Gonzaga Duque: Uma palheta que vive (João Baptista da Costa) [1] [2]

organização de Andréa Garcia Dias da Cruz

DUQUE, Gonzaga. Uma palheta que vive (João Baptista da Costa). [Originalmente publicado em Kósmos, Rio de Janeiro, ano I, n. 10, out. 1904, n/p. Texto com grafia atualizada]. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/gd_kosmos/gd_1904_bc.htm>. [Fac-símile, PDF 941 KB]

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Luiz Gonzaga Duque Estrada inicia o texto aqui transcrito excluindo de sua reflexão a relação entre os movimentos aparentes e o pensamento do artista, questionando se esse último manifesta na sua produção o seu inconsciente e aludindo sobre o fato de que as tendências estéticas do artista se exteriorizam de acordo com as características de seu rosto e corpo (in verbis, “traços exteriores ou por feições particulares”). O autor conjectura a respeito dessa caracterização, especificamente nos paisagistas, e considera a possibilidade dela ser oriunda tanto de um fator espontâneo, que advém da própria paisagem, motivo esse que age sobre a emoção do artista de modo diverso dos assuntos de figuras, quanto do meio no qual o artista exerce sua arte.

A partir daí, Gonzaga Duque começa a tratar do seu ponto principal, razão do título da crônica, ou seja, do “Poeta do Verde”, o paisagista, pintor e professor brasileiro João Baptista da Costa. O autor analisa suas feições, a forma de suas mãos, sua compleição física, e discorre sobre suas características comportamentais. Pode-se vislumbrar que todas as argumentações expendidas no texto servem para reflexão das principais características do artista em tela, a saber: concisão, precisão, clareza e emotividade. Gonzaga Duque conclui que a arte de Baptista da Costa possui grande valor artístico, porque se apresenta digna e íntegra no contexto das correntes estéticas de sua época, sendo sua produção destinada ao público em geral, atemporal e fadada à consagração.

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A determinação típica dos artistas pelos caracteres físicos ou fisiognomônicos está invalidada pelas contraprovas.

Lucien Arreat num excelente livro, que já não é novo, intitulado Psychologie Du Peintre, demonstra a insuficiência documental do processo para segurança do resultado.

Mas, o que parece fora de dúvida, pelo menos aceitável, por frequência das coincidências, é que as tendências estéticas do artista se manifestem por traços exteriores ou por feições particulares.

Quem investiga os característicos físicos e lhes conhece a significação, os que lêem as linhas estruturais do semblante e as taras quirognomônicas, encontram uma similitude entre a produção e o produtor que se impõe à impressionabilidade e ao atendimento do analista.

Nos paisagistas, singularmente, essa caracterização é apreciável, constata-se de modo tão frequente que chega a ser digno de nota. Não sei se isso resulta da espontaneidade da paisagem que, agindo sobre a faculdade emotiva mais amiudadamente que os assuntos de figuras e sendo mais trabalho de sentir e externar que o de idealizar e exprimir, dá ao artista um tipo característico ou se provém do meio em que ele exerce sua arte. O que é, porém, verdade é que essa identificação existe ou parece existir.

Atenda-se a forma das mãos, o esquema da visagem de cada um deles, compare-se essas particularidades com a contextura de suas obras, a maneira porque são pintadas, a escolha predileta dos motivos, a emoção que traduzem, e ter-se-á, como num espelho a imagem do seu autor. E não precisaremos buscar, à distância, exemplo que nos baste. Tomemo-lo nesse mesmo Baptista da Costa.

Ele tem o queixo anguloso dos fortes, a testa curta e quadrada dos obstinados. No seu tipo há alguma coisa de rústico, de não artificializado. A indicativa da sua corporatura é a de um campônio que estudou latim no Seminário e a sua destra, que lhe é mão dos pincéis, possui a dureza óssea das mãos ativas e as nodosidades assinaladoras do pensamento. Isto pelo que respeita ao arcabouço. Ponha-se-lhe, agora, neste feitio sólido do homem singelo, uma timidez de maneiras que se avizinha da esquerdice, e se lhe compreende a doçura nostálgica dos olhos escuros, onde se lhe percebe a alma dolente de só e resignado, humilde e boa, mas dessa incomparável bondade cristã que envolve seres e coisas no mesmo afago e no mesmo perdão.

