Debret e o vestuário nobre feminino na corte do Rio de Janeiro 

Charles Roberto Ross Lopes [1] 

LOPES, Charles Roberto Ross. Debret e o vestuário nobre feminino na corte do Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIII, n. 2, jul.-dez. 2018. https://doi.org/10.52913/19e20.xiii2.05

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1.      A transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1808 impôs à sociedade local um novo modo de vida alicerçado em um sistema de regras europeu. As mudanças ocorreram em um ritmo intenso e as transformações decorrentes se manifestaram por todas as esferas culturais e sociais, nos hábitos, nos costumes e, sobretudo, nas formas vestimentares.

2.      Não tardou para que a apreciação dos modos e maneiras europeias, com a imposição de normas de etiqueta e de conduta, fosse acompanhada pelo movimento da moda. E logo a estética de luxo do vestuário feminino trazida pelos europeus passou pelas primeiras adaptações ao contexto material, cultural e climático dos trópicos, numa verdadeira dinâmica de apropriação de códigos culturais.

3.      Nesse contexto, pretendemos analisar o vestuário nobre feminino entre os anos de 1822 a 1831, período de grande transformação na história do país que foi registrado, dentre outros meios, pelas obras do artista francês Jean-Baptiste Debret. Ao tomar como foco de investigação a sociedade de corte do Rio de Janeiro, exploraremos as influências da indumentária europeia nos trajes usados pelas damas que circulavam nesse espaço.

4.      Desse modo, são contemplados os elementos da estética, do luxo, da moda, dos costumes e da cultura europeia - sobretudo, lusitana e francesa - que contribuíram para o desenvolvimento de novos trajes. Isso possibilita compreender como os valores civilizatórios europeus foram difundidos e incorporados na sociedade brasileira oitocentista, sobretudo, no que se refere as suas vestimentas.

A moda como objeto da pesquisa histórica

5.      O movimento de renovação da historiografia, iniciado em 1929 pela Escola dos Annales, possibilitou a reflexão sobre novos objetos e novas abordagens pela História. Houve não apenas o estabelecimento do diálogo com outras ciências sociais, como também uma ampliação na noção de fontes históricas.

6.      É no interior dessa concepção de História que contempla os fenômenos culturais que a moda surge como novo objeto de discussão. Na medida em que, desde a Pré-história nos tornamos animais vestidos, podemos constatar que a indumentária esteve presente ao longo de distintos períodos e contextos históricos. No entanto, é sobretudo a partir do período renascentista é que esse hábito cultural passou a acompanhar os indivíduos em sua expressão estética e, sobretudo, no convívio social.

7.      O vestuário e a moda podem ser compreendidos como temas da pesquisa histórica, na medida em que, a partir deles é possível captar uma determinada linguagem da estética, das formas e do consumo de diferentes contextos histórico-culturais. Portanto, eles constituem objeto de investigação da história social da moda e dos costumes.

8.      A discussão sobre quando a moda teria surgido no Ocidente é pauta de análise de vários teóricos. De qualquer modo, eles são uníssonos ao estabelecer seu surgimento no momento em que o homem procurou se individualizar de uma maneira ou de outra. Alguns pesquisadores remontam seu princípio à Antiguidade Clássica, sobretudo, na Grécia Antiga. Nesse momento, o desenvolvimento expressivo das artes, assim como dos conceitos do indivíduo antigo, teria contribuído para o início da moda como meio de se diferenciar socialmente.

9.      No entanto, o consenso de que a moda teria despontado durante a transição do medievo para o Renascimento é maior. Essa é a concepção defendida por Gilles Lipovetsky (2009). Tal despontar foi influenciado pelo crescimento urbano, bem como, pela centralização e sofisticação das cortes europeias. Além disso, ao longo do período renascentista ocorreu o desenvolvimento de uma cultura humanista, na qual o homem era concebido como medida de todas as coisas, surgindo assim um novo conceito de indivíduo.

