Origens, tipos e estilistica da ornamentação dos oratórios domésticos baianos oito-novecentistas

Claudio Rafael Almeida de Souza [1]

SOUZA, Claudio Rafael Almeida de. Origens, tipos e estilistica da ornamentação dos oratórios domésticos baianos oito -novecentistas. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 2, jul.-dez. 2019. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XIV2.04

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1.     O oratório[2] ou nicho foi um móvel indispensável na vida doméstica da Bahia, a ponto de ser utilizado em número maior que outros móveis. Esses objetos, como moradas para as imagens de santo, assumem diversas conformações plásticas, enquanto o possível uso, gosto e condições financeiras de seu dono lhe imprimem características arquitetônicas e de móveis. Nos oratórios baianos encontrados em Salvador que remontam dos séculos XIX e XX, as composições decorativas na sua maioria trazem consigo características de estilos que estiveram presentes no mobiliário, em edifícios religiosos e em residenciais nas respectivas épocas. Hoje, conseguimos encontrar alguns tipos utilizados no antigo exercício religioso de orar em nichos repletos de imagens de santos devotados.

2.     Ao recordar os costumes baianos dos séculos XIX e XX, a cronista Hildegardes Vianna (1973) define o quarto de santo encontrado nas residências oitocentistas como um cômodo (de tamanho pequeno ou grande), uma nesga de espaço, debaixo da escada que conduzia ao sótão ou cômodo para guarda de imagens, e/ou um dormitório ocupado por pessoas idosas contemplativas, que se vangloriavam em dormir bem acompanhadas pelos emissários celestes. Nesse quarto, todas as alegrias e tristezas eram relatadas entre preces aos bentos simulacros bem guardados em um nicho de madeira forte, torneada e envernizada, sobre banquetas de pés sólidos, lindamente recobertas por toalhas magníficas. Nas paredes do quarto, em quadros expressivos, outros tantos santos e bem-aventurados repetiam a mesma iconografia das imagens fora ou ao redor dos nichos cheios de bentinhos, medidas, rosários e cordões bentos. Também continham os retratos de entes queridos já falecidos - avós, tios, parentes, amigos -, num eterno preito de saudade. Tudo de acordo com as posses de cada qual.

3.     Sendo então testemunha do fervor católico,[3] nos diversos tipos e em diferentes localidades, o oratório possui forma alcançada com elementos decorativos que os tipificam estilisticamente. Os ainda encontrados na cidade de Salvador, além de possuírem a funcionalidade de abrigo para os santos de devoção, assumem também a responsabilidade, principalmente nas residências, de ambientar e ornamentar o local de contato entre o fiel devoto para com o sagrado - e, dependendo do local ou caso, o cômodo em que está inserido.

4.     A ornamentação dos oratórios domésticos é uma temática pouco abordada por historiadores da arte em âmbito nacional. No caso dos de origem baiana, especificamente, apenas a historiadora da arte Maria Helena Ochi Flexor, em 1970, dedicou-se a tal temática. Em seu estudo, três laudas são completadas com características ornamentais analisadas por meio de descrições em inventários, testamentos, autos de partilha, bem como pela observação de artefatos preservados em alguns museus de Salvador. Entretanto, o estudo intitulado O Mobiliário Baiano: Séculos XVIII e XIX - que teve sua última reedição intitulada Mobiliário Baiano (2009) -, não contempla totalmente os artefatos em questão, principalmente aqueles ainda utilizados no exercício religioso da vida privada e os confeccionados na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX.

5.     Portanto, o presente artigo busca traçar especificamente a ornamentação de um número considerável de exemplares baianos dos séculos XIX e XX, encontrados em residências, asilos, antiquários, museus e capelas da cidade de Salvador. O estudo realizado através de busca, catalogação e nova análise de objetos contemplados e não contemplados por Flexor, nos remeteu à composição arquitetônica de igrejas, residências, retábulos-mores, bem como a móveis dos respectivos séculos, e nos permitiu revelar suas origens, tipos e estílistica, como também a inspiração para a conformação plástica dos oratórios.

6.     Ainda no âmbito metodológico, nos amparamos em autores como Canti, Freire e Flexor através do método histórico e dos métodos analítico-sintético, analítico-comparativo e indutivo-dedutivo. Nos valemos também da metodologia de análise iconográfica proposta por Erwin Panofsky,[4] para compreensão da plasticidade e elementos da decoração dos objetos estudados.

