Gonzaga Duque: Exposição Teixeira Lopes no Gabinete Português de Leitura [1]

organização de Viviane Alves de Andrade

DUQUE, Gonzaga. Exposição Teixeira Lopes no Gabinete Português de Leitura. [Originalmente publicado em Kósmos, Rio de Janeiro, ano II, n. 10, out. 1905, n/p. Texto com grafia atualizada]. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/gd_kosmos/gd_1905_tlopes.htm>. [Fac-símile, PDF 1,762 MB]

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No texto aqui transcrito, Gonzaga Duque descreve uma exposição do escultor português Teixeira Lopes, organizada por Bernardino Lobo no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, bem como características do artista e de suas obras, que Duque descreve como “admiráveis decalcos de polegar”. Entre as esculturas citadas, merecem destaque, entre outras, a Cabeça de Criança, formosa na sua frescura, como uma “corola fechada em botão”; a Cabeça Octogenária, comparada com uma “flor ressequida, que não lembra a beleza do seu viço, mas não deixa de ser uma flor”; o Busto de Eça de Queiroz, que traz viva em sua expressão a fisionomia do escritor português que Duque qualifica de “filósofo mundano; e Caim, uma obra da juventude de Teixeira Lopes, depois modificada pelo artista, carregada de melancolia e de saudade.

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O INTERESSE mercantil de um homem de bom gosto - e louvável interesse! - levou-o a organizar, como pôde e a possibilidade o consentiu, uma exposição d’alguns trabalhos em original e reduções em gesso e bronze do Sr. Teixeira Lopes, o glorioso artista português que, em nosso tempo, aumenta de brilho o valor estético do velho povo lusitano.

Por menos que o Sr. Bernardino Lobo, organizador da exposição, pensasse no resultado moral dessa tentativa, o seu sentimento patriótico deveria esperar desvanecimentos agradabilíssimos atendido o mérito incontestável do artista, do qual contamos os primores, ainda não bem estudados, que revestem os portões da frontaria da Candelária; mas, com isso, nunca lhe ocorreria a ideia de que vinha prestar serviço d’alta valia ao nosso esteticismo ronceiro, pondo-nos em contato com uma obra onde o esmero do relevo não destrói a espiritualidade da sua origem nem dela se diferencia com vantagem suplantadora.

Infelizmente, motivos plausíveis impedem que essa exposição exceda do valor contido, trazendo-nos a grandiosidade criadora do monumentalista revel na massa empolgante e fremente da sua obra de largo tracejo.

Não obstante o lamentável de tamanha impossibilidade, a obra ali reunida é um documento de arte, em que se sente relampejar o gênio na modelagem febril ou cariciosa dos tipos arrancados à matéria bruta, aos golpes de polegar e raspões d'esboçadores num jorro horebeano de vida imperecível, qual sóem ter os entes maravilhosos criados pelo deus-homem, eternamente vivos sobre a ondulação viageira dos séculos.

E basta olhar, de relance, essa obra, para senti-la poderosa e inteiriça na sua dualidade de trabalho escultural e no seu expressivismo de arte.

De caso pensado estabeleço o desquite das componentes intrínsecas da obra, porque o princípio de que num trabalho de arte - forma e ideia se confundem - é coisa de complicada discussão para os bugres de cartola que formam a maioria sabichona do nosso esdrúxulo meio intelectual. E vai de ver que, já por tanto, se coça com o pruido de me sair a frente um cucumbi trejeiteiro, com o cocar farsista da gramática e o maracá chocalhante da sabença, a zurrar parvoiçadas hostis com intento de se mostrar erudito... e profundo. Esse - profundo - é a mania deles.

Desunidas as componentes e postas em estimativa à parte, compreende-se que a obra do Sr. Teixeira Lopes é trazida ao vivo por admiráveis decalcos de polegar, duma certeza rara pelo que resume de maciez e meiguice, e raspagens violentas, a arremessos nervosos, dos esboçadores impulsionados pela indicação do seu aparelho óptico rigorosamente educado no equilíbrio da euritmia.

É desta equivalência de feitura que resulta a feição altamente decorativa da sua obra, e não do assunto, porque esse depende, visivelmente, de influências intelectuais. A característica decorativa, que se lhe inculca, não desmerece como talvez queiram-na desvirtuar, a severidade do trabalho.

A escultura é, por excelência, uma arte decorativa, simbólica e mítica. Se lhe faltam esses característicos falseia na sua função. O que se lhe pode exigir, na rijeza preconceituosa da gravidade, é que ela se não declive para o arrebique ou a chinoseria, do que procede ao apoucamento do seu valor como produto cerebral.

Ora, a obra do Sr. Teixeira Lopes, 'inda que fixada no retrato ou nos motivos de bustos, se evidencia pela concepção que a originou. É o quanto nos surpreende nessa Cabeça de Criança, onde o mármore ganhou delicadezas adolescentes e o cinzel conseguiu, como por encanto, dar vida expressiva aos olhos que, no branco fosco da pedra, se nos afiguram celestemente azuis, mas desse azul como deve ser o céu para impressão óptica do primeiro entendimento das crianças.

É em verdade, uma cabeça de bambina, ali retida, formosa na sua frescura, adorável no tom macio da cútis, palpitante na mobilidade aparente dos olhos, na inocência da sua boca, no dizer inconsciente da sua visagem em que reside o encanto misterioso duma corola fechada em botão. Aí está a obra do pensamento. E a obra do fazedor vem da grácil maturidade de seus cabelos, do minucioso cuidado de afilar-lhe o narizito, de pôr-lhe em beijo a boquinha, de arredondar-lhe o pescoço e vestir-lhe de rendas os pequeninos ombros estreitos.