10.    Já em uma outra perspectiva, apenas no século XIX, com a mecanização da produção proporcionada pela Revolução Industrial, é que a moda passa a existir enquanto fenômeno histórico. Essa concepção certamente reduz drasticamente a temporalidade de um fenômeno cultural tão abrangente como a moda.

11.    Independentemente dessa periodização, é importante traçar algumas diferenças entre os conceitos que constituem o modo vestimentar. Começamos pela definição do próprio conceito de moda, que se constitui em uma maneira de expressão da individualidade, um recurso almejado para construir uma individuação do parecer. Ela é um fenômeno que imprime o frescor do novo, da mutabilidade, da inconstância, oferecendo a ousadia diante da acomodação e da monotonia. No universo das aparências o vestuário se torna seu maior representante: “O traje de moda corresponde aos valores de mudança, de novidade e de obsolescência.”[2] Entretanto, não podemos esquecer que a moda também é perpassada por um entrecruzamento de referências temporais, o que possibilita que presente e passado muitas vezes coexistam nas roupas.

12.    Portanto, a moda difere da noção de costume que se configura como uma realidade social institucionalizada, independente do indivíduo particular. Em contraponto, o vestuário como o ato de se vestir propriamente dito, é o modo através do qual o indivíduo se apossa da instituição geral do costume.

13.    No que se refere à indumentária, além das próprias peças de roupas, ela é constituída também pelos acessórios e pelos ornamentos que compõem o vestir, todos entendidos em seu conjunto e que caracterizam um grupo social ou uma cultura. Logo, a composição da indumentária inclui distintas peças propostas culturalmente e assimiladas individualmente. Dessa maneira, cada indumentária traz consigo os variados signos criados pela cultura que a constrói, revelando códigos repletos de significados como a hierarquia das aparências, a arte e a estética, a transformação dos pudores, a moralidade, o clima, o espaço social, dentre outros.

14.    Ao distinguirmos esses termos, compreendemos que o vestuário, além de documento, também é linguagem. Seus padrões são especificados pelas diferentes paletas de cores, matizes, tecidos, texturas, buscando sempre estabelecer uma distinção. Tais padrões nos informam sobre os elementos culturais e as convenções de época que a moda incorpora.

15.    O vestuário como linguagem produtora de comunicação já foi analisado por Daniela Calanca (2008). Ao longo de suas pesquisas a historiadora italiana reforça a ideia de que o vestuário se identifica como produtor de linguagens e, portanto, necessita ser estudado também nesta sua complexidade. Outros estudiosos, como Diana Crane (2006), evidenciam o poder de síntese social representado por aquilo que vestimos. Esse aspecto remete para o potencial do vestuário como instrumento de distinção entre os indivíduos e importante elemento na formulação de identidades.

16.    De acordo com Norbert Elias (2001) podemos verificar que a partir do sistema de organização da sociedade de corte, as roupas serviram como código de distinção das aparências na representação do poder. Desse momento em diante, houve na Europa o estabelecimento da sociedade de representação, influenciada sobremaneira pelo individualismo crescente, na qual o parecer era mais importante que o ser. Não tardou para que o vestuário fosse concebido como um dos mais importantes símbolos de representação da aristocracia. Nessa sociedade de corte, as figurações dos indivíduos dependiam dele e os significados contidos nas nuanças vestimentares refletiam uma cultura de aparências.

17.    O fenômeno das aparências carrega consigo os códigos do que é aceito pela sociedade e do que é inaceitável. Daniel Roche (2007) explora esse fenômeno a partir do vestuário enquanto uma materialização da cultura que deve ser estudado como a expressão dos costumes. Possuir a aparência inadequada é um dos principais temores dos membros da corte. O seu comportamento, a partir do processo civilizador em curso no velho continente, foi regulado por uma série de padrões, sobretudo, no que se refere às aparências. Havia uma preocupação excessiva com o que os cortesãos vestiam, assim como, com o valor material e imaterial do que se vestia. Portanto, as roupas passaram a definir padrões a serem seguidos e estabeleceram uma uniformidade de estilo que garantia aceitação social.