7.     Com pressuposto e considerando a utilidade dos oratórios, inserimos os objetos, assim como Flexor (2009), na categoria dos móveis de oração/devoção. Com relação à estilística, adotamos a nomenclatura dos estilos gerais da arte europeia ocidental nos anos de uso na Bahia e acrescentamos estilos não trabalhados pela autora. Sendo assim, os estilos que aqui destacaremos são: neoclássico; neogótico; art noveau; e neocolonial.

8.     Entendemos como ornamentação dos oratórios frontões, colunas, almofadas, bilros, pináculos e outros ornatos ou motivos produzidos por diferentes técnicas como pintura, marchetaria, relevo, douramento, torneado, talha ou recorte em madeira. Muitos dos motivos e ornatos arquitetônicos encontrados possuem origem na Grécia, que estabeleceu um repertório decorativo riquíssimo a partir do século VI a. C. Os ornatos helênicos foram adotados em Roma, com poucos acréscimos, e se difundiram por todo o Império Romano. A partir desse repertório greco-romano, os motivos ornamentais multiplicaram-se no Ocidente, tornaram-se complexos e contribuíram para determinar estilos. Nestes, as tendências culturais e históricas dominantes misturam-se a outras ricas tradições e influências, como as do islamismo, das civilizações pré-colombianas e africanas, e das modas - ora passageiras, ora com força inovadora e permanente (MOUTINHO; PRADO, LONDRES,  2011). 

9.     Nos oratórios, os ornatos arquitetônicos, são como em outros móveis, arremates, elementos decorativos, reproduzidos simetricamente e em expressão reduzida, tendo como referência a medida humana. Os primeiros motivos são expressados de forma retilínea, como, caneluras, denteados, gotas, e seguem-se outros que se aproximam de formas naturais estilizadas, como óvalos, volutas, ondas, palmetas, ovais ou gomos. A tradução de elementos do mundo concreto é o passo seguinte, por meio do acanto, do coração, dos florões e dos vasos de flores. Aparecem também elementos como a hóstia, a cruz e o cálice.

10.   Na maioria dos interiores dos oratórios encontrados, pode ser observada ornamentação também nos painéis de fundo. Neles, as pinturas com ou sem douramento, forros próprios para oratórios, papéis de paredes e de embalar presentes florais ou geométricos, denunciam a criatividade dos proprietários - em específico, os proprietários de pouca condição financeira. No jornal Correio da Bahia de 29 de maio de 1872, por exemplo, encontramos o anúncio Amostra de Papel, cujo número “65” informava vender 1.700 amostras de papel, com tamanho superior aos das folhas de papel de cores liso que se vendiam no mercado, servindo para forro de oratórios, presépios, salas, quartos, livros, caixas, caixinha, e baús, cada folha por 100 réis.

11.   Com relação à cromaticidade, há um leque de cores encontradas como o azul, branco, amarelo, perolado, vermelho e dourado na pintura do painel de fundo ou do papel de parede transformado em plano de fundo, bem como as cores verde, vermelho, laranja, lilás, também encontradas no painel de fundo com papel de embalar presentes. Apesar das diversas cores encontradas, a cor predominante é o marrom, em suas várias tonalidades. Seja de oratório para oratório, bem como em um mesmo oratório, a variação parte desde as tonalidades mais claras até as mais escuras. Essas tonalidades podem não ser as mesmas do momento de criação, pois os objetos sofreram com ações do tempo e o envernizamento/enceramento sofreram alteração química, não exercendo mais a sua função. Além disso, alguns oratórios passaram por restauro.

12.   A descoloração anormal da madeira denota frequentemente uma condição de degradação das suas características. Faixas vermelho-acastanhadas ou pretas em certas madeiras são majoritariamente o resultado de danos causados por insetos ou, se na sua parte inferior, por queimaduras de velas. Na sua maioria, a descoloração é meramente uma indicação de dano, não afetando por si só as propriedades das madeiras. Também o apodrecimento causado por alguns fungos produz alterações características nas cores da madeira, coloração que assim se torna sintomática da degradação do material. Nos oratórios encontrados, porém, isso não é tão aparente. O que vimos foram vários pedaços faltantes, principalmente nos oratórios encontrados no Lar Franciscano Santa Isabel, no bairro da Saúde, Salvador.

