Manualidades femininas nas páginas da revista A Estação (1879-1904)

Maria de Fatima da Silva Costa Garcia de Mattos *

MATTOS, Maria de Fatima da Silva Costa Garcia de. Manualidades femininas nas páginas da revista A Estação (1879-1904). 19&20, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 2, jul.-dez. 2019. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XIV2.06

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1.     Até o final do século XIX, o Brasil era um país essencialmente rural. Oriundas da estrutura colonial portuguesa, as cidades brasileiras, serviam como canal de escoamento da produção agrícola dirigida à metrópole. Com a transferência da Corte para o Brasil em 1808, o Rio de Janeiro, passou a ter um outro destaque na vida urbana brasileira.  A maior cidade colonial exibia ainda, porém, as suas características clássicas: ruas estreitas, casario baixo entremeado por alguns sobrados, traçado urbano irregular, ruelas e becos recortados por paços e praças que desenhavam o feitio da cidade. Como sede do governo Imperial, o Rio de Janeiro era o eixo portuário da articulação da lavoura escravista de café. Era também a ponta estratégica de modernização, centro difusor de cultura e política do país, representava uma porta de entrada para as novas ideias, que auxiliaram o seu processo identitário.

2.     Somente na segunda metade do século XIX é que o processo de transformação do país em uma sociedade urbana começou a se manifestar a partir do desenvolvimento econômico e da mudança social. Para isso colaboraram alguns fatores como a abolição da escravatura, o aumento da mobilidade social e da demanda de mão-de-obra, a maior eficiência dos transportes por meio de uma política ferroviária, a melhoria da exploração das vias marítimas e fluviais, bem como da configuração da rede viária respondendo às exigências da produção (MATTOS, 2002). Foram acontecimentos que marcaram a vida brasileira, originando modificações não só nas instituições, nos hábitos e costumes, na vida cotidiana das famílias, como as demais outras corridas nas últimas décadas desse século pelo desenvolvimento do processo de urbanização e industrialização e a Proclamação da República. A esse período, entre as duas últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, denominamos Belle Époque no Brasil.

3.     Aliado à remodelação das cidades, as mudanças de comportamento e de conduta social também foram importantes, tanto para classe alta quanto para os mais humildes, uma vez que todo o esforço da modernidade distinguia-se como sinônimo do progresso. As ruas, como nos revelaram os romances de época, eram lugar de efervescência cultural onde transitavam pessoas das diversas culturas que por fim, traduziram-se em hábitos e costumes, comportamento, vestuário, ornamentos e decoração.

4.     Contudo, a vida familiar, a ideologia da supremacia masculina ainda prevalecia, à exemplo do matrimônio, a passagem direta da autoridade paterna para a do marido. A divisão do trabalho doméstico nas residências da elite mostrava, na primeira metade do século XIX, que as escravas ou criadas é quem faziam as tarefas ditas femininas. Essa relação, resguardadas as devidas diferenças de classe e cor da pele, proporcionava certa intimidade entre elas pela proximidade que se dava no correr do tempo, criando laços, por vezes estreitos e duradouros. Nesse sentido, podíamos ver as senhoras e suas escravas bordando, costurando ou rendando lado a lado, como se observa em algumas ilustrações desse período.

5.     Na segunda metade do século, com a diminuição das escravas domésticas, as senhoras da elite urbana passaram a manter as criadas, gente livre, em seu lugar, fato esse que foi bastante representativo a partir de 1870. No Rio de Janeiro esse serviço doméstico foi uma das formas mais comuns de emprego entre as mulheres pobres na cidade, mesmo após o advento da República (HABNER, 2016). No bojo da urbanização onde costumes e tradições tão diferentes e por vezes, miscigenados conviviam, a imprensa principalmente a feminina, realçava a importância e o sentido da educação. (MALUF, MOTT,1998).