18.    Mesmo que em O processo civilizador (1990) Elias não investigue especificamente o vestuário, ele nos apresenta uma análise dos modos civilizados do homem, contemplando em suas reflexões questões da aparência. Na obra, o autor lança a seguinte indagação: “como os homens se tornaram educados e passaram a tratar-se com boas maneiras?”[3] Elias nos esclarece que os modos de conduta foram alvo de um adestramento sociocultural e psíquico. Portanto, o homem foi submetido a um processo de civilização dos costumes. Nesse sentido, parece razoável pensar a prática de vestir o corpo a partir dessa mesma dinâmica. Assim, podemos mencionar que vestir-se é um ato simbólico, e não uma atitude natural do homem. Desde a pré-história, as roupas e os ornamentos estão impregnados por uma forte carga de significados. Eles não cumprem apenas funções protetoras.

19.    Portanto, através de diferentes abordagens o tema da moda vem sendo debatido. No Brasil, na década de 1950, Gilda de Mello e Souza escreve O espírito das roupas, um dos primeiros estudos sociológicos sobre a temática. Nessa tese defendida na USP, ela pesquisa a moda brasileira no século XIX a partir da análise de fotografias e algumas representações pictóricas. O pioneirismo de seu trabalho vai além da proposição do objeto, pois a autora inclui em sua bibliografia livros de ficção do período abordado, a fim de contemplar a descrição dos trajes contidos nessas obras. A partir de uma grande erudição, Mello e Souza relaciona as modificações do vestuário com a criação das fábricas, apresentando uma visão classista do fenômeno.

20.    Anos mais tarde, no final da década de 1980, é editado na França O Império do Efêmero. Nele, Gilles Lipovetsky concebe a moda como um fenômeno histórico relacionado às transformações sociais que caracterizam a modernidade, como a individualização dos sujeitos através da aparência. Na perspectiva do autor, houve uma espécie de democratização do vestir, na medida em que os estilos eleitos podem ser reproduzidos industrialmente em grande escala. Esse processo possibilita uma maior sofisticação da produção em pequena escala e uma consequente consolidação da alta costura.

21.    A perspectiva cultural marcou alguns dos principais estudos históricos sobre a moda. Exemplo disso é o clássico trabalho do historiador francês Daniel Roche, A cultura das aparências, publicado originalmente em Paris em 1989 e no Brasil em 2007. O estudo do fenômeno das modas, estilos, gostos e etiquetas proposto pelo autor teve como base um consistente e exaustivo trabalho de pesquisa, demonstrando clareza sobre o tema. A obra lança seu olhar sobre várias categorias de análise como o rico e o pobre, o dominado e o dominante, a cidade e o campo, o real e o imaginário, o popular e o erudito. Isso possibilita compreender a indumentária como um importante instrumento de acesso ao espaço social e comportamental do período investigado, alcançando os meandros dos costumes burgueses, nobres e trabalhadores especializados dispostos em ofícios.

22.    A partir desse breve apanhado, fica evidente que desde o século XIX a história da moda já vem sendo debatida pelos pesquisadores. Mesmo assim, ela é um campo pouco explorado dentro das possibilidades da pesquisa histórica, se comparada com outros objetos de investigação já consolidados na historiografia ocidental. Isso nos estimula a produção de novas análises sobre o objeto, a fim de contemplar o porquê as pessoas vestem que o vestem e, ainda, de que maneira o meio sociocultural circunscrito a uma época contribui para a criação de um estilo em detrimento de outro.

