ferreira Vianna.

            Duas são as ordens de considerações que despertão este trabalho de merecimento real: o desenho e pintura de um lado, e a composição sob o ponto de vista esthetico.

            Encarado como obra do talento artistico e poetico, não podemos deixar de patentear o nosso enthusiasmo pelo pincel do Sr. Driendl.

            A excepção da carne, que os pintores raramente conseguem com exactidão, temos alli um conjuncto perfeitamente delineado, um estudo bem dirigido e uma composição notavel.

            Á primeira vista somos attrahidos pela luz viva e diaphana que de cima vem banhar parte da figura, mas logo após somos arrastados pelos acessorios do quadro.

            Com facilidade a vista penetra entre os objectos, sendo reconduzida machinalmente ao objectivo principal, para desviar-se outra vez e tornar a voltar, de accôrdo com as leis estabelecidas para os agrupamentos.

            Mas não podemos crer que aquillo seja um retrato.

            É antes um estudo do natural em que o modelo foi o Sr. Dr. Ferreira Vianna.

            E tanto assim que o visitante que não ler o catalogo, ou não conhecer a pessoa do retratado, vendo aquella figura perguntará:

            - Que santo é este?

            E hoje que o estylo antigo vai perdendo terreno; hoje que as scenas do realismo vão tomando o campo das pinturas sacras, difficilmente se póde aceitar aquella composição como o retrato de um contemporaneo, que alli no parlamento discute os orçamentos do Imperio e faz discursos de recepção aos novos ministerios.

            E até breve. Voltaremos ao assumpto para tratar dos trabalhos do Sr. Pedro Americo e outros.

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Edição de 1 de setembro de 1884 - Ano 63 - N. 244 - Jornal do Commercio - página 1

FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO

De 1 de setembro de 1884

A EXPOSIÇÃO DAS BELLAS ARTES

II

            Encetamos hoje as nossas considerações pelas onze télas, quasi todas de grandes dimensões, expostas pelo Sr. Pedro Americo[17].

            Comprehende-se facilmente qual deve ser o nosso acanhamento, referindo-nos aos trabalhos do professor de história das bellas-artes, esthetica e archeologia da academia.

            E não são sómente esses titulos, que nos intimidão. A nomeada, até certo ponto justa, que o Sr. Pedro Américo adquirio entre nós, atirando para o segundo plano quasi todos os seus collegas e competidores, alguns dos quaes tão talentosos, porém menos felizes do que S. S., é também uma causa poderosa do receio com que pomos hombros á tarefa.

            Valha-nos, porém, a intenção, que não póde ser melhor.

            Em ultima analyse, como é de um professor de esthetica e archeologia que se trata, tomem-se as nossas apreciações como simples exposição de um examinando, frente a frente com o seu severo examinador, e, se não têm razão de ser os nossos reparos, dêm-nos nota .

            Fallaremos em primeiro lugar da Joanna d’Arc.

            Bom desenho e expressão bem estudada. A figura é de uma rapariga, de joelhos, copiada ao ar livre, com luz bastante e bem diffundida.

            O pintor procurou representar o momento em que a heroina d’Orléans ouve, pela primeira vez, a voz que lhe prediz o seu alto destino, e conseguio o seu intento; mas reprovamos em absoluto a lembrança de apresentar a figura do espirito no fundo do quadro, não só porque naquella posição ela não póde vê-lo, como principalmente porque taes visões e taes vozes não erão mais do que illusões auditivas ou visuaes, só percebidas pelo estado de excitação em que vivia a pastora de Domremy:

            Se qualquer de nós presenciasse alguns dos accessos de hysterismo, em que Joanna d’Arc era sobresaltada pelas suas hallucinações, com certeza não veria aquillo que só se manifestava em seu exaltado cerebro. - É portanto uma inutilidade, senão cousa peior, aquelle espantalho no fundo de tão boa scena.

            E Deus nos livre que fosse necessario reproduzia[18] no fundo das télas o que vai pela imaginação dar[19] figuras dos quadros.

            Não nos passou, tambem, despercebido o vestido da donzella camponeza que em 1428, pouco mais ou menos, já usava os babados de plissées da moda actual; nem deixamos tambem de estranhar que aquella modesta creatura, toda entregue ao amor da patria, cultivasse begoneas, em vasos, planta de muita estimação hoje em dia, é certo, mas desconhecida naquelle tempo.

            Estas inverdades na téla do professor de archeologia puzerão-nos de sobreaviso em relação aos accessorios dos seus quadros. Por exemplo, com o n. 250.

            O catalogo traz uma nota explicativa, que faz crer, á primeira vista, que se trata de algum assumpto um tanto escabroso; lembrando-nos, porém, que é simplesmente um episodio da história sagrada, que se ensina nos collegios á mocidade e á innocencia não trepidámos em examinar detidamente o quadro.

            A preoccupação, que nos deixárão no espirito os plissés e as begonias de Joanna d’Arc, induzio-nos a olhar muito seriamente para as sandalias de David, para a lyra, para o thuribulo e para o pannejamento; e quanto mais olhavamos, mais ficavamos em duvida se aquelles objectos forão do tempo daquelle rei propheta, que viveu mil e tantos annos antes da nossa éra.

            Pareceu-nos tudo aquillo mais grego do que judaico, com excepção apenas dos pannos, que esses ou são modernos ou de pura fantasia.

            David levou para Jerusalem costumes e tradições dos Israelitas, e as suas artes e industrias devião ser rudimentaes.

            É certo que a Palestina teve relações com outros povos; mas isso parece ter sido depois que Salomão mandou construir o seu famoso templo, empregando nelle artistas estrangeiros e estabelecendo o commercio com a India e com a Africa, tornando-se assim a Palestina centro da civilisação da Asia Occidental.

            Dahi em diante toda a influencia grega é possível; antes não. Deus queira que estejamos em erro, para maior gloria do professor de archeologia.