Bem se lhe notando a feição dos trabalhos ela participa da sua solidez, da sua singeleza e da sua bondade.

São três condições importantes numa obra de arte, que as condensa em firmeza de execução, em sinceridade expressiva e poder comunicativo. A obra assim feita é vivida, é intensa e duradoura.

Estudadas essas três componentes da sua obra, cada qual de per si, encontra-se, pelo que respeita à solidez - a sua maneira firme de pincelar, a densidade de suas tintas e a exatidão dos valores.

Baptista da Costa chegou a esse resultado à custa de tenacidade, conquistou a sua técnica lentamente. Acompanhei-o, há alguns, anos, através da sua obra, vi-o aturdido com a multiplicidade dos detalhes do natural, estonteado com a confusão dos valores no ar livre. Lutava, então, por simplificar o que via, ora tentando pela cor o que lhe falhava no desenho, ora substituindo por massas o que a habilidade não conseguia na reprodução do fofo e tufado das formas. É uma luta desesperada, que só bem n'a sabe quem já se encontrou de palheta e pincéis em frente à natureza!

Para que um pintor chegue a “justeza do toque” a ponto de não perder, com a ideia de acertar, o efeito geral do assunto, é preciso um contínuo, aturado, por vezes exaustivo exercício. É por isso que os três grandes mestres da paisagem, Huet, Rousseau e Corot (esse também João Baptista, Jean Baptiste Camille Corot) afirmaram, com o exemplo, a necessidade de viver no campo, de estar vigilante às modificações rápidas dos efeitos, de observar constantemente o aspecto da vegetação sob a direção da luz, de estudar conscienciosamente a forma própria, característica, indicativa de cada árvore, que é o caráter das coisas de que fala Ruskin.

Lento e persistentemente Baptista da Costa entrou na posse desse segredo. De exposição em exposição o seu valor avultava. O desenho tornava-se-lhe familiar, o lápis obtinha sob o impulso de seus dedos vigores e delicadezas; os pincéis docilizavam-se ao movimento do pulso.

E não havia imagem que ele não retivesse com facilidade. Veio-lhe, por esse tempo, o amor à paisagem de contorno, as vistas, corcovas de montanhas, extensões de vales, restingas de praias ...

Datam dessa época as suas exposições parciais, mais assíduas. Uma infeliz viagem à Europa fechou-lhe este período. Parece que as duas horríveis punhaladas, que a desventura lhe vibrou no coração, influíram muito na sua arte. A partir desse mau tempo a sua emotividade sensibilizou-se, levou-o a observar mais cuidadosamente a Natureza, a procurar nela o que pungia na sua alma. E pouco a pouco seus pincéis foram dizendo nas telas o que os campos, os montes, as rochas, lhe transmitiam à estesia.

Para tanto não se lhe negava a palheta, que é fértil em vivos tons tropicais. Ah! os seus verdes são belos, estendem-se em todas as nuanças, desdobram-se orquestralmente em toda variedade da sua gama. Da composição dos verdes participam largamente os amarelos, com que joga habilmente. O amarelo é uma tinta que domina a nossa paisagem, mistura-se em quase todos os meios tons luminosos, expande-se, vitoriosa, nos claros rasgados pelo sol. Onde há luz há amarelo. É a diluição do sol. Há frondes que, no mais intenso azul cobalto do céu, são irritantemente amarelas. E é todo o cromatismo da fusão, desde o jaldo [sic] ofuscante até o oca soturno, desde o vitelino que estreleja a ramaria florente dos capoeirões até o açafroado, dos cajueiros, o barrento - água dos sapês, o pardo-sépia dos velhos coqueirais ...

Também claros e intensos saem da sua palheta os vermelhos e os azuis, que se combinam em gradações sutis, e lhe dão os recursos imitadores da imensa tinturaria da Natureza.