23.    Nessa direção, ao propormos uma investigação sobre o vestuário nobre feminino, reiteramos a importância atribuída ao vestuário - sua criação, adaptação, simbolismos, ressignificações, utilizações - na compreensão dos movimentos históricos que contribuíram para a construção de uma cultura do gosto e das aparências na sociedade carioca oitocentista, em plena transformação no período abordado. A partir das influências da indumentária europeia, acreditamos ser possível compreender o processo de criação e o porquê do surgimento de diferentes formas de uso da vestimenta feminina local. 

O diálogo com as imagens 

24.    Dentre os principais registros iconográficos sobre o vestuário nobre feminino durante o período explorado, encontram-se as obras de Jean-Baptiste Debret. Suas imagens constituem lugares de memória da história brasileira. Como pintor oficial da corte sediada no Rio de Janeiro, ele dedicou-se a retratar personalidades e momentos da família real. Além disso, sensível às questões sociais, era no cotidiano das figuras comuns - negros e o povo em geral - que aquarelava em harmoniosos traços e cores suas singulares obras, formando um rico painel artístico e histórico do país.

25.    Ao longo de sua estada no Brasil entre os anos de 1816 a 1831, o artista francês teceu uma crônica de época sem precedentes, pautada em um trabalho prodigioso de pesquisa, observação e documentação. Observador atento do meio social brasileiro e de sua paisagem humana, em suas obras registrou minuciosamente os tipos brancos e negros, reproduzindo com grande preocupação de detalhes suas vestimentas. Desfilam um elenco enciclopédico de características das vestimentas, dos adornos, dos penteados, dos usos e costumes, o que possibilita considerar suas obras como um dos documentos visuais mais ricos dos costumes e das variadas versões do vestuário.

26.    Ao falarmos em vestuário não podemos deixar de fazer menção às imagens, uma vez que ele é expresso através de formas, cores e texturas que são aqui reproduzidas nas obras debretianas. A utilização de imagens como fonte histórica é cada vez mais explorada pelos historiadores. Peter Burke (2004) ressalta a sua importância ao mencionar que elas “constituem um guia para mudanças de ideia sobre doença e saúde e são mais importantes como evidência de padrões de beleza em mutação, ou da história da preocupação com a aparência tanto de homens como de mulheres.”[4] Segundo a argumentação desse historiador, podemos inferir que através das imagens é possível observar as mudanças ocorridas com o gosto e com o parecer, na medida em que elas possuem a dupla função de produzi-las e reproduzi-las. As imagens permitem, portanto, testemunhar antigas formas de gosto ou de deleite.

27.    O fato é que as imagens ocupam um lugar central na cultura Ocidental. Antes mesmo da invenção das primeiras formas de escrita, o homem já produzia imagens, como bem atestam as pinturas rupestres do paleolítico. E, como mencionamos, o campo da moda manifesta-se, sobretudo, através de imagens. A descrição escrita ou verbal de uma vestimenta não é tão eficiente quanto algumas de suas formas figurativas como, por exemplo, pinturas, aquarelas, desenhos, gravuras, etc.

28.    Em um universo social povoado por imagens, estas constituem local privilegiado de memória e, na medida em que são reconfiguradas através dos olhares, seu tempo é diferente do nosso. Pensando nessas especificidades, o pesquisador Georges Didi-Huberman (2011) discute o conceito de anacronismo das imagens. Partindo da premissa que elas são perpassadas por tempos heterogêneos e por diferentes memórias, o autor postula a existência de duas dimensões na imagem: a dimensão sincrônica, que diz respeito a sua época de confecção e vincula-se à base social, cultural e ideológica por trás da imagem; e a dimensão diacrônica, que remete aos problemas de periodização e cronologia, ou seja, quando desponta algo que destoa na imagem. O que nos leva a concluir que o tempo da imagem se desdobra, possibilitando que ela possa se relacionar com outras imagens, de outro tempo e espaço.