6.     O objetivo de investigar o periódico A Estação: Jornal Ilustrado para a Família [Figura 1], se deu em função de uma pesquisa sobre artefatos provenientes de manualidades femininas, no final do oitocentos no Brasil, cuja hipótese é de que essa atividade de lazer e cultura doméstica poderia estar na base não somente da formação pessoal e da educação de moças, mas da mãe, da professora e da futura profissional, ostentando no início do século XX sinais do seu recente empoderamento econômico e cultural por meio dos novos modos de viver e vestir. 

7.     Nessa época, o Rio de Janeiro passou a servir de modelo para outras cidades do país no que se refere aos hábitos e costumes, às boas maneiras, à casa e mobiliário, ao vestuário comum e doméstico da vida privada. O grau de difusão desses novos hábitos diferenciava-se de acordo com o lugar, o tamanho das cidades e do universo feminino da elite em cada uma delas.

8.     Nos eventos sociais e familiares ou em uma recepção formal, era costume que as moças de classe diferenciada demonstrassem suas habilidades pessoais concebidas dentro da educação feminina como saber conversar, portar-se em público, declamar ou tocar um instrumento (piano) - eram formas de encantamento e promoção do sobrenome da família. Além disso, deveriam apresentar-se vestidas dentro das últimas tendências europeias com vestidos decotados, cheios de laçarotes e bordados, principalmente nos bailes, como uma forma de afirmação da posição social familiar. A europeização dos costumes foi um processo no qual uma sociabilidade baseada na adoção de valores estrangeiros teve lugar no Rio de Janeiro após a chegada da Corte (RAINHO, 2002, p.44).

9.     O cotidiano da vida de corte incorporava valores e condutas que eram necessários à “boa sociedade” que se “civilizava,” como uma exigência imposta e que iniciava, assim, uma etapa de transformação procurando igualar-se, na aparência, aos europeus. Os cuidados com a higiene, as boas maneiras à mesa, o vestir-se adequadamente foram formas de distinção social que já podiam ser notadas no Segundo Reinado, nos bailes e festas de salão cuja permanência requeria a adoção de modas estrangeiras.

10.   Machado de Assis, nas as suas crônicas editadas como Balas de Estalo, fez referência às novas regras para uso dos frequentadores dos bondes, numa sátira aos hábitos cariocas. Esse novo meio de transporte urbano foi introduzido na década de 1870 e passou, em 1892, a fazer parte da paisagem urbana da capital da República (FEIJÃO, 2011, p. 100), determinando um novo ritmo aos habitantes da cidade, exigindo deles atenção, cautela e ao mesmo tempo uma rapidez de movimento à qual muitos tiveram dificuldades em se adaptar. O transporte público foi também o responsável por levar a modernização para os bairros e lugares de trabalho, conformando as novas atitudes entre os seus usuários que eram, muitas vezes, obrigados a sentarem-se ao lado de estranhos, sem trocar uma só palavra, por um percurso que nem sempre era pequeno. Muito embora cético e pessimista, Machado pressentiu o ingresso da vida urbana na nova era, como uma refundação dos velhos padrões de normalidade (MATTOS, 2006).

11.   Para Silva (2017, p.22), o comércio de vestuário e a imprensa começaram a se expandir assim que a Corte portuguesa chegou ao Brasil, não só em decorrência do aumento de demanda, mas, também como resultado da abertura dos portos, de novos acordos comerciais - como a reciprocidade para pessoas de nacionalidade francesa fixarem residência no Brasil - e da decretação de leis que desobstruíram as importações, o comércio e a produção de roupas (a partir da matéria-prima importada) e material impresso.

12.   Com a criação da Imprensa Régia no Rio de Janeiro em maio de 1808, por D. João VI, com a finalidade de imprimir os atos normativos e administrativos oficiais do governo, em setembro do mesmo ano, foi impresso o primeiro jornal no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro. Por volta das décadas de 1820 e 1830, começaram a aparecer algumas revistas femininas, tanto na Corte como nas províncias,[1] como aconteceu no Rio de Janeiro com jornais que abordavam conteúdo de moda, a exemplo do Espelho Diamantino (1827-1828), A Mulher do Simplício ou A Fluminense Exaltada (1832-1846) e o Correio das Modas (1839-1840) com gravuras vindas da Europa. O periódico (jornal ou a revista) atraía, naturalmente, as mulheres casadas pertencentes a classe média para as quais a ostentação de beleza, cultura e estilo eram sinais exteriores de prosperidade econômica. Da mesma forma, o era para as moças solteiras, que aspiravam a um bom casamento como sinal de prosperidade social.