13.   No início dos oitocentos, a plasticidade dos oratórios domésticos era constituída seguindo a estilística neoclássica nos nichos com três faces de vidro do século anterior. No entanto, eram arrematados por volutas em “S”, duplos “C” e/ou “S” com “C”, globo, pinhas, degraus escalonados com cruz torneada ou colunas torneadas,[5] aplicadas às extremidades laterais ou próximo às mesmas. Existiram também os oratórios que conformavam, junto com as volutas, uma meia cúpula vazada [Figura 1]. O Museu da Ordem Terceira do São Francisco e o Abrigo Santa Isabel possuem um repertório vasto desses exemplares citados. Além dos locais citados, também encontramos exemplares que tipificam esse primeiro grupo em residências e antiquários. Com isso, podemos afirmar que oratórios com essa conformação plástica são muito comuns ao gosto baiano.

14.   O número significativo de oratórios encontrados sofreu influência de um altar-mor tipo baldaquino arrematado por cúpula vazada sobre volutas em estilo neoclássico.[6] Esse altar-mor tipo baldaquino arrematado por cúpula oval vazada sobre seis volutas em “S” está inserido no agrupamento, realizado por Luiz Alberto Ribeiro Freire em A Talha Neoclássica (2006),[7] de doze tipos diferentes de retábulos-mores neoclássicos referentes à reforma ornamental do século XIX na Bahia. O primeiro retábulo do tipo foi inaugurado na capela-mor da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim pelo entalhador Antônio Joaquim dos Santos, em 1813-1814 [Figura 2], e serviu de modelo para outros nove tipos encontrados nas igrejas, na maquete do retábulo principal de Nossa Senhora das Dores, da casa dos Santos da Ordem Terceira do São Francisco, bem como para o altar doméstico doado pela família Turvo a Henriqueta Catharino, encontrado no Instituto Feminino da Bahia [Figura 3].

15.   O grande número de oratórios com essa conformação plástica possivelmente tem as mesmas explicações que o das reinterpretações nos retábulos-mores. Freire articula duas possibilidades. A primeira relaciona-se ao culto ao Senhor do Bonfim (o Cristo Crucificado) e toda pompa da ornamentação neoclássica realizada na igreja que mais desembolsou para a reforma ornamental no século XIX. A segunda possibilidade consiste na relação com o ufanismo na época da Independência da Bahia e com o artista baiano, cachoeirano, Joaquim Francisco de Matos Roseira, que possivelmente lutou nos embates da independência, ganhando uma medalha de condecoração e logo após adotando o Roseira no sobrenome. Esse artista foi o que mais reinterpretou o retábulo tipo baldaquino em toda a Bahia e teve “uma oficina de talha muito operosa na Bahia oitocentista” (FREIRE, 2006, p. 353).

16.   Na Bahia, como elucida Freire (2006, p. 358), o retábulo do tipo baldaquino “parece” ter sido introduzido em meados do século XVIII. O exemplar mais antigo, preservado da avalanche reformadora da talha no século XIX, foi o retábulo-mor da Igreja do Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, das freiras franciscanas capuchas, entalhado pelo “mestre entalhador Antônio Mendes da Silva em 1755” (ALVES apud FREIRE, 2006, p. 358). Nele, verifica-se a conformação plástica de um baldaquino com excesso de colunas - no caso dez -, que caiu no gosto dos baianos a ponto de permanecer em voga por todo o século XIX.

17.   Essa afirmação nos deixa a possibilidade de que possivelmente o baldaquino referido possa também ser influenciador da família de oratórios aqui trabalhada. Principalmente, ao observar a anotação de Tilde Canti (1985, p.195) dizendo que, nos documentos baianos de fins do século XVIII e princípios do XIX, foram também localizados móveis torneados, paralelamente a outros no estilo neoclássico, de pernas de curva e contracurva, que, por sua vez, continuaram a ser usados ainda durante o século seguinte. Porém, há a hipótese de que o baldaquino oitocentista do Bonfim tenha derivação do baldaquino anterior realizado em meados do século XVIII. Afinal, o seu construtor deixou um exemplar na Igreja do Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, onde demonstra conhecer um tipo de baldaquino em significativa evolução. Todavia, essa formulação não tem como ser comprovada, tendo em vista que não se tem registro oral, escrito ou desenhado do retábulo setecentista da igreja das irmãs capuchas.

18.   Os artificies favoreceram parcialmente, nos oratórios desse período, um repertório ornamental clássico, formado por vasos de flores, estrelas, palmetas, florões, e a simplificação das linhas de pilastras e arremates de platibandas, com ornatos em forma de pináculos. Dois exemplares por nós encontrados demonstram que esse foi, possivelmente, um tipo comum no século XIX