29.    Ao atentarmos para os desdobramentos das imagens, nos aproximamos do que Aby Warburg chama de sobrevivência das imagens - nachleben. O problema levantado por Warburg é que, ao nos colocarmos diante de uma imagem, estamos também diante de um tempo complexo, de um tempo que é o tempo da feitura da imagem, mas é também o tempo pretérito das referências e elementos a que essa obra alude, bem como o tempo presente da apreciação. As consequências dessa perspectiva estariam na desterritorialização da imagem e do tempo, ou seja, o tempo da imagem não seria necessariamente o tempo da história. Outra questão é que a imagem não comportaria em si uma evolução.

30.    Para articular seu pensamento, Warburg elegeu como categoria central a ideia de memória (mnemosyne). Conforme defende, se é possível acompanhar as imagens de períodos remotos na sua migração incessante, no seu deslocamento histórico e geográfico, é porque elas permanecem como tensão enérgica, como vida em movimento, cujos traços importantes e significantes estão inscritos na memória da humanidade.

31.    Warburg não se interessava necessariamente pelos objetos e obras de arte. Para ele, a imagem constituiria um fenômeno antropológico total, uma cristalização, uma condensação particularmente significativa de uma cultura em um determinado momento de sua história. Tudo isso estaria articulado pela memória coletiva, categoria central do pensamento warburguiano. É a partir dela que se estrutura o conceito de nachleben, a sobrevivência. A seu modo, ela não nos fala de fósseis vivos, mas de tempos distintos que se sobrepõem no objeto, isto é, na imagem.

32.    Nessa perspectiva, portanto, as imagens traduzem tendências profundas de uma determinada época, de uma cultura, das suas concepções de figuração. São sobre esses aportes teóricos que analisamos o conjunto de imagens produzidas por Jean-Baptiste Debret. Devido à grande dimensão da obra desse artista, nesse texto exibimos apenas três das imagens produzidas no Rio de Janeiro entre 1822 a 1831, nas quais é possível observar detalhes do vestuário nobre feminino.[5] A escolha por esse recorte espaço-temporal explica-se pelo fato que é nessa cidade que se estabelece uma sociedade de corte após a vinda da Família Real portuguesa, local privilegiado onde as influências da indumentária europeia serão absorvidas pelo vestuário feminino das mulheres que ali habitavam. Além disso, esse período corresponde a parte considerável dos anos em que Debret permaneceu no Rio de Janeiro registrando seus hábitos e costumes. Por mais que ele tenha feito algumas incursões pelo interior do país, foi em terras cariocas que o artista realizou a maioria de seus trabalhos. Não resta dúvida de que o Rio de Janeiro é tomado como o ponto central de desenvolvimento do processo civilizatório a que Debret acreditava estar assistindo naquele momento.

33.    Sendo assim, sua obra constitui um documento histórico de significativo valor para o estudo da época. Em diversos momentos o artista recupera sua posição privilegiada como testemunha dos eventos que relata dos quais participara efetivamente, seja como artista-viajante residente na cidade, seja como pintor oficial da corte, para produzir suas imagens. Em sua crônica do cotidiano, reproduziu de maneira minuciosa, em desenhos, aquarelas e óleos, os serviços e produtos apregoados pelos negros de ganho, as tradições do carnaval, os diversos tipos de enterros, os castigos de escravos em praça pública, a miríade de tipos urbanos, as procissões, a prostituição, a medicina, etc. E, em todas essas cenas, registrou com detalhes precisos os pormenores das vestimentas. 

O vestuário nobre feminino nas obras de Debret 

34.    O estabelecimento da Família Real e da corte portuguesa no Rio de Janeiro em março de 1808 promoveu na Colônia “um processo amplo e complexo que envolveu diferentes regiões e sociedades, todas elas parte de um mesmo mundo em convulsão.”[6] Gradualmente, as terras além-mar viram aflorar pela primeira vez o Estado em toda a sua complexidade, sobretudo a partir da implantação de novas instituições públicas.