            Dando de mão ás considerações históricas, vejamos o trabalho como simples quadro.

            Parece-nos um tanto exagerada a physionomia do velho David, e sem razão de ser aquellas caimbras que lhe atacárão as mãos. Parece mais estar horrorisado à vista de um phantasma, do que recebendo as influencias thermicas de Abisag, como quer o catalogo.

            Notamos ainda o facto, bem singular, de ter a joven[20] Abisag mais moreno o corpo do que o rosto. Abuso do pó de arroz, naturalmente.

            Outra singularidade, e esta referente á composição: ponha-se o quadro em outra posição, de modo a ficarem as duas figuras no sentido vertical e dir-se-hia que estão voando.

            Não se pense, entretanto, que somos pessimista ou temos qualquer prevenção contra o illustre e illustrado artista. Tanto não se dá nenhuma das duas hypotheses, que achamos muito bem pintadas todas as suas télas.

            Seria igual o nosso enthusiasmo no tocante ao desenho, se as linhas dos membros inferiores do corpo de Abisag não fossem tão exageradas.

            Encontramos ainda outro quadro biblico: Judith rendendo graças a Jehovah por ter libertado a sua patria dos furores de Holophernes.

            É esta uma téla de grande effeito, antes de ser analysada por miudo.

            A figura tem uma bella cabeça e a sua attitude é de bonito lance e gesto largo.

            A physionomia, porém, não tem nenhum traço caracteristico indicador de que aquella mulher fosse capaz de cortar a cabeça de nenhum homem, ainda mesmo que elle estivesse, como o general de Nabuchodonosor, sob a influencia de uma embriaguez.

            A heroina da Bethulia era uma viuva, ao passo que a Judith do Sr. Pedro Americo parece ser uma mulher ainda muito nova; por isso, quando vimos o quadro pela primeira vez, julgámos que estavamos diante de Salomé, dansando ainda, depois de ter recebido a cabeça de S. João Baptista.

            Este equivoco da nossa parte tem plena justificação na propria figura d[21] Judia[22], que está resplendente de luz diurna. Tendo occorrido á noite o facto attribuido á heroina da Bethulia, podiamos nós, acaso, suspeitar que aquella era a Judith, de que nos falla a tradição?

            Não de certo, comquanto veja-se no quadro uma tenda com a sua candeia acesa e o céo denunciando apenas os primeiros momentos do crepusculo!

            Esta contradicção é causada pela preoccupação constante, que tem o Sr. Pedro Americo, de querer impôr-se sómente pelas côres, sacrificando a arte ao material da própria arte. Se a sua scena fosse pintada, como deveria sê-lo, com os effeitos da noite, Judith não teria as pompas do seu brilhante vestuario, e o bonito effeito da téla ficaria prejudicado, no entender do nosso pintor.

            Não levem a mal os admiradores do talentoso artista estas nossas observações, que podem parecer a alguns demasiado severas. Estamos seguindo á risca o nosso programma: exigindo de cada um o que de cada um temos o direito de esperar pela posição que occupa na escala artistica.

            Vimos o retrato de D. João IV, infante, que não nos deixou nenhuma impressão muito agradavel. Outrotanto não dizemos da menina em costume de 1600, na Hespanha. Agradou-nos, pela sua posição bem estudada.

            D. Catharina de Athayde, que não tivemos a honra de conhecer, pareceu-nos muito dura.

            Na variada colleção do Sr. Pedro Americo figura tambem uma Carioca, reproducção, com variantes, do quadro deste nome, do mesmo autor. Só conhecemos este, mas com certeza havemos de gostar mais do outro.

            “A noite, acompanhada pelos genios do estudo e do amor” é um bonito trabalho. É uma composição allegorica, em que a imaginação um tanto fogosa do mestre de esthetica tem campo para divagar á vontade.

            Se aquelle grupo é perfeitamente original, e não temos razão para deixar de crê-lo, o quadro é de muito valor.

            A figura principal está graciosamente lançada no espaço; tem fórmas agradaveis, e é de muito boa composição. O véo preto, mas transparente, que lhe cobre a metade do corpo, tem dobras leves e de muita naturalidade.

            De toda a colleção é este o quadro que mais impressiona, e quanto mais attentamente é examinado mais atractivos tem, pela vida e movimento que ostenta.

            Não se notão nelle as côres exageradas, que predominão geralmente nos trabalhos do professor de esthetica da academia; tendo, por isso, um tom suave, que deixa em relevo o bem desenhado grupo.

            Temos ainda dous quadros muito bons, e com a particularidade de serem d’après nature: um estudo de perfil, e a Rabequista arabe.

            Para nós, que não temos grandes pretenções e apenas baseamos a nossa critica em questões meramente intuitivas ou nas regras mais ou menos geraes da arte, é fóra de duvida que estas duas télas são as de mais merecimento de quantas expoz o Sr,[23] Pedro Americo.

            O perfil de menina é muito bem tratado, e como estudo tem incontestavel merecimento: agrada-nos, porém, mais ainda, talvez por causa do assumpto, - a Rabequista.

            Que bello typo! Sua tez morena é de naturalidade felicissima, e a composição de muito effeito. Representa uma menina de 15 annos talvez, com olhos negros, grandes, bem rasgados, physionomia sympathica e expressão meiga. Está de pé, envolta em manto branco, que põe em relevo a sua côr tropical, e sustenta o violino em posição vertical, apoiado sobre o botão do estandarte; a mão esquerda desenvolve os dedos pelas cordas, sem comprimi-las, emquanto a direita sustenta o arco em posição conveniente.

            O instrumento é perfeitamente reproduzido, de muito boa perspectiva e colorido verdadeiro. O quadro poderia offerecer um bom estudo para a mão esquerda, mas esta está mollemente desenhada e mesmo repousando um pouco sobre as ilhargas do violino.

