Um outro Ecletismo pela visão das artes decorativas [1]

Marize Malta

Malta, Marize. Um outro Ecletismo pela visão das artes decorativas. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 2, ago. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/decorativas_ecletismo.htm>.

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Escarradeiras em porcelana

Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.

Objetos enfeitados, carregados de capricho, ornamentados.  Muitos deles.  Móveis, jarros, tapetes, escarradeiras, bibelôs, compoteiras...  Espalhados pelos vários cômodos da casa, da casa antiga, asseada, arrumada com esmero.  Objetos que são hoje lembranças, habitam museus e deles sabemos pouco.  É hora de buscá-los.  Vê-los como documentos capazes de contar uma história, uma história de um outro Ecletismo.

Ao mergulharmos no universo dos objetos decorativos, podemos encontrar um outro Ecletismo, inovador, cujas produções uniam o útil ao agradável, procurando harmonizar as diferenças, revelar o individual no todo, instituir uma arte cotidiana e agrupar passado, presente e futuro em um só corpo - um objeto diferente.

Objeto diferente

Os objetos utilitários, perante a arte,[2] são classificados como artes decorativas ou artes utilitárias, categorias que guardam um incômodo conceitual: se a arte é inútil, como pode existir um tipo de arte que é utilitário? Como se pode incutir objetividade operacional nas bases subjetivas da criação plástica? Como se pode ajuizar esteticamente sobre algo em que, por exemplo, se está sentado, ou seja, em objetos que tocamos, pegamos, usamos, desgastamos?  Se a arte tradicionalmente não se pega, olha-se, como pode existir coisas artísticas que estão ao alcance das mãos e da banalidade do uso cotidiano?

São com essas questões, nada simples, quase insolúveis, que a arte decorativa se coloca no mundo da arte. Os objetos que se incluem nessa categoria já surgem como objetos-problemas, cuja ambiguidade lhes impõe um permanente estado de crise.

Essa ambiguidade, porém, não é aplicada a qualquer objeto. Não são todos os artigos criados pelo homem que são classificados como artes decorativas.  Somente determinados objetos podem alcançar certas benesses das belas-artes na medida que “usurpam” algumas de suas propriedades, como a beleza. Dessa forma, esses objetos, digamos especiais, teriam a oportunidade de gozar de uma titularidade que os enobrecesse, ganhando a insígnia de arte. Não seriam totalmente arte, mas um  arremedo de arte, porque não seriam arte com “A” maiúsculo e sim uma arte menor, de caráter diminutivo, minúsculo.

A nomenclatura arte decorativa seria a que melhor se adequaria à proximidade com a grande arte. O adjetivo “decorativa” remete à propriedade daquilo que adorna, embeleza, agrada aos olhos, desempenho característico do que é tradicionalmente artístico. Para que um objeto utilitário fosse decorativo fazia-se necessário que tivesse uma finalidade de embelezamento amalgamada a seu fim prático.  Para isso, o utilitarismo deveria dialogar com os preceitos plásticos vigentes e revestir-se com os padrões de beleza ditados pela grande arte.

Os demais objetos que não alcançaram o estatuto de arte foram denominados, no século XIX,  de cultura material[3] - objetos produzidos por determinados grupos sociais e característicos de determinada cultura, não européia. Tal classificação, de base antropológica, implicava que todos os artefatos produzidos por sociedades não-civilizadas deveriam possuir outro estatuto de análise, porque não se assimilavam em forma, em técnica, em valor estético aos produzidos, à época, pelos europeus. Com isso, as análises da cultura material não poderiam contemplar as análises formais, estilísticas, próprias das artes europeias. Percebeu-se, por outro lado, que a partir desses artigos “estranhos” era possível conhecer a sociedade e a cultura que com eles interagia. Abria-se uma nova dimensão de olhar e investigar os objetos - observando seus usos, sua inserção no cotidiano, sua dimensão simbólica, como veículos de uma visão de mundo, de um conjunto particular e dinâmico de relações humanas e sociais.