13.   A definição dos jornais como estrutura empresarial aconteceu devido às inovações técnicas na imprensa. Em 1895, aparece o primeiro prelo que possibilitou a impressão de cinco mil exemplares por hora. No entanto, a distribuição, ainda permanecia sendo feita em carroças. (NOVAES, 2016, p.70). Disso podemos depreender que os jornais representaram uma forma de distinção social, dado que a leitura ainda era para poucos e resumia-se em uma forma de afirmação social.

14.   No entanto, os jornais traduziram-se nos porta-vozes da modernidade no Brasil, permitindo a circulação de ideias e a adoção de transferências culturais europeias. Da mesma forma, por meio da imprensa periódica pode se estabelecer um cativo público leitor, também pelas formas literárias trazidas pelos jornais, tornando-se, assim, um objeto de consumo e lazer. Isso fortaleceu a alfabetização das massas populares pela vontade de consumir informações e colocarem-se à par de uma experiência coletiva que se consumava (a crônica diária e o folhetim), modelando o gosto pela novidade e, no caso das mulheres, tanto em âmbito doméstico quanto pessoal, por um modesto preço cobrado por exemplar.

15.   A imprensa dedicada à moda não atuava somente como fonte de comunicação de informações recentes ou importantes, mas como transmissora de um processo disciplinar social, apresentando modos de viver no mundo moderno e nele se comportar. Foi, sem dúvida, um veículo de transformação urbana histórico-cultural circulante nos finais do século XIX. O surgimento da imprensa no Brasil e a adoção do gosto europeu na formação estética do Império modularam a comunicação de massa em um período tão denso como foi o período do Segundo Reinado e o início do período Republicano. A Revista A Estação funcionou como uma ponte entre esses dois mundos tão distintos, mas interligados nas formas produtivas (RESENDE, 2015, p.38). O discurso sobre a moda tinha uma função educativa e propagava os valores e ideias cultuados pela elite urbana e burguesa que havia se formado após o declínio da aristocracia rural (FEIJÃO, 2011, p.147).

16.   A revista A Estação[2] foi lançada no Brasil em 15 de janeiro de 1879 pela editora Lombaerts e circulou até 1904, com periodicidade quinzenal e assinatura anual por 12$000 para a Corte e 14$000 para as províncias, não possuindo venda avulsa. A revista. apesar de apresentar-se como um “jornal ilustrado para a família,” dividia-se em duas partes de interesse: O Jornal de Modas e a Parte Literária, a qual para a edição brasileira granjeou colaboradores importantes como Machado de Assis e Artur Azevedo, dentre outros. O Jornal das Modas, trazia sempre um editorial sobre a moda francesa, além de uma vasta sessão de moda e bordados, trabalhos manuais, riscos para toalhas e enxovais bordados, bem como conselhos de economia doméstica. A folha conservava a diagramação do cabeçalho e a seriação de La Saison, que aqui  circulava desde 1872, tendo então seu primeiro número iniciado no ano VIII.[3] A sua venda em numeração contínua para a edição em língua portuguesa significou uma estratégia de negócios que transferia o leitor francês para a edição em língua portuguesa (SILVA, 2009; NUNES, 2016).

17.   Na pesquisa com os periódicos e observando sua estrutura, no exemplar de 15 de janeiro de 1880, encontramos uma sequência de páginas até o n. 10: capa; crônica da moda; vestuário, acessórios, ornatos pessoais e domésticos, complementos, imagem de mães e crianças em diferentes modelos; uma gravura comentada; seção de variedades; literatura, teatro e concertos e poesia; nas páginas 11 a 14, pontos de bordado e na página 15, uma imagem feminina encerra a edição.