            A figura, como já dissemos, está envolta em um manto branco, e tem na cabeça um gorro vermelho; mas este conjunto se projecta sobre um fundo de reposteiro de côres vivas, em que predomina um tom de ouro muito brilhante.

            Este pannejamento faz logo lembrar as roupas de Judith; é o mesmo tecido, sem tirar nem pôr.

            A não ser este inconveniente, que aliás é talvez de pouca monta, gostamos francamente desta téla.

            Poderíamos dizer ainda muita cousa sobre esta collecção; mas não o faremos, por causa do grande numero de trabalhos expostos, de muitos dos quaes não podemos deixar de fallar.

            O Sr. José Ferraz de Almeida Junior[24] apresentou quatro quadros: Fuga da Sacra Familia para o Egypto, o Descanso do modelo, Remorso de Judas Iscariotes e O derrubador brazileiro.

            Este úutimo não nos agrada. O assumpto do quadro e o typo reproduzido exigião uma composição valente e não aquillo.

            E é pena, porque encontrão-se algumas cousas boas nesse trabalho.

            A fuga agrada tambem em parte. A cabeça da Virgem e o corpo do menino são bem illuminados e bem feitos; mas a agua, em que se reflecte uma luz muito intensa, dá uma idéa do que póde ser uma poça de mercurio.

            O animal que transportou os viajantes é incomprehensivel. Tem, por exemplo, uma perna que parece uma estaca de páo, e da cabeça não fallemos.

            O Judas Iscariotes é um bonito quadro, como desenho; o tom, porém, não é dos mais attrahentes.

            O Descanso do modelo é um bom quadro da escola realista.

            Gostamos muito da mulher ao piano. A sua posição é muito bem estudada e natural. Os acessorios são bem tratados; e a figura do pintor bem desenhada. Sómente notamos que esta personagem, que este[25] applaudindo o modelo, transformada em pianista, tem as mãos em tal posição, relativa á sombra, que parece estar abrindo uma boceta de rapé.

            Ainda assim, o Sr. Almeida Junior é um dos melhores expositores nacionaes, e lamentamos que não esteja na Europa, trabalhando ao lado dos Srs. Amoedo, moço de tanto futuro, ou de Decio Villares[26], tambem talentoso, mas de quem só temos actualmente um retrato, copiado do original de Van-Dick, e isso mesmo por offerta do Sr. Pedro Americo.

            O Sr. Rouêde[27] tem os seus quadros collocados por baixo dos ultimos de que tratámos.

            Ha muito tempo conhecemos este pintor, que expõe repetidamente as suas marinhas.

            Entre as seis que apresenta, gostamos mais, (para não dizer sómente) da bahia do Rio de Janeiro, pintada em 11 minutos, n’uma kermesse desta cidade.

            Alguma pessoa mal intencionada será capaz de dizer que este é realmente o melhor, por não ter tido tempo o artista para estraga-lo; nós, pela nossa parte, só aconselhamos ao Sr. Rouêde que pinte só em poucos minutos, e quanto menos minutos melhor, para si e para nós.

            Finalisamos hoje as nossas apreciações referindo-nos ao Sr. Firmino Monteiro[28], moço de muitas esperanças, inspirado sempre no patriotico desejo de perpetuar os factos da nossa historia e guardar na téla os typos que d’entre nós vão desapparecendo.

            Encontramos no catálogo 25 numeros, muitos dos quaes, ou quasi todos, estiverão, ha pouco, expostos na casa do Sr. Insley Pacheco[29], sendo então devidamente apreciados não só da imprensa diaria, como pelas numerosas pessoas que alli forão vê-los.

            Procuraremos fazer aqui um pequeno estudo comparativo entre os seus antigos trabalhos pertencentes á academia, e os modernos, feitos depois da sua viagem á Europa, destacando d’entre estes os dous ultimos, os mais recentes, que são os que devem ser considerados como os da exposição actual.

            É grande a differença que se nota no colorido das suas paisagens.

            Os dous quadros que fazem parte da collecção de pintura nacional são muito mais quentes do que os actuaes. Estes, em geral, são amortecidos, sendo isso o resultado de um máo gosto de que se impressionou na Europa, e principalmente em Pariz. Essa mudança no modo de pintar já se podia prever, pela evolução levemente anunciada na Fundação da cidade do Rio de Janeiro[30].

            Entretanto, se a côr é pouca nos seus quadros, não está ella de todo perdida: consola-nos isso quando vemos as suas Barreiras[31] e o Effeito de meio-dia no porto do Rio de Janeiro.

            Em compensação, as figuras, que então erão insignificantes, ganhárão extraordinariamente no quadro da fundação e apresentão-se hoje muito melhoradas.

            O Sr. Monteiro dedica-se a quatro generos de pintura: historica, paisagem, costumes e de genero; e a sua individualidade, dependente de uma resolução, está sendo demorada por esta indecisão, que não póde ser prolongada.

            Como pintor de genero parece ter o Sr. Monteiro grande futuro diante de si.

            Os seus dous quadros Vidigal e o capitão João Homem são prova do que avançamos.

            O primeiro é muito conhecido; o segundo foi concluido nas vesperas desta exposição.

            A seu respeito diz o catalogo:

            “Costumava o Conde da Cunha assistir á chegada dos tijolos para a construcção da casa d’armas da fortaleza da Conceição, e, tendo visto, por varias vezes, o capitão João Homem divertindo-se, em vez de trabalhar, fê-lo um dia vir á sua presença, vestido de chambre e touca de babados, como se achava, e obrigou-o a carregar tijolos.”

            No quadro vê-se a figura pretenciosa do conde em attitude arrogante, e o pobre do capitão, desesperado pela ordem arbitraria e alvo da risota dos soldados que assistem á scena.

            É um bom quadro, mas não tão bom como o de Vidigal.