O requisito de um objeto útil e decorativo esteve presente na história da humanidade, apesar de restrito aos poucos grupos que tinham condições financeiras de possuir objetos artisticamente trabalhados - então chamados objetos de luxo.  O restante da população não tinha condições de usufruir de uma arte decorativa; possuía apenas utensílios, coisas meramente úteis, sem qualquer imagem que se assemelhasse à categoria de arte e impossível de serem classificados estilisticamente.  A partir dessa visão, a população, desfavorecida financeiramente, mesmo europeia, não produzia arte (decorativa), só materiais, os quais, como parte integrante de suas práticas culturais, se adequaram à classificação de cultura material.

Perante a ampliação de oferta e de demanda de objetos de uso cotidiano, no século XIX,  a solicitação de unir o útil ao agradável se expandiu pelas diversas classes sociais e se pôde verificar que a imagem de agradabilidade foi preponderante sobre a da utilidade. O fator decorativo apossou-se dos objetos mais corriqueiros. Os utensílios até então reconhecidos como cultura material também se ornamentaram.

A situação colocou as artes decorativas no limiar entre cultura material e arte. Essa peculiaridade acirrou a condição de inferioridade perante as artes maiores, gerando quase total desprestígio das artes decorativas pela História da Arte.  Conseqüentemente, os objetos decorativos foram pouco explorados no sentido de trazer novos olhares e contribuições.

Objeto desprestigiado

As pesquisas sobre século XIX, desenvolvidas principalmente nos programas de pós-graduação do Brasil, têm trazido novos olhares sobre pintura, escultura, arquitetura, academicismo, ensino artístico, crítica de arte.  O Ecletismo, estilo síntese do século XIX, tem sido revisto, desprendendo-se das críticas (negativas) que o absolutismo do pensamento moderno lhe impôs. Todavia, ainda há muito o que ser repensado.  As artes utilitárias / decorativas estão em situação pior: encontram-se muito aquém das demais artes quanto ao seu estudo, nesse período, no país. Seu ponto de vista é nada ou pouco conhecido.  Ou, no mínimo, desconsiderado.

No campo dos objetos, os estudos sobre o período oitocentista recaíram na área do Design, a qual normalmente não é cotemplada nos programas de pós-graduação em artes no Brasil, pois se acredita que Design não é arte e que deve ser estudado em outro território de saber. A história do Design trilhou caminhos próprios e pouco interagiu com a história da arte.

Apesar de os objetos utilitários terem migrado para a instância do Design, os artefatos oitocentistas não conseguiram muito prestígio nesse novo campo, ao contrário.  Inicialmente,[4] a história do Design enfatizou o pensamento dos designers modernos que, como se sabe, desprezaram sumariamente o ecletismo impresso nos objetos. Predominaram as críticas negativas sobre a qualidade dos utensílios produzidos naquele período.

O desprestígio foi sendo dissolvido com as práticas da Nova História[5] (e seus desdobramentos), que interagiram com os saberes de outras áreas, como a Antropologia.  A cultura material emergia para a História e, com ela, os objetos cotidianos, como atesta Ana Maria Del Priore, “graças ao estudo da cultura material privada e cotidiana, reencontramos as relações sociais e os modos de produção que não podemos perceber com outras abordagens.”[6]

Como conseqüência, a História do Design também ampliou suas posturas e inseriu os objetos nos seus contextos sociais e culturais, trazendo outras dimensões para os artefatos oitocentistas.

Na medida em que o diálogo entre os campos de saber se tornou aceito e encorajado, as várias Histórias (social, cultural, do design, da arte) se beneficiaram mutuamente, rendendo novas perspectivas para o estudo dos objetos.  Todavia, a questão decorativa e os valores formais, que estariam aderidos aos utensílios, não ganharam atenção. As artes decorativas - com essa titulação - continuaram sem prestígio.

O Ecletismo, diante das artes decorativas, e dessa realidade aqui exposta, necessita ser revisitado e redimensionado.  Comecemos, pelo menos, com os primeiros passos.

Objeto decorativo e um outro Ecletismo

Entremos pois no universo das artes decorativas, vejamos suas facetas, observemos um outro ecletismo adentrando nos espaços em que esses objetos foram tão presentes: o universo da intimidade, os interiores das casas, o lares.