35.    Lentamente, ao longo do Primeiro Reinado, os hábitos e costumes da sociedade brasileira sofreram significativas transformações. No velho continente estava em curso um processo de codificação, fundamentação e institucionalização de regras próprias de pacificação do espaço social, de controle e de monopolização da violência, das condutas sociais de convivência e mesmo de intimidade, com rígidos padrões de monitoramento das emoções e dos afetos. Essa dinâmica eminentemente aristocrática em sua origem é o que Norbert Elias denominou de processo civilizador.

36.    Desde o princípio do período renascentista, surgiram tratados sobre o comportamento de pessoas em sociedades que buscavam regular o vestuário, a maquiagem, o uso dos acessórios, como o leque, as joias, os adereços nas vestes, os adornos de cabelo. Houve uma verdadeira proliferação de manuais de condutas, cujo objetivo era estabelecer a maneira pela qual os cortesãos deveriam se apresentar em público, ou mesmo no ambiente privado. Nesse contexto, a representação do poder, do estatuto social e econômico dos indivíduos se dava pelo vestuário que refletia a opulência da moda das grandes cortes aristocráticas.

37.    Não tardou para que esse processo civilizador se expandisse à corte portuguesa que se encarregou de trazer para os trópicos os costumes e hábitos reconhecidos como civilizatórios. Assim, o Estado português logo procurou estabelecer um processo de organização social, pautado nos padrões europeus. Para tanto, se utilizou dos usos e costumes trazidos pelos nobres recém-desembarcados, que estavam vinculados culturalmente a uma organização administrativa absolutista, centralizadora e aristocrática.

38.    O mundo da moda acompanhou a ebulição dos acontecimentos políticos e sociais. E, “com tantas manifestações festivas a realizar e muitas novas modas a consagrar, o Rio de Janeiro convertia-se em centro difusor.”[7] As importações de tecidos e outros objetos, assim como, a confecção local de roupas, tornaram ainda mais latente as demonstrações de influência e poder através da exibição vestimentar. Os signos do vestuário passaram a demarcar a origem e a posição dos indivíduos, reforçando os códigos estabelecidos através dos trajes, dos modelos, dos tecidos, das cores. De acordo com os moldes da sociedade de corte, o ser e o parecer se confundiam e a indumentária era o principal meio de se tornar visível a todos.

39.    Códigos e manuais de conduta foram importados da Europa e passaram a vigorar no país. Como exemplo, havia o Código do Bom-Tom[8] publicado pela primeira vez no século XVIII. Seu conteúdo seguia o mesmo teor dos demais compêndios dessa literatura, ou seja, apregoava rígidas regras de comportamento que se estendiam ao uso do vestuário. Além das determinações sobre o caráter moral, de higiene, de beleza, etc., eles também definiam as limitações do uso de adornos e de tecidos de luxo.

40.    Logo a sociedade local sentiu a necessidade que era preciso entronizar “valores e modos europeus, civilizando os costumes, eliminando os ares coloniais,”[9] a fim de se aproximar da aristocracia portuguesa que havia ali se instalado. Também era necessário reproduzir nas vestimentas os padrões europeus. Nesse contexto, houve numerosas apropriações de códigos culturais pelo vestuário feminino. Como resultado, iniciou-se um processo de ressignificação dos trajes, acompanhado por adaptações do vestuário ao clima dos trópicos.

41.    Traços da estética da moda francesa foram incorporados pelo vestuário feminino da corte, a partir da vinda da Família Real - sobretudo, o denominado Estilo Império que seguia os padrões inspirados em Josefina de Beauharnais, esposa de Napoleão I. Primeiro em Portugal, e posteriormente no Rio de Janeiro, esse estilo foi amplamente copiado pelas mulheres da nobreza, e se tornou o favorito entre nobres e plebeias [Figura 1].  