            Como pintor de costumes não encontramos, nos seus trabalhos nada de novo; não acontece, porém, o mesmo com o tragico episodio da Retirada da Laguna, em que uma pobre mulher, mulher de soldado, alquebrada pelas lutas, afadigada pelas privações, pelas marchas forçadas e vestida pobremente, vê o seu marido cahir victima da sanha dos inimigos e a vida do seu filhinho ameaçada pelos Paraguayos. Cheia de energia, impellida pelo instincto de mãi, toma a arma e com ella se defende dos ferozes perseguidores.

            O momento escolhido pelo pintor é quando o nosso exercito já vai longe. O soldado morto entre as moitas de capim é bem estudado no natural; a mulher tem uma physionomia que muito bem exprime o que lhe vai n’alma. Está com a arma em posição de quem a retirou da pontaria, e as suas mãos, maltratadas pelos serviços rudes, apertão convulsamente a espingarda.

            É de um bello contraste aquelle conjunto, que nos,[32] dá a frieza de um cadaver, a luta de uma mulher varonil e a criancinha chorosa, agarrando-se ás vestes de sua mãi.

            A execução em nada desmerece o assumpto, composto com muita arte e perfeitamente inspirado.

            A paisagem, pobre, mas propria, é considerada e tratada como assumpto muito secundario neste quadro.

            Ao vermos a téla original do nosso modesto artista não podemos conter um bravo!

*          *          *

Edição de 26 de setembro de 1884 - Jornal do Commercio - Ano 63 N. 269 - página 1
FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO

BELLAS-ARTES

Rio, 25 de Setembro de 1884.

            Encontrão-se em uma das salas da exposição de Bellas-Artes amostras de diversos processos photographicos.

            Eu poderia perguntar aos Srs. directores da Academia se pelos seus estatutos é considerada a photographia como ramo das bellas-artes; mas, tendo tambem visto, ao lado das photographias e dos esmaltes, trabalhos de xilographia e até mesmo de calligraphia, não me animo a fazer a pergunta.

            Mas, como o meu intuito é analysar a exposição, e taes objectos forão aceitos pela academia, não deixarei de referir-me a elles, sem deixar, por isso, de considera-los, como devem sê-lo, isto é: meros produtos industriaes.

            A photographia é, ninguem o desconhece, uma verdadeira maravilha, que se presta a numerosas applicações; mas tambem não é menos verdade que tudo quanto ella produz é tão sómente resultante de certos phenomenos physicos e reacções chimicas.

            Dá-se o mesmo com o esmalte. Com bons clichés positivos, alguma pratica e um forno capaz de vitrificar os corpos expostos á sua acção, póde qualquer pessoa fazer esmaltes.

            A maior difficuldade que encontrão na pratica os que se dedicão a estas industrias, não fallando do elevado preço dos materiaes, é a má fé de certos autores de tratados, os quaes publicão as fórmulas erradas, dando assim aos inexperientes prejuizos não pequenos, tanto de dinheiro, como de tempo.

            Mas deixemos estas divagações e entremos na analyse dos productos de taes industrias, seguindo a ordem adoptada no catalogo da exposição.

            Estão em primeiro lugar os Srs. Carneiro & Tavares com os seus retratos “em esmalte, vitrificados como as porcellanas de Sèvres” (dizem os expositores).

            Pois sejão como - as porcellanas de Sèvres - já que assim o querem, mas com esta só differença: a porcellana de Sèvres é trabalho artistico, ao passo que nos retratos desses expositores e de outros quem trabalha é - a camara escura.

            Como execução industrial, afigura-se-nos que a vitrificação dos retratos, expostos pelos Srs. Carneiro & Tavares, está ainda um pouco arredada da perfeição a que tem chegado este ramo da photographia.

            Vimos tambem nesse primeiro grupo alguns retratos que, no dizer do catalogo, são obtidos pelo processo denominado platinotypia, e verificámos, com admiração não pequena, que são muito parecidos, mesmo muito, com os trabalhos feitos com a ponta do pincel e tinta da China.

            O Sr. José Ferreira Guimarães expoz tambem esmaltes, platinotypos e algumas photographias instantaneas, obtidas pelo processo denominado - gelatino-bromureto de prata.

            São os mais perfeitos que se fazem entre nós.

Seus tons são variados e o claro-escuro bem tratado.

            O grande retrato n. 411 por si só basta para recommendar o Sr. Guimarães.

            Gostámos tambem dos menores de côr preta; porém nos de ns. 412 e 414 notámos alguma dureza nos cabellos, inconveniente aliás facil de evitar.

            As provas de platinotypia são inferiores aos esmaltes, por isso que carecem de relevo e nitidez.

            Dir-se-hia que se achão entranhados na massa do papel.

            Este defeito é naturalmente devido á decomposição dos agentes empregados no preparo do papel, que, importado, se estraga em muito pouco tempo, apezar de todos os cuidados empregados para preserva-los da acção da luz e da humidade.

            Parece, entretanto, que esse inconveniente já não deve preoccupar aquelles que se dedicão á platinotypia, porquanto, segundo se vê de uma declaração feita pelo Sr. Insley Pacheco á imprensa, o segredo desse preparo está descoberto e publicado.

            Tanto melhor, e sejão de uma vez para sempre abandonados os processos da albumina, tão em voga, mas sem nenhum valor pela sua alterabilidade.

            Gostámos igualmente das provas instantaneas do Sr. Guimarães; mas nesta especialidade, forçoso é confessar, ninguém póde competir aqui com o Sr. Marcos Ferrez.

            Os cavallos e os navios em movimento são muito bons; parece-nos, entretanto, que as vegetações obtidas pela platinotypia são um tanto monotonas.

            Em uma sala proxima desta encontrão-se os ultimos quadros remettidos da Europa pelo nosso compatriota Sr. Amoedo, que, na qualidade de pensionista da Academia, estuda actualmente em Pariz.

            Comquanto alguns dos trabalhos, já expostos e julgados, deixassem vêr quanto devemos esperar de tão esperançoso talento, soprendérão-nos as ultimas télas vindas, especialmente as da Partida de Jacob e Estudo de Mulher, que são de subido valor.