O chalezinho de Amélia ficou muito catita: [...] Exigiu tapetes, espelhos, cortinas de chita indiana para a sala de jantar, cortinas de renda para a sala de visitas; quis moldura dourada nos quadros, estatuetas pelas paredes; não dispensou nos aparadores e nos consolos jarras de porcelana das mais à moda; jardineiras aqui e ali, vasos caprichosos com begônias e tinhorões sobre a mesa de jantar; cestinhas artísticas, com parasitas, para dependurar nas janelas [...].[7]

O lar transformava-se em vivenda individualizada, local da intimidade.  O espaço revestia-se de expressão pessoal, era preenchido com modos de vida que essencializavam as pessoas que nele viviam. O lar, assim, espelhava seus moradores e conhecendo-o, conheciam-se as pessoas; seus objetos seriam perfis e indicadores de um tempo e de uma maneira cultural.  O morador inseria a cultura dentro de casa, uma cultura variada, rica, de diversas procedências, de diversos tempos do passado.

Na geografia doméstica do século XIX, principalmente a partir de sua segunda metade, os objetos decorativos ganharam destaque na construção dos lares burgueses.[8] Cada utensílio foi dotado de artifícios que, aos olhos de seus consumidores, refletiam imagens de prazer e denunciavam bom gosto.

Termos como “bom gosto”, “aprazível”, “bem-estar” começaram a fazer parte do vocabulário cotidiano das famílias burguesas.  Essa parte da sociedade veio aprender a morar com estilo e pôde observar a história dos estilos passar diante dos olhos em sua própria casa. Os objetos: cadeiras, candelabros, jarros, etc. deveriam receber uma espécie de certificado de garantia, ou seja, ser de estilo.

O uso da locução adjetiva “de estilo” especificava um diferenciador à rusticidade habitual das casas burguesas e ajuntava um significado qualitativo aos objetos, corroborando a importância do estilo para a aquisição da imagem de um novo paradigma.  Os utensílios deixavam de ser formas meramente práticas para adquirirem valores estéticos e simbólicos, na medida em que a riqueza passou a ser considerada apenas enquanto realidade visível.

A partir do momento em que a riqueza era decodificada por um conjunto de imagens, aqueles que podiam e desejavam aparentar superioridade (social e cultural), deveriam evidenciar sua visibilidade.  Instaurava-se um mundo de aparências cujos códigos de distinção se baseavam em valores artísticos, os quais eram apropriados pelos objetos cotidianos. Exacerbava-se o aspecto decorativo - a parcela artística presente nos objetos - e ostentavam-se seus representantes, os estilos. 

O aspecto da pura visibilidade (própria da arte) misturava-se à dimensão tátil (próprio do objeto).  A decoração espalhava-se, tornando-se mais perceptível e mais apelativa ao toque, ao tato.  Estabelecia-se um novo paradigma: a união do material com o sensível, uma verdadeira filosofia do ter.[9] Para usufruir do sentido tátil era necessário possuir algo concreto para se tocar,  o que ocorria com a compra de algum bem, bem este que deveria ser palpável, manejável, sentido com as mãos.  A sensação tátil  remetia à do paladar, esta regendo o gosto, e os objetos passaram a ser “saboreados”.  O objeto manipulável e “degustado”, ao aproximar-se dos sentidos mais físicos do homem, também apelava para outro menos ligado à materialidade, pois sua decoração reclamava pelos recursos da visão.  Sentia-se com os olhos e através deles reconheciam-se muitas facetas do mundo, inclusive sua história.  Recorria-se aos estilos do passado - a história -  para imprimir referências visuais capazes de significarem conhecimento e distinção. 

O público burguês mudava sua forma de olhar o mundo, um mundo construído por ele, através de suas escolhas de compras, e repleto de signos que identificavam situação sociocultural, posição financeira e confirmavam o que Machado de Assis sentenciava no conto Linha Reta e Linha Curva: “Dize-me como moras, dir-te-ei quem és.”[10] Machado revela, no mesmo conto, o comportamento do visitante posto à vontade para examinar os signos presentes na casa de seu anfitrião - ele tudo olha, tudo vê, tudo descobre, tudo julga.