18.   A variedade de peças sugeridas em todas as edições merece destaque. Consideramos primeiramente os ornatos pessoais [Figura 2]: toucado, manto ou xale, palas para camisa e vestido, modelos de gravatas masculinas em crochê e renda, lencinhos, capas de missal bordada, véu, leques, modelos de vestidos para os mais variados momentos, flores e enfeites de fita para vestidos e chapéus, além das crianças, com sugestões de touca, babador em crochê, coberta para berço e carrinho, camisinhas pagãs para meses e anos dentre outros bastante interessantes).  

19.   A decoração doméstica também merece destaque, sendo bastante rica e variada em usos e modelos [Figura 3]: toalhas de mesa, toalhas de enfeite para o espaldar das cadeiras; centros de mesa com renda irlandesa, ou crochê, entremeios com tecido ou bordadas; tampo bordado para a banqueta de repouso dos pés, para o assento e encosto de cadeiras, para porta-retratos e espelhos - nas décadas de 1890 e 1900; modelos de renda e crochê para aplicação em peças de enxoval; pontos de bordado e rendas para cortinas e mobiliário.

20.   Cada um desses itens de feitio manual possuía um desenho numerado e a correspondente explicação na mesma página, quando possível, que poderia ser por uma receita de pontos de bordado, crochê ou rendo. Quando este desenho era de um casaco, vestido ou colete masculino, que dependiam das maneiras de fazê-los, o seu correspondente era encontrado pelo número do referido desenho, no suplemento de moldes para auxiliar a confecção.

21.   No Editorial da primeira edição de A Estação (n.1 Anno VIII, 15 jan. 1879), lê-se no primeiro parágrafo o seu objetivo: “crear um jornal brasileiro indispensável a toda mãe de família econômica, que deseje trajar e vestir suas filhas, segundo os preceitos da época,” o que reafirma e legitima o caráter de distinção na moda. Para Bourdieu (2007), o gosto se adquire e sua formação varia entre os diversos segmentos sociais, de acordo com o estilo de vida de cada um, resultante das experiências vividas e do capital acumulado em sociedade, o que permite o acúmulo material ou simbólico durante a trajetória de vida. Nas colunas de moda, os cronistas descreviam nos jornais as festa e bailes, citavam lojas a serem visitadas (na sua maioria na rua do Ouvidor, onde se estabeleceram os comerciantes franceses) e os trajes usados pelas pessoas socialmente mais destacadas, o que impulsionava o conhecimento de outros e o aprendizado pelo gosto da época.

22.   No entanto, vestir-se “como os preceitos da época,” por mais econômica que fosse a família, era uma tarefa bastante dispendiosa. A maioria dos vestidos apresentados eram de difícil confecção, não somente pela modelagem e pela quantidade de tecido exigida, mas pelo detalhamento de mangas e golas com rendas ou bordados, corpo e barra do vestido. Nesse sentido, os editores ainda salientavam em editorial: “Ainda encontrarão as nossas leitoras nas nossas páginas, pesados mantos no verão e toilettes leves no inverno, porém junto a isso, que não podemos eliminar sob pena de não mais produzir a moda parisiense, encontrarão também todas as explicações que lhe indicarão os meios de tirar alguma vantagem desses objetos, conformando-se com as exigências de nosso clima” [Figura 4].

23.   Observa-se também, que em cada edição havia a indicação de pessoas ligadas à costura ou desenhistas de moldes oferecendo seus serviços, como forma de aconselhamento feminino e profissional. Encontramos logo nas primeiras edições na página inicial de A Estação, junto à coluna Chronica da Moda, uma outra ao lado intitulada Às Nossas Leitoras, que não só elucidava o problema do vestuário climaticamente inadequado como facilitava a sua adequação e uso, por meio de “avisos” como abaixo o transcrito  