42.    Com a queda do antigo regime, a estética dos grandes volumes para os trajes femininos foi abandonada. A pureza das formas e a frugalidade dos volumes substituíram a expressiva quantidade de tecido, a proeminente extensão das formas e a extravagância de acessórios. Surgia assim, o Estilo Império que apresentava uma nova silhueta longilínea. Provavelmente esse estilo logo foi incorporado pelas damas dos trópicos, pois amenizava o calor intenso e suas consequências como suor, mau odor corpóreo, picadas de insetos, coceiras e mal-estar fisiológico.

43.    A observação proporcionada pelas aquarelas de Debret, dos minuciosos detalhes desse tipo de vestimenta, nos permite caracterizar essa estética. Além da silhueta mais longilínea, o corte da cintura alta é marcado logo abaixo do busto, com decote generoso e com mangas curtas bufantes. O tecido usado para confecção do vestido é geralmente fino e transparente, de musselina, de seda pura, de cambraia, etc. A palheta de tonalidades claras compõe o seu padrão cromático. Sobressai ainda da obra de Debret que além dos adereços tradicionais portugueses, como os xales e os véus de renda, o vestuário no Brasil também foi influenciado pelos padrões franceses da ostentação de joias e de ricos aviamentos. O uso de chapéus, guarda-sóis e leques constituíam acessórios indispensáveis para amenizar o calor escaldante. Diante da variedade de penteados, as perucas não foram muito usadas devido às elevadas temperaturas [Figura 2].

44.    No entanto, na nova sede da corte apenas um número restrito de mulheres tinha posses para desfilar com os vestidos do novo estilo. Somente as nobres possuíam o privilégio de poder vestir-se com sedas, cambrais, musselina, cassas,[10] serafinas,[11] casimira, filós,[12] rendas ou com os luxuosos debruados feitos em fios de metais nobres como o ouro e a prata. Essa estética contrastava com os tecidos mais grosseiros e baratos usados pelas mulheres de poucas posses, como o algodão grosso, o riscado,[13] a lã, a chita, ou o zuarte.[14] A veste modesta era composta por “saia e blusa, [...] um xale franjado e bolsinha de palha.”[15]

45.    Determinadas peças da indumentária feminina apresentavam um significado especial. Os sapatos, por exemplo, recebiam destaque já que os vestidos eram encurtados, permitindo assim a exposição dos pés. Largamente usados como peças ornamentais, os mantos e véus de renda demonstravam o tradicionalismo preservado. A influência espanhola era verificada nos penteados em tranças finamente montados no alto da cabeça, finalizados com um pente ricamente adornado. Dentre as joias a peça em destaque eram os brincos, fartamente usados pelas senhoras e até mesmo pelas escravas.

46.    Tendo em vista que nesse período a maioria da população não sabia ler nem escrever, as cores do vestuário muitas vezes representavam um complexo código simbólico. Elas poderiam expressar vários significados que estavam em constante transformação, como o preto do luto, o rosa das boas intenções, o lilás da seriedade, ou o azul de alma limpa. Por essa razão, “o significado de uma cor é, em grande parte, a história da cor. É um significado adquirido pelo movimento através do tempo.”[16] O branco, por exemplo, simbolizava riqueza e prosperidade, sendo utilizado principalmente por moças nobres. Também proporcionava às mulheres um sinal de castidade e pureza. Ademais, o emprego de tecidos dessa cor condizia com o clima tropical do Rio de Janeiro, auxiliando a amenizar o calor.

47.    Conforme podemos observar, vários elementos que compõem o vestuário da época podem ser contemplados nas imagens de Debret. Nesse caso, a análise iconográfica, ao auxiliar na observação das cenas do cotidiano, possibilita a verificação - ainda que especulativa, por se tratar do olhar do artista - do vestuário feminino que passa a ser utilizado no Rio de Janeiro. Essa vestimenta permite revelar a que camada social pertencia essas mulheres, sua influência política, seus limites patrimoniais, seus conhecimentos de conduta e civilidade, sua educação, e seus interesses.