Na sala em que Tito foi recebido não estava ninguém. Ele teve, portanto tempo de sobra para examiná-la à vontade.  Era uma sala pequena, mas mobiliada e adornada com gosto. Móveis leves, elegantes e ricos; quatro finíssimas estatuetas, copiadas de Pradier, um piano de Erard, tudo disposto e arranjado com vida.[11]

Beleza, arte e ornamento eram percebidos como um corpo uníssono e, visto que estavam relacionados ao bom gosto, foram exacerbados de modo a garantir uma imagem de representação da expansão do gosto.  Os objetos ecléticos, respondendo a esse conceito, além de se multiplicarem em número (maior quantidade), ampliaram a visibilidade do ornamento através dos entalhes, relevos e pintura, o que, aos olhos do público consumidor, implicava maior qualidade.   A arte era aplicada a objetos cotidianos e de uso, instaurando uma arte banal,[12] uma arte cotidiana - um Ecletismo de todos os dias.

A arte através de sua representante, a decoração, qualificava, dignificava o objeto útil e, assim, garantia a beleza almejada.  Os utensílios mais corriqueiros, até os que recebiam dejetos, como escarradeiras e vasos sanitários, eram dotados de decoração, ou seja, de arte, ou seja, de beleza. Assim podemos notar:

Foi-lhe mostrando a caminha cheirosa, o pequeno lavatório de pedra-mármore; fê-lo notar o bom estado da cômoda, a elegância do velador, o artístico das escarradeiras.[13]

Nessas linhas da lavra de Aluísio Azevedo, nota-se a importância do mostrar o diferencial dos utensílios dignificados pelo romancista pelos seus respectivos adjetivos e, especialmente, a escarradeira dotada da qualidade de artística.

A referência da arte espalhava-se pela superfície dos objetos utilitários, levando-a para dentro das casas, onde seria usufruída e manipulada cotidianamente.  O objeto diário e prático se transformava em uma espécie de arte - uma arte decorativa - ao alcance das mãos e de muitas pessoas, popularizando-se.

Nas artes decorativas, o Ecletismo se improvisava, permitindo adaptações às maneiras próprias de ser de cada grupo consumidor, expressando suas complexidades.  Os objetos ecléticos, por intermédio de seus produtores e comerciantes, respondiam às demandas da clientela e para isso, a antiga ordem de criação se desestabilizava.  Preferia-se reinvenção, regeneração do antigo, improvisação do passado, criatividade à criação e esse procedimento envolvia constante organização, desorganização, reorganização.[14]

No modo de criar para variados públicos, o experimento e a reinvenção eram constantes e alimentados pelo grau de aceitação de determinado objeto, conforme a classe social.  A variedade de oferta garantiria atingir maior quantidade de desejos, desejos estes que solicitavam tanto quantidade maior de artigos quanto multiplicidade de gostos e de decoração.

Os diversos modelos de objetos ecléticos criados para satisfazer o gosto e a necessidade da clientela eram verdadeiras experiências e, como tais, promoviam os mais variados resultados.  O sucesso, porém, não estaria depositado no alcance de um modelo ideal - de beleza, promulgado por visões acadêmicas, mas no grau de aceitação do produto por seus consumidores.[15] Estes ditavam as preferências a partir de suas concepções de próprio, distinto, belo, elegante, luxuoso, moderno.

A sociedade burguesa para bem viver necessitava de uma quantidade cada vez maior de objetos que satisfizessem suas necessidades práticas e seus gostos. E esses gostos não eram tidos como antiquados, passados, mas gosto moderno. Vejamos, novamente através da narrativa de Aluísio Azevedo, o que convinha ser adquirido para um casal de posses limitadas, que iria montar sua casa no último terço do século XIX:

[...] levou-o a uma casa de trastes e escolheu ele próprio o que podia convir ao outro; isto é, uma cômoda, um lavatório, uma boa cama de casados, uma secretária, duas estantes, um velador, e seis cadeiras; tudo de mogno e trabalhado a gosto moderno.