24.                            Moldes Cortados

25.                            As nossas assignantes podem obter encommendando-os no nosso escriptorio com antedecencia de 24 horas, o molde cortado em tamanho natural, quer em papel, quer em cassa,[4] de qualquer das peças de vestuário publicada em nosso jornal. Esses moldes são cortados pelas dimensões normaeas, sendo facillimo seguindo os conselhos do nosso tratado de costura fazer servir o mesmo molde para qualquer estatura ou grossura do corpo. Além dos moldes que cortamos por encomenda sempre temos promptos os moldes correspondentes às toilettes mais importantes de cada numero do jornal. O preço dos moldes é:

26.                            De papel cortado...1$000

27.                            De cassa................2$000 (A Estação, Anno VIII, n. 9, 15 mai. 1879)

28.   Porém, nem só de moda feminina era feita a revista. Os bordados [Figura 5], que constituíam a maior parte das sugestões de aplicação na moda pessoal ou doméstica, tinham um papel subjetivo da maior importância. Além do desenvolvimento de uma habilidade manual clássica na Europa e antiga em outras regiões fabris do nosso país, bordar era uma forma de ressignificar os saberes domésticos da mulher. O fazer e o desfazer dos pontos e procurar novos riscos também se dava no desenrolar das suas atividades familiares cotidianas. Criar e descobrir novos saberes fez parte de um processo libertador do qual a mulher não se deu conta e que, hoje, nos leva a investigar a sua produção artístico-cultural associada a esse saber-fazer feminino.

29.   A Chronica da Moda da edição de 15 de março de 1879 também ilustra esse sentido:

30.                            Temos por costume nesse jornal, a par da moda propriamente dita, que consiste na indicação das alterações que sofrem as diversas peças de que se compõem o vestuario, dar em cada numero e alternadamente desenhos e explicações referindo-se àquellas peças quer do vestuário quer de uso domestico, que não se acham diretamente sob a influencia as variações da moda; assim são a roupa branca para a senhora ou para a criança, a roupa dos recem-nascidos, os bordados, os atoalhados, roupa de cama, estofos de mobília, etc. Assim na presente chronica quero dizer alguma cousa dos atoalhados e roupas de cama. [...] O lençol faz-se em geral em linho inteiriço, com 2 metros e 50 cent. Por 3 metros50 cent. Para cama de casados, ou 1m.80cent. por i90 cent. Para cama de uma pessoa.

31.                            Desde que se tornou geral o uso da machina de costura, além de uma bainha de 3 cent. De largura faz-se um pos-donto em toda a roda do lençol. Em um dos cantos bordam-se as iniciaes e numero do par. O lençol que fica em cima póde ter na parte superior uma bainha de claros com 6,8 e mesmo 10 cent. de largura por baixo do qual borda-se a ponto real em relevo o monograma com dimensões de 15 a 18 cent. Pode-se também bordar uma guarnição de sylvados.[5]

32.   Embora, na relação de dependência tanto patriarcal quanto matrimonial da mulher essa figura habilidosa e criativa consistia em um atributo de destaque (que também poderia ser de autonomia), superando o sentido da sua própria vulnerabilidade. Muitas delas deixavam na confecção das roupas de cama, almofadas e panos bordados das cadeiras da sala boa parte da sua história. Entre queixas e prazeres, a submissão feminina encontrava nos bordados domésticos uma forma de (re)bordar a si mesmo, enquanto produzia um fazer artesanal. A priori, a imagem da mulher foi representada na literatura, ainda condizentes aos hábitos coloniais, como alguém a quem cabia a organização da casa e o aprendizado de tarefas mais fáceis, “próprias do sexo,” como: costurar, bordar, fazer rendas, lavar e passar e cuidar dos filhos. Socialmente, para as mulheres comuns, tais costumes ainda faziam parte do cotidiano republicano:“timidez e ignorância eram uma das suas principais características” (CAMPOS, 1990 apud MATTOS, 2015).