            O primeiro é um quadro de bons effeitos, em que se vê claramente a intenção de reproduzir um momento do crepusculo.

            O ar do fundo, illuminado por um resto de luz quente, é de muita felicidade como toque.

            O pastor, que está parado no fundo da scena, contrasta com o rebanho de carneiros que se precipita por uma porta aberta. No primeiro plano duas figuras, muito bem desenhadas, despertão desde o primeiro instante a mais viva sympathia do espectador.

            A composição é boa, bem estudada e acabada com cuidado.

            O segundo, o Estudo de Mulher, é o trabalho mais delicado que temos visto neste gênero entre nós, e a mais exata reproducção da côr da carne humana.

            O tom roseo que predomina em toda a figura talvez pareça um tanto exagerado aos que estão habituados a vêr as falsas côres do nú, que geralmente se nos apresentão.

            A bella figura representa uma mulher sobre um divan, deitada, de costas para o espectador; a cabeça apoia-se sobre uma ampla almofada, e a mão esquerda, pendente, segura uma ventarola de palmeira.

            O fundo do quadro é uma parede que parece forrada com um panno velho de igreja. Á primeira vista julga-se ser um esboço ligeiramente trabalhado; mas isto em nada prejudica o modo magistral com que foi modelada a figura da mulher.

            A cabeça, os cabellos, o tronco, as pernas, os pés, tudo emfim denuncia acurado estudo e vontade firme de vencer algumas difficuldades sérias, como, por exemplo, esta: fazer destacar os pés, que são de uma finura extrema, sobre as dobras de uma colcha de nobreza clara.

            Mas ainda não é tudo. O Sr. Amoedo não sombreou a sua figura com esse escuro azulado com que se costuma sujar um corpo limpo e banhado de intensa luz. A mimosa côr de rosa pallida impera em todo o corpo, modificando-se aqui, alli, para contornar os membros ou accentuar um musculo.

            Talvez pareção exageradas certas linhas desse corpo nú; mas, como não se trata de uma creação, porém sim da reproducção da um modelo vivo, nada temos que vêr com isso. E ainda que tivessemos, a molleza daquella carnadura e a flexibilidade de todos os seus membros fazem desculpar esse defeito, se defeito é.

            Todo o quadro tem muita luz e sobretudo muito ar (duas qualidades excellentes). E os accessorios são de tal ordem que não podem passar desapercebidos.

            Atrahem muito a attenção do observador a ventarola, o tapete, a colcha, a almofada de seda bordada, tudo feito com muito capricho e muita delicadeza.

            Tem, no emtanto, esta bellissima tela uma sombra que não comprehendemos. Acompanha ella a parte do corpo que repousa sobre o divan e sobe, formando uma pequena ruga, até á axilla. Tendo sido todos os relevos do corpo obtidos pela modificação do tom geral, não sabemos porque não procedeu ahi o artista do mesmo modo.

            O esboço do quadro Jesus Christo em Capharnaum promette uma boa tela; pena é, porém, que os assumptos como esse já estejão tão explorados.

            Diz o Sr. Amoedo que pintará este quadro se obtiver prorogação do prazo de sua pensão na Europa. E como vimos que o nosso governo mandou comprar um esmalte por 2:000$, representando um quadro que não tem grande valor; como vimos, tambem, ser autorizado o Sr. director da Academia para comprar por 1:000$ a colleção de parasitas, em aquarella, pintadas por uma amadora que, apezar do seu talento, não póde competir com outros amadores e artistas que temos, não duvidamos assegurar que o Sr. Amoedo obterá a prorogação pedida.

            Ninguem mais do que elle merece esse favor.

            Eis, sem refolhos, qual a nossa opinião a respeito dos trabalhos de tão novel quão esperançoso artista. O publico que vai vêr a exposição, e nomeadamente as pessoas en tendidas[33], que têm examinado com attenção as telas ultimamente vindas da Europa, dirão se são descahidos os nossos encomios e reparos.

            Se alguem destoar do nosso pensar, diga-o com franqueza e procure convencer-nos, tarefa aliás facil, pois não ha da nossa parte o menor empenho de persistir no erro.

            Mas, por Deus! se o fizer, faça-o com mais razão e principalmente mais geito, do que esse estouvado defensor do Sr. Dr. Pedro Americo, que publicou em não sei qual das folhas diarias um artigo com a data de 2 de Agosto, em vez de 2 de Setembro, como devêra ser, a menos que não tivesse vindo o escripto de alguma localidade tão distante, daqui para o sul, como daqui para Pernambuco.

            Havendo nós apresentado diversos senões em varios trabalhos do professor de esthetica da Academia de Bellas Artes, e não tendo dito o defensor procurado contestar senão alguns, podemos concluir que achou perfeitamente cabidas as nossas palavras com referencia aos outros, mesmo porque, segundo se collige do seu artigo, tem preciosamente guardada na gaveta a collecção completa dos jornaes que têm entretecido a grinalda de louros que cinge a fronte do nosso pharol (sic).

            Se nesses jornaes houvesse alguns argumentos que pudessem servir de defeza, o dedicado escriptor não teria certamente deixado de aponta-los. Se não o fez, é porque não os encontrou, e se não os encontrou, é porque não os ha.

            Ficão, pois, de pé os ditos nossos reparos.

            Vejamos agora os outros, os que soffrerão contestação da parte de S. S.

            Cifrou-se essa contestação quasi exclusivamente na transcripção de varios artigos de folhas estrangeiras, da tal collecção a que nos referimos supra.

            Para prova do que valem por vezes certos louvores da imprensa européa apontarei apenas este: referindo-se ao Abisag, disse um jornal de lá que o Dr. Pedro Americo é um provecto pintor do .

            E accrescentou (imagine-se com que cara escreveria elle isso!...) accrescentou que “daquellas pelles apparelhadas, daquelles collares, daquellas alfaias exhula-se um perfume oriental.”