Estes arranjos pediam outras coisas; escolheram-se também dois quadros para o intervalo das portas, um belo espelho de parede, um relógio de pêndulo, tapetes, capacho e ecarradeiras.[16]

Modernizava-se e atualizava-se a imagem dos objetos com os quais se convivia diariamente. Inúmeras técnicas,[17] construtivas e decorativas, eram criadas para oferecer inovação ao público, com mais conforto e prazer, e também para baratear a produção. Além dos objetos recriados com novas roupagens, havia novos utensílios, como as espreguiçadeiras, por exemplo, que carregavam a imagem potencializada do progresso. Essa imagem de avanço empurrava o objeto para o futuro, para os sonhos de cada indivíduo por um mundo melhor, mais civilizado.  Essa parcela progressista do objeto eclético colocava-o na vanguarda, antecipando  inovações que, em virtude das facilidades de produção, seriam corriqueiras pouco tempo depois.

As arte decorativas ecléticas individualizavam-se para oferecer variedade com a qual o cliente se sentisse atendido em seus gostos e suas preferências.  Os objetos procuravam satisfazer aos muitos perfis da clientela,[18] oferecendo um resumo de seus gostos, dos seus gêneros, harmonizando as diferenças encontradas na sociedade (de consumo).  Diversos materiais, vários acabamentos, decorações múltiplas, visíveis nos artefatos, revestiam-se com significados capazes de refletirem os gostos personalizados. Cada consumidor poderia encontrar um objeto como a persona que desejava ser.  E a personalidade do indivíduo era reconhecida pela decoração do objeto e pelos estilos.

A dimensão decorativa dos estilos artificializava os objetos, encobria-os com caprichos ornamentais do passado, desgarrando-os de sua dimensão natural e transpondo-os para a instância mundana - a história era uma delas. A história também era possuída, comercializada, banalizada através dos objetos.  Do mesmo modo, a artificialidade da arte,  circunscrita aos objetos,  prescrevia a desnaturalização da  imagem dos utensílios.

Tal artificialização foi um dos pontos percebidos pelos artistas e pensadores contemporâneos e na qual se baseavam as críticas negativas sobre a degeneração da qualidade dos objetos. William Morris,[19] como exemplo emblemático dessa visão, atribuía à beleza a propriedade de concordar com a natureza.  Na medida em que os objetos se distanciavam da alusão à natureza, discordando dela, eles estariam fadados a serem feios.

Negociava-se a espontaneidade,[20] a naturalidade, inclusive do próprio comportamento na intimidade do lar. Os objetos decorativos ecléticos acompanhavam a situação: eram como reflexos fiéis do mundo civilizado, artificializado e, portanto, representantes da contemporaneidade, de uma arte do presente.

O presente se mostrava caótico pela perspectiva  do mundo exterior - o mundo do trabalho e das ruas, dos operários e do declínio moral.  A casa, como resposta, abrigava tanto o caos quanto procurava o ordenar, pelo comando de seus moradores.  Eram muitos objetos de diferentes tamanhos, materiais, procedências, épocas que se espalhavam pelos arredores das salas, dos quartos e gabinetes.  À diversidade e à multiplicidade contrapunha-se o arranjo, o esmero da arrumação. Haveria um espaço para cada coisa e cada coisa haveria de estar em seu lugar.  Cada novo objeto, que adentrava pela casa, poderia provocar o rearranjo de todos os outros objetos, buscando-se novo equilíbrio, nova ordem, ordem esta ditada por regras estéticas e morais.  Assim, a arte decorativa se moralizava.  Decoro e decoração tornavam-se um só corpo.

[...] a sala de jantar tinha umas frescuras úmidas debaixo de ramagem mais semelhadas ainda com o escuro dos enrodamentos. E era bom de se passar aí a sesta, por entre aquelas ostentações de um luxo asseado e burguês.[21]

A burguesia, pelas linhas do romancista Pardal Mallet, “ostentava um luxo asseado”.  A decoração, diga-se o luxo, a partir desse contexto, era vista como algo moralmente boa para o lar e para a família.  Se a boa moral estava ligada à bela forma, e  essa bela forma significava estar decorada, a moral mais elevada conduzia a se exacerbar a decoração -  “Quanto mais melhor”.  