33.   Na edição de 30 de junho de 1902, a capa do jornal trazia: “Jornal de Modas Parisienses dedicados As Senhoras Brasileiras. A Estação. Contendo os desenhos de modas os mais elegantes, roupa branca, chapéos, penteados, vestuários para criança, trabalhos de agulha de qualquer espécie, bordados, crochets, rendas, etc. Bellas Artes, Chronica, Litteratura, Musica etc.” Era seguido por duas páginas somente com anúncios diversos e a conhecida abertura do jornal: “A Estação - Jornal de Illustrado para a família. Editores-proprietarios A. Lavignasse Filho & Cia Successores de H. Lombaerts. Agencia Geral para Portugal Livraria Ernesto Chardron. José Pinto de Souza Lello & irmão successores, Porto.”

34.   Esse detalhe do cabeçalho do jornal mostra que sua permanência ao longo dos 25 anos dessa publicação no Brasil, acompanhou não só a evolução dos trajes, mas a evolução da cidade do Rio de Janeiro, dos muares às carruagens. Na edição n. 16 de 31 de agosto de 1902, a narrativa da coluna Correio da Moda (p.122) assinada por Paula Candida ilustrava isso: “Os paletós, actualmente em preparação, são direitos e abrem em baixo em forma de sino; as capas para carruagem são muito amplas, muito apanhados avantajão muitíssimo as delgadas e altas. Vê-se saias franzidas em volta da cintura, tomando bem as cadeiras. Os franzidos são arranjados em redondo até abaixo das cadeiras, formando as vezes uma ponta.”  

35.   Como comentou Sevcenko (1998, p.539), ‘O que passa por gosto é na verdade a moda, que deve mudar sempre para impedir a emulação e, por meio dela, qualquer indesejável identificação. Prevalece agora não o desejo de estar identificado, pelas suas vestes, adereços e apetrechos, com um meio social homogêneo, com um padrão funcional ou um estrato cultural. O momento é o de afinar-se com o tempo, com as notícias rápidas, com a circunstância europeia atualizada pelo “dernier bateau”  [...] a cena agora pertence ao individualismo exibicionista.” 

36.   O Rio de Janeiro passou a ditar não só as novas modas e comportamentos como se referiu o autor, mas acima de tudo os sistemas de valores, o modo de vida, a sociabilidade, o estado de espírito que simultaneamente articularam a modernidade como uma experiência individual, existencial e intima, uma experiência do mundo moderno em plena transformação.

Referências bibliográficas

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Sites

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* Maria de Fatima da Silva Costa Garcia de Mattos. Doutora em Artes pela ECA/USP (SP), Mestre em História pela FSSHD/UNESP, Especialista em Figurino e Indumentária pela UNAERP (Ribeirão Preto/SP). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado) pesquisadora em Cultura Material e Cultura Escolar. Leciona História da Arte e História da Arte Brasileira na graduação em Moda e Arquitetura e Urbanismo, ambos do Centro Universitário Moura Lacerda, Ribeirão Preto. Pesquisadora do IPCCIC - Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais.

[1] Sobre essas revistas femininas consultar Silva, 2017.

[2] Segundo Silva (2009, p. 13,) a revista de moda Die Modenwelt começou a circular na Alemanha em 1865, e no Brasil, com o nome de A Estação, em 1879. Fundada em outubro de 1865, o objetivo da revista Die Modenwelt da editora Lipperheide, com sede em Berlim, era ensinar às donas-de-casa como fabricar vestimentas para toda a família, bordar e decorar suas casas. Seu projeto constituiu uma rede de periódicos de orientação cultural francesa.

[3] Ainda nas palavras de Silva (2009, p. 10), “não é de se estranhar que Lombaerts considerasse a nova revista impressa em sua própria oficina como a continuação, em língua portuguesa, de La Saison, periódico que ele próprio vinha comercializando há sete anos.”

[4] Cassa (kassa) - s. f. tecido fino, transparente, de linho ou algodão (FERREIRA, 1975, p.294).

[5] Sylvado (silvado). s.m. Moita de silvas ou outras plantas congêneres: sarçal “as amoras frescas dos silvados (Trindade Coelho. Os meu amores, p.50). Silva - ornato da gola, do peito ou do canhão de fardas, inspirados na forma de flores e folhas. FERREIRA, 1975, p.1311.