48.    Para finalizar, exploramos um pouco mais uma das imagens de Debret. Em Vendedor de flores e de fatias de coco (1829) [Figura 3] é possível visualizar uma nobre senhora vestida com uma farta mantilha de renda que veio a substituir as capas anteriormente muito usadas para as saídas à rua. O vestido que ela traja é leve e menos volumoso, com tecido ricamente adornado, cintura marcada logo abaixo do busto e saia de filó preto bordado, trabalhada nos detalhes da barra com plissados, bordados e rendas. O comprimento dessa peça permite a exposição dos tornozelos encobertos por meias brancas, o que realça os sapatos que são confeccionados delicadamente com toda minúcia. Os cabelos são salientados pelo penteado elaborado, com o uso de flores e presilhas ricamente ornamentadas. O colo farto da senhora é destacado pelo uso de colares e medalhão que acompanham a mesma sofisticação dos brincos pendentes em suas orelhas. O uso do leque é imprescindível diante das altas temperaturas. A bolsa retícula, de alça pendurada ao braço, completa a rica indumentária.

49.    Certamente tratava-se de alguém de ricas posses, pois o mesmo requinte das vestes está presente nos trajes das consortes e damas de companhia negras que aparecem em segundo plano. O escravo de ganho que divide o primeiro plano da cena com a nobre senhora, também está trajado de forma empoada, embora de pés descalços. Sua postura denota altivez no porte, e trata-se provavelmente de um escravo pertencente a um afortunado senhor que busca mostrar sua riqueza vestindo-o com especial cuidado da aparência.

50.    Portanto, ao redigir esse breve texto, resultado de uma pesquisa maior que atualmente desenvolvo em meu doutorado em História, espero contribuir para uma reflexão crítica sobre o vestuário nobre feminino em um momento de significativa transformação nos hábitos e nos costumes da sociedade brasileira, temática essa ainda pouco estudada no recorte espaço-temporal em que conduzo minha investigação. Mesmo com o desenvolvimento frequente de pesquisas na área acadêmica sobre moda, indumentária e vestuário, ainda há períodos históricos do Brasil que carecem de análise. Além disso, explorar o vestuário tendo como fonte histórica as imagens elaboradas por Jean-Baptiste Debret, sinaliza para uma nova e fecunda possibilidade de abordagem da importante obra que esse artista produziu enquanto permaneceu no Brasil.  

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[1] Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), dedicado ao estudo das seguintes temáticas: Jean-Baptiste Debret, história do vestuário e da moda, história da arte, pintura brasileira oitocentista e Primeiro Reinado. E-mail para contato: lopes.ch@hotmail.com

[2] ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo: Senac, 2007, p. 54.

[3] ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. 2ª ed. vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 09.

[4] BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004, p. 11.

[5] Essas imagens integram um conjunto maior de obras de Jean-Baptiste Debret que analiso em minha pesquisa de doutorado em História pela PUC-RS, com a orientação do professor Dr. Charles Monteiro. É, portanto, através desse corpus documental que investigo o vestuário nobre feminino, entre os anos de 1822 a 1831, na sociedade de corte do Rio de Janeiro.

[6] SLEMIAN, Andréa; PIMENTA, João Paulo G. A Corte e o Mundo. São Paulo: Alameda, 2008, p. 08.

[7] SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 304.

[8] ROQUETTE, José Inácio. Código do Bom-Tom. Regras de Civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[9] RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções – Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2002, p. 14-15.

[10] Tecido fino ou transparente de algodão ou de linho.

[11] Tecido fino de lã, usado para forro.

[12] Espécie de cassa; tecido reticular de malha fina.

[13] Tecido barato de algodão com riscos de cores.

[14] Pano de algodão azul ou preto. Ganga azul.

[15] CHATAIGNIER, Gilda. História da Moda no Brasil. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010, p. 52.

[16] HARVEY, John. Homens de Preto. São Paulo: Ed. UNESP, 2003, p. 17.