A moral e os bons costumes coligavam-se com a sedução artística do decorativo. Os objetos ecléticos, resumos das histórias do mundo, apresentavam-se como objetos distintos e desejados, praticamente imprescindíveis ao bem-viver burguês.  Esses objetos do mundo, não da natureza, configuraram-se nas mais variadas formas e expressões, as quais acompanhavam as mentalidades vigentes de seus consumidores, tendo, pois, que se conformar a elas.  A conseqüência foi objetos diferentes.

O diferente foi considerado com tal porque criava o novo.  Os objetos ecléticos inovavam a partir das possibilidades tecnológicas dentro da imagem síntese de um passado recriado. Novas tecnologias e novas idéias de produção (vanguarda) eram empregadas para fabricar objetos, que resgatavam do passado (retaguarda) os símbolos para representação do gosto e dos valores que se desejavam presentes (guarda).  A arte decorativa eclética era nova enquanto tecnologia e resultado; antiga, enquanto referência histórica do passado; atual, enquanto fiel espelho dos valores de seus consumidores - uma arte contemporânea, uma arte possível.

O Ecletismo, pela visão das artes decorativas, ou seja, através dos objetos ecléticos, colocou a arte ao alcance das mãos e conduziu-a a um novo estatuto: a arte podia ser útil e de todos, ela podia ser “boa, bonita e barata”.


[1] Comunicação apresentada no XXIV Colóquio do CBHA.  Belo Horizonte, 2004.

[2] vide BAZIN, Germain. História da história da arte.  São Paulo: Martins Fontes, 1989.

[3] DENIS, Rafael Cardoso.  “Design, cultura material e o fetichismo dos objetos”. In: Arcos: design, cultura material e visualidade, Rio de Janeiro, v. 1, número único, p.15-38, out. 1998.

[4]  A exemplo, PEVSNER, Nikolaus. Pioneers of modern design from William Morris to Walter Gropius. Harmonsdworth: Penguin,1960. 

[5] BURKE, Peter (org.). A escrita na história. São Paulo: UNESP, 1992. 

[6] PRIORE, Maria Del.  História do cotidiano e vida privada” In: CARDOSO, Ciro F ; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.259-274. 

[7] AZEVEDO, Aluísio. Casa de pensão.  São Paulo: Editora Três, 1973, p.262.

[8] Vide GERE, Charlote. Nineteenth-century decoration: the art of interior.  New York: Abrams, 1989 e PORTER, John R.  Living in style: fine furniture in victorian Quebec. Montreal: The Montreal Museum of Fine Arts, 1993.

[9] BACHELARD, Gaston.  A poética do espaço.  São Paulo: Martins Fontes, 1988, p.90. 

[10] ASSIS, Machado de.  “Linha reta e linha curva”. In: CAVALCANTE, Djalma (org.).  Contos completos de Machado de Assis. Juiz de Fora: UFJF, 2003, p. 257.

[11] Idem

[12] ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

[13] AZEVEDO. Aluísio. Op.cit., p.113. 

[14] MONTUORI, Alfonso. The complexity of improvisation and the improvisation of complexity: social science, art, creativity. In: Human relations, New York, vol. 56, n.2, p.237-255, 2003. 

[15] FORTY, Adrian.  Objects of desire: design and society since 1750. London: Thames and Hudson, 1995. 

[16] AZEVEDO, Aluísio. Op.cit., p.229-230. 

[17] EDWARDS, Clive D.  Victorian furniture: technology & design.  Manchester: Manchester University Press, 1993. 

[18] FORTY, Adrian. Op.cit.  

[19] Tal acepção pode ser verificada em um de seus discursos: MORRIS, William.  The decorative arts. their relation to modern life and progress: an address delivered before the trade’s guild of learning. London: Ellis and White, 1877. Disponível em: <http://www.burrows.com/dec.html> (acesso em: set. 2002). 

[20] ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1993.

[21] MALLET, Pardal. Hóspede.  São Paulo: Editora Três, 1974.