            Que força de boa vontade!

            Mas deixemos as transcripções e vamos á contestação manipulada pelo autor do artigo; examinemos os argumentos de sua propria lavra, com que intentou “lavrar um protesto contra o vandalismo com que no nosso paiz se costuma profanar o que mais devêra ser acatado e respeitado” (palavras textuaes).

            Trata-se das begoneas e os plissés da Joanna d’Arc.

            Diz o defensor do Dr. Pedro Americo que o que vimos no trabalho do professor de archeologia não são begoneas, porém sim pelargoniums, planta da familia das geraminas.

            Dar-se-hia o caso que tivessemos visto mal? Nessa duvida, bem natural no critico de boa fé, voltámos á exposição, tornámos a parar diante do quadro e lá encontrámos effectivamente um vaso com begoneas.

            Ha tambem, é certo, outro vaso com uma planta que parece ser pelargonium, da familia das geraniaceas, se me dá licença; mas ainda assim, ainda mesmo que não houvesse alli nenhuma begonea, mas simplesmente pelargoniums, não seria menor o cochilo do professor de archeologia da Academia de Bellas Artes.

            Não teria cochilado para a direita, como dissemos, mas para a esquerda; eis a verdade.

            Os pelargoneos são oriundos da Africa austral e da Australia; são plantas obtidas pela hybridação artificial e cultivadas em estufas.

            Ora, a hybridação só foi descoberta por Bradley em 1726, e a scena de Joanna d’Arc passou-se em 1428, pouco mais ou menos.

            Não houve, portanto, um cochilo, houve dous. Isto quanto ás plantas.

            Vejamos agora os plissés.

            O desastrado defensor do Dr. Pedro Americo manda-nos lêr a obra do Dr. Ferrario.

            É boa essa! Se foi justamente por termos manuseado com toda a attenção e paciencia o 5o volume desta obra, referente á França, que achámos thema para censura!

            Porém não ficámos nisso. Vejão o Dr. Pedro Americo e seu infeliz defensor até que ponto levamos o nosso escrupulo em materia de critica.

            Pareceu-nos tão grave o descuido do professor de archeologia, que por algumas horas chegámos a crêr que era mais natural que fosse incompleta nessa parte a obra do Dr. Ferrario, do que se houvesse enganado por tal modo o Dr. Pedro Americo.

            Não nos contentámos, por isso, com o silencio desse erudito escriptor; quizemos outras provas e fomos encontra-las em Cesare Vecello e em Paz[34] Mercuri.

            E, dito isto, fechamos o presente folhetim com as seguintes palavras do proprio defensor do Sr. Pedro Americo:

            “Não basta viajar; é preciso estudar.”

            E estudar muito, accrescentamos nós.

*          *          *

Edição de 17 de outubro de 1884 - Jornal do Commercio - Ano 63 - N. 290 - página 1

FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO

de 17 de Outubro de 1884

BELLAS ARTES

            Começaremos hoje a nossa analyse pelos quadros do Sr. Aurelio de Figueiredo.

            Este pintor expoz 21 telas, de diversos generos, das quaes, parece-nos, deve occupar o primeiro lugar e que se acha no ultimo do catalogo: Nynpha e Satyro.

            É uma boa cópia do original de Carrache, em que se revela o talento do Sr. Aurelio de Figueiredo; mas comparado este quadro com os outros que S. S. expoz, o que se conclue é que o novel artista ainda não póde dispensar um professor que o guie, corrigindo-lhe as exagerações, e industriando-o nas theorias da perspectiva.

            Se o tempo empregado na execução de tantos quadros tivesse sido aproveitado no estudo de um só, com certeza teriamos agora o ensejo de tecer elogios a S. S.; mas, infelizmente, o desejo de produzir muito leva-o a pintar com um açodamento que não o deixa tratar com o conveniente desvelo artistico os assumptos que intenta reproduzir na téla. Dahi os senões que se notão nos seus trabalhos.

            O quadro intitulado - Francisca de Rimini é uma prova disso.

            Vamos entrar em algumas considerações a respeito delle para deixar bem patente que não é a má vontade que domina nas nossas investigações criticas e que, longe de querermos deprimir o merecimento de um moço cheio de esperanças, não temos outro fim que não o de estimula-lo a evitar os defeitos que vamos notar.

            Ao parar diante desta téla assaltou-nos a memoria do immortal poema de Dante e com elle repetimos:

            “Amor ch’al cor gentil s’apprende,

            “Prese costui della bella persona

            “Che mi fu tolta, e’l modo ancor m’offende.”

            O typo escolhido pelo Sr. Aurelio de Figueiredo, para representar a Francisca de Rimini, que era uma das mais bellas mulheres da Italia, na idade média, não produzio em nós esse indescriptivel sentimento que se experimenta diante de uma belleza.

            Mas ainda, pondo de parte esta questão de typo, não podemos deixar de condemnar aquela Francisca de Rimini, que alli se nos apresenta aleijada, quando o que a historia nos diz é que seu marido é que era coxo e feio.

            Está ella ajoelhada ao lado do tumulo, e a distancia que se nota da cabeça aos joelhos seria bastante para que o espectador julgasse ter diante de si uma mulher em pé, de estatura regular.

            O resto da perna, isto é - toda a parte que está em flexão - é de sobra e só serve para transformar em monstro a formosa esposa de Lanciotto.

            E para accentuar-se mais ainda o comprimento descommunal desta figura, vê-se a seu lado (no primeiro plano, note-se), outra mulher ajoelhada no mesmo degráo cuja cabeça, comquanto esteja no primeiro plano, fica abaixo da cintura da Francisca de Rimini!

            Bastará a macia almofada, em que esta se acha ajoelhada no segundo plano para justificar a desproporção indicada? Certamente não.

            As figuras do grupo do fundo tem tambem muito maior tamanho do que deverião ter se fossem feitas de accôrdo com as regras da perspectiva.