E ainda temos essa cabeça de octogenária, curtida nas soalheiras muito fortes das fadigas, vincada, escavada pelas vicissitudes; rosto que se perdeu na dureza óssea das caveiras, caveira em que a vida bruxuleia e parece a ironia dos túmulos à transitória perfeição da forma humana. É uma ideia como expressão e como trabalho poe a notada sua ironia onde quer que esteja, onde quer que a coloquem, sobre a mesa rasa de um escritor, ou sobre o tampo de mármore dum consolo. A sua verdade é inconcussa. Constitui um do cumento [sic] de vida que se não pode relutar porque é a própria vida dentro da sua decadência. Irrita pelo que representa, encanta pelo modo porque está feita. Simboliza a fatalidade dos seres e guarda, no seu aspecto de múmia o vislumbre do que foi. É como uma flor ressequida, que não lembra a beleza do seu viço, mas não deixa de ser uma flor. A velhice possui o debuxo reconstituído do passado, mas ninguém dirá, com precisão, a forma rigorosa que teve. E é para onde iremos, formosas leitoras, vós todas e eu também. Um dia seremos isto, esta devastação que pode ser hílare... se não houver a doce alma do artista que a transforme em terno objeto precioso!...

É como ess'outra cabeça, a de Viúva, destacada duma estátua em grupo, cabeça dolorosa, apanhada na realidade, vivificada no barro, fundida no bronze. Ela tem o extasiamento duma dor que lhe não contorce os músculos faciais, lhe não aleija o rosto, masse [sic] revela nos olhos, nmodo [sic] de estar, n'atitude, na concentração.

Compreende-se a intensidade do pesar. A alma aflui ao semblante e fala sem esgares e gritos. Doe-lhe o coração ao refluir do sangue. Um céu pardo e fechado estende-se-lhe no cérebro, sobre um oceano arfante. Na calmaria há arrepios dissimulados de apreensões. E fica-lhe um eco nos ouvidos, o eco dum som cavo e cortante, que ao cair da tampa do ataúde soou no tremor quente do pescoço turvado pelos soluços. E o nunca mais horrível da vida, esse ponto final da existência que parece cair das alturas como um borrão negro sobre a terra, e tomba sem estalar, sem espadanar-se, deixando no seu alvo o nada, porque o olhar nada vê, nem encontra nada.

O Sr. Teixeira Lopes retém as emoções como se as gravasse; poder-se-ia dizer que a sua espiritualidade se dessora pelos poros da mão trabalhadora e se transmite ao barro e à pedra, revestindo o contorno da máscara humana.

E, se quereis, meus senhores, atender ao busto do amado Eça de Queiroz, o mesmo que serviu, assim creio para a belíssima escultura monumental do jardim d'Alcântara, em Lisboa, aí vereis como a sua fisionomia vive na expressão, como o artista do cinzel entendeu o artista da palavra escrita e lhe deu o “modo de ser” eterno no mármore.

Vede como a ironia fina e risonha da sua boca, arregaçada pel'alfinetada do ceticismo moderno, cristaliza a minúcia típica e recorda, admiravelmente, a elegância diabólica do alegre filósofo mundano. Vede como esse olhar analisa sorrindo e sorrindo caustica, e como n'órbita direita, a que falta o disco de vidro costumário (pois fazê-lo seria ridículo) há o vinco dum hábito, como nos deixando perceber o monóculo casquilho do petulante inquiridor da alma alheia! E a cabeça, que admiramos, é um retrato, exatamente um retrato, porque sobre o preciso delineio físico transparece a espiritualidade que o animou.

E notem ainda neste baixo relevo de velha mulher a vida que o ilumina, a verdade do seu sorriso, o brilho turvo dos seus olhos!...

A parte emotiva da obra do Sr. Teixeira Lopes é conseguida pela estilização da sua escultura, advém da idiossincrasia que o modela individualmente e o destaca em alto relevo da mediocridade contemporânea dos habilidosos.

Além disso, a sua obra surge dos esboçadores ou do escopro embebida do subjetivismo da nacionalidade em que se fez. Nela está a dor portuguesa, dor que  não se confunde com a de outros povos, dor é que gemida em versos e se exterioriza pela contemplatividade, e que há séculos ficou n'alma lusitana com a nostalgia do ofuscante passado aventureiro.

Esse belo baixo relevo da Decrepitude, a serena e dulcíssima Caridade, são produtos dum atavismo étnico, a que se não podia esquivar o artista, vindo duma corrente direta portuguesa, filho de pai artista ele próprio homem de hábitos concentrados, afeito ao recolhimento da oficina e à meditação do estudo. E é por isso que nesse mesmo Caim, obra dos primeiros tempos mas corrigida depois, o remorso que o morde tem alguma coisa de melancólico. E, apesar da atitude contorcida, bossuda, desesperada, do seu corpo; da trágica fixação do seu olhar, do martírio concentrado na sua máscara, essa melancolia transluz da sua expressão e permanece visível como um evocado espectro da saudade.

É isso o que sinto nesta exposição e que mais deve se acentuar na sua grande obra, onde a febre do trabalho deixou a marca indelével da sua tortura e pôs, para todo o sempre, o fulgor do seu pensamento.

Outubro de 1905.

GONZAGA DUQUE.

Ilustrações Originais

[Figura sem título, Retrato de Teixeira Lopes]

MONUMENTO A EÇA DE QUEIROZ

BAIXO-RELEVO (BRONZE)

CABEÇA DE OCTAGENÁRIA

[Figura sem título]

CABEÇA DE CRIANÇA

CARIDADE

DECREPITUDE

CAIM


[1] Versão do trabalho final apresentado no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão - História da Arte, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ministrado pelo Prof. dr. Arthur Valle, no segundo semestre de 2011.