Senhor da palheta, que lhe pende do polegar sinistro sobre o braço em curva como senhor do lápis com que traceja o espaço a encher, e marca os pontos a salientar, a sua obra sai espontânea como se lhe modulam na boca as expansões sinceras dos seus sentimentos.

Nenhuma preocupação de agrado o move nem o aconselha. Ele pinta o que sente, externa o que o comove, reproduz o que impressiona, indiferente à opinião do público. Daí o deserto de muitas de suas paisagens, quando, bom pintor de figuras como é, as poderia animar, emprestando-lhes a graça comum dos fazedores de gênero que embasbacam os roliços burgueses transformados em amadores.

Prefere o artista cair nos desdéns convencionais da crítica facciosa, que alardeia sabença sem afirmar critério, e no desagrado do farto amador libra-esterlina, do que ceder a sinceridade da sua emoção às exigências esnóbicas da chatice peravilha [sic] e pedante, que faz a craveira sensacional de uma época.

A sua obra, porém, impõe-se aos que têm o necessário cultivo da arte, aos dotados de instintos estéticos, e aos delicados de gosto. Ela é verdadeira e sã, não se orna de pretensões que são afeites, nem procura iludir por artifícios. Tem como a natureza do seu autor a sinceridade da singeleza, a força de si própria, o comedimento dos seus processos de expressão, que se deriva da timidez, da modéstia de quem a produziu. Por isso representa o que deve representar, sem espalhafatos de colorido, sem épatantes golpes de espátula nem espeta nervos com borrões de empastelamentos.

Honesta, vence pela verdade: sincera, conquista por seu próprio valor. Se não incorrer em coima, por inoportuna, a comparativa dos merecimentos, eu direi que a considero, com o desconto de proporções, como a obra de Theodore Rousseau. Não fará revoluções, não agitará uma época, mas tem, sobre as que conseguem os fáceis triunfos da moda, o mérito das que atravessam gerações, e ficam em qualquer tempo admiradas e bem queridas.

E isso, porque a obra de Baptista da Costa não encerra, unicamente, as qualidades materiais das pinturas bem feitas: ela comunica-se, atrai a retina e vai à alma de quem olha.

As suas paisagens animadas ou vazias, mostram-nos mais alguma coisa do que a reprodução aproximada da Natureza em dados momentos e diversos pontos, exprimem uma emoção, traduzida de um modo que é particularmente do seu autor, comovem-nos também, obrigam-nos a participar dos seus encantos, dos seu aspecto claro e todo dourado de sol, da sensação fresca de suas manhãs, da soalheira de seus areais, da agrestidade de seus rochedos, da tristeza de sues pores do sol. A sua arte arrasta-nos ao seu cenário, prende-nos no seu ambiente, leva-nos a participar da emoção de seus tipos, seja nas horas dolorosas daquela cena de quarto onde uma criança morre, seja sob o céu vespertino desse Fim de Jornada [Imagem], que é, contrariando frágeis opiniões opostas, uma obra vigorosa e emotiva.

É que esse poder emana da intensidade com que é feita, comunica-se pela sinceridade que a anima e que a sobreleva nesse meio estonteado de pinturas para cabarets e de estampas ilustrativas para monografias psiquiatras.

Ela afirma-se fortemente pela seriedade de seus processos, permanece íntegra dentro da avaliação das correntes estéticas, porque não é produto efêmero dos ditames de um capricho, e há de atravessar as idades serena e forte como seu autor tem atravessado a vida, a despeito da desventura e dos insucessos, e ficará bem colocada, bem digna, entre as obras realçadas dos pinacotecos [sic] do futuro.

GONZAGA DUQUE.

Ilustração Original

[Retrato de João Baptista da Costa]


[1] Versão do trabalho final apresentado no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão - História da Arte, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ministrado pelo Prof. dr. Arthur Valle, no segundo semestre de 2011.

[2] Uma versão digital do manuscrito original de Gonzaga Duque para “Uma palheta que vive (João Baptista da Costa)” se encontra disponível no sítio eletrônico da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, no endereço: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/literatura/mss_I_07_09_037.pdf>. Acesso 1. fev 2012. Um fac-símile em .pdf pode ser diretamente acessado clicando no seguinte link.