            O escudeiro, por exemplo, tem uma estatura de corpo que não se harmonisa com o seu rosto, por demais juvenil, como tambem não se harmonisa o tronco com o comprimento das pernas. A espada que se lhe vê na mão, essa só a muito custo poderia ser trazida á cinta por Paulo.

            Estas faltas não pódem ser relevadas, principalmente a primeira, a que se refere a altura de Francisca, porque o Sr. Aurelio fez photographar o seu modelo naquella posição, podendo conseguintemente verificar, até por meio do compasso, as proporções do seu trabalho.

            Na composição notámos igualmente cousas de muito máo gosto. Além de ser dividido o quadro ao meio por uma linha negra, que produz effeito desagradavel, o grupo do fundo está distribuido de tal modo que a figura do velho, que se vê á direita, parece ter uma só perna; e a posição do cavalheiro, que aliás seria muito natural e bem desenhada, se elle estivesse encostado em alguma cousa, é extravagante e impossivel, achando-se essa figura na attitude em que se acha, isto é, firmada unicamente nos pés.

Tambem não foi convenientemente estudada a posição do escudeiro portador da espada, a quem já nos referimos; em vez de graciosa não é senão ridícula, dando por isso aso a commentarios mais ou menos salpimentados[35]. E do desenho dessa figura, nem fallemos! Corrão-lhe por cima um espesso véo, que lhe encubra o corpo inteiro, com excepção apenas do braço direito, e terão diante de si um menino com a frente voltada para o fundo do quadro e com a mão nas costas.

            Nas figuras do primeiro plano torna-se muito sensivel a falta quasi absoluta de claro-escuro, que o Sr. Aurelio julgou talvez desnecessario em roupas pretas, como se os tecidos pretos expostos á luz não apresentassem tambem claro-escuro. O effeito alli é o que poderia ser obtido em um quarto pouco illuminado, tendo entretanto o quadro muita luz vinda de todos os pontos e até mesmo debaixo para cima, como se póde verificar no reflexo apresentado pela parte interna das cortinas roxas, que cobrem o tumulo.

            Finalmente não podemos deixar de estranhar o modo por que foi desenhada a grande porta ogival que se vê ao lado direito.

            O apice da ogiva está situado no meio geometrico, isto é - no meio material; mas como alli ha ou deve haver um plano fugitivo, segue-se que o effeito é falso e o portão parece todo torto.

            Eis, em traços largos, a impressão que produzio em nós esta tela, que é considerada como a mais importante das vinte e uma expostas pelo Sr. Aurelio de Figueiredo.

            Fallecem-nos tempo e espaço para nos referirmos ás outras; não deixaremos, entretanto, de mencionar a de n. 125, Trabalho e estudo como o mais bem acabado dentre os originaes, e, com alguma reserva, o de n. 129, Mar sereno, e 130, Tarde fria. As outras paisagens são em geral o que os francezes chamam - des épinards.

*

            O Sr. Pedro Americo expoz mais quatro novos quadros: Os filhos de Eduardo, Almoço arabe, Jacobed e Heloisa.

            O primeiro não consegue despertar grande attenção.

            No almoço arabe é digno de nota a fidelidade com que são pintadas as espigas de milho, a louça, o café fraco na tigella e o bem acabado dos pannos, verdadeira especialidade deste pintor. Mas se por um lado tem o quadro estes bons acessorios, por outro perde muito pela carnação e pelo desenho da cabeça que não parecem ser do autor da Batalha do Avahy.

            O effeito que produz, como pintura principalmente, é o dos chromos oleographicos; e tanto mais é isso para lamentar que não é má a expressão da physionomia da arabesinha.

            Fallemos agora da Jacobed.

            Esta tela[36] representa a mãi de Moysés no momento em que leva o filho na cesta de vime para lança-lo ao rio.

            A primeira impressão produzida pela figura é magnifica.

            Ha muita harmonia no todo, bom colorido na carnação, desenho correcto em todo o lado direito da figura e muita naturalidade na posição: observada porém attentamente, notão-se algumas incorrecções e uma inverdade historica.

            O pescoço, por exemplo, é evidentemente defeituoso pela excessiva grossura da sua base e exagerada accentuação de alguns musculos; a boca é feia, muito feia, e os olhos rasgados em demasia como em quasi todas as figuras do Sr. Pedro Americo.

            A roupa é muito bem desenhada, pintada largamente e de acôrdo com as tradições historicas; ella entreabre-as, porém, deixando vêr o peito e parte dos seios e ahi, nessa parte núa, é que se nota falta de estudo do natural. Nem o sternos apresenta ordinariamente tamanho abaixamento, nem aquelles seios são os de uma mãi que durante tres mezes aleitou o filho.

            Gostámos da cabeça do menino, serenamente deitado no cesto, em meio escorço, e chupando o dedinho; aquelle cesto, porém, não está conforme a biblia, a qual nos diz que elle fôra untado com betume e pez, para não dar entrada á água.

            Os descuidos historicos nos quadros do Sr. Pedro Americo devem ser sempre notados; eis porque os apontamos.

            A Heloisa, trabalho aliás de muito merecimento pelo desenho e admiravel pela maneira porque forão pintados alguns acessorios, é tambem uma verdadeira monstruosidade historica.

            Heloisa está ajoelhada aos pés do altar, um pouco voltada para o espectador, com a cabeça alevantada e os grandes olhos negros fixos no espaço como procurando ver o que se passa na sua imaginação.

            Do thuribulo sahe uma nuvem caprichosa de fumo que ladeia toda a direita do quadro, desenhando, não vaporosamente como conviria, mas accentuadamente, toda a triste historia da infeliz amante.

            No altar estão duas velas accesas, um livro ecclesiastico aberto, deixando ver claramente a letra e musica sacras, a imagem de Christo, e uns cravos vermelhos n’um copo ou vaso.

            Todo aquelle que, despreoccupado das exigencias da arte, pára alguns instantes diante deste quadro, fica necessariamente extasiado ao vêr a bella imagem de Heloisa com o seu branco habito de freira, n’uma posição tão bem estudada quanto bem desenhada e pintada.

              Em seguida será o seu olhar attrahido pelas chammas dos cirios que produzem uma boa illusão desse movimento peculiar das labaredas; e, logo depois, percorrerá com a vista os principaes episodios da vida de Heloisa, reproduzidos nas ondas de fumo do thuribulo. E tanto o conjuncto como cada uma das suas partes ha de necessariamente agradar-lhe.

            Mas o critico, que tambem sente essas primeiras impressões, não póde nem deve contentar-se com ellas; tem de demorar-se no exame, estudando detidamente cada um dos detalhes da pintura, e eis qual foi o resultado desse exame minucioso que fizemos na Heloisa.

            Toda aquella nuvem é uma escabrosidade para o quadro. A figura sympathica e attrahente da freira no seu oratorio contrasta violentamente com aquella historia, cujos horripilantes episodios se não estão alli bem patentes, estão pelo menos clara e repugnantemente denunciados.

            Não podendo apagar aquelle brazeiro infernal para destruir aquella fumaça... desviemos della o olhar e examinemos o resto do quadro.

            A primeira cousa que notámos nos accessorios foi o altar. Heloisa está ajoelhada, e elle chega-lhe apenas á linha da cintura, não tendo conseguintemente mais de dous palmos e meio de altura!

            Em seguida observamos com pezar a falta de perspectiva nos castiçaes. O primeiro termina coincidindo com a margem superior do livro aberto. O segundo deveria forçosamente coincidir tambem com essa mesma margem no outro lado do livro, - mas tal não acontece, de modo que parece que a vela está grudada no altar.

            O livro, a que acabamos de nos referir, é um antiphonario ou um gradual, em que o Sr. Pedro Americo escreveu, ou antes - inventou um cantochão impossivel.

            Nada mais facil do que copiar uma pagina de qualquer livro; no emtanto vemos alli uma pauta sem clave e sem nota coral, com musica polyphonica, que não é permittida no verdadeira cantochão. Além disso algumas das notas são vermelhas como se fossem rubricas: uma caçoada, no final das contas, eis o que tudo aquillo é.

            No habito da freira ha tambem invenção da parte do professor de archeologia da nossa academia.

            Estudámos cuidadosamente todos os vestuarios de freiras francezas desde 1100 até 1700 e podemos assegurar ao Sr. Pedro Americo que o da Heloisa de seu quadro é inteiramente contra a verdade historica.

            Aquella vestimenta é um habito moderno das freiras da ordem de Santo Estevão, de Florença, em que o professor de archeologia, por conveniencia propria, substituio o manto preto por um branco, como o da ordem das Magdalenas da Allemanha. Um verdadeiro embroglio!

            O thuribulo tambem nem é da época em que viveu Heloisa nem da França da idade média.

            Vejamos agora o modelo copiado para representar a infeliz Heloisa.     

            É sabido que esta sympathica personagem nasceu em 1101, e fundou a abbadia do Peraclet em 1129, depois de já haver sido mãi uma vez.

            Começou pois a ser freira aos 28 annos; entretanto o Sr. Pedro Americo, sempre phantasista a mais não poder ser, apresenta-no-la no convento como se fosse uma donzella de 18 ou 19 annos de idade, quando muito.

            Considerada assim á luz severa da critica, esta tela[37] não representa a Heloisa, mas sim qualquer freira, em todo o viço da mocidade, lembrando-se daquella tocante historia que teve por epilogo o recolhimento de Argenteuil.


[1] XXVI Exposição Geral de Belas Artes, inaugurada em 23 de agosto de 1884.

[2] José Maria Oscar RODOLFO BERNARDELLI (1852-1931).

[3] José Maria de MEDEIROS (1849-1925).

[4] (sic)

[5] (sic)

[6] Abigail de ANDRADE (1864-?). 

[7] Angelo AGOSTINI (1843-1910). 

[8] Rodolfo AMOEDO (1857-1941).

[9] (sic)

[10] Cópia de Ribera, do Museu do Louvre.

[11] Da Escola de Belas Artes de Paris.

[12] Folhetim do Jornal do Commercio. 

[13] Domingos José GONÇALVES DE MAGALHÃES (Niterói, 1811 - Roma, 1882). Poeta e autor teatral, é  autor de Suspiros Poéticos e Saudades e Antônio José ou O Poeta da Inquisição, dentre outras obras. Seu poema épico  A Confederação dos Tamoios foi publicado em 1856.

[14] (sic). A palavra paisagem é às vezes grafada como paysagem

[15] Georg GRIMM (1846-1887). Pintor alemão.

[16] Thomas Georg DRIENDL (1849-1916).

[17] PEDRO AMÉRICO de Figueiredo Cirne e Mello (1843-1905). Pintor paraibano. 

[18] (sic) 

[19] (sic) 

[20] (sic) 

[21] (sic) 

[22] (sic) 

[23] (sic) 

[24] José Ferraz de ALMEIDA JUNIOR (1850-1899) - Pintor paulista. 

[25] (sic) 

[26] Décio Rodrigues VILLARES (1851-1931) - Pintor carioca. 

[27] Émile ROUÉDE (1848-1908) - Pintor, gravador, fotógrafo, teatrólogo francês.  

[28] Antonio FIRMINO MONTEIRO (1855-1888) - Pintor carioca.  

[29] Joaquim INSLEY PACHECO (?-1912) - Fotógrafo e pintor português.  

[30] Este título não consta no catálogo.  

[31] Esse nome não consta no catálogo. 

[32] (sic) 

[33] (sic) 

[34] Não há certeza sobre a última letra deste nome. 

[35] Não há certeza sobre a primeira sílaba desta palavra. 

[36] (sic). Em geral a grafia é téla

[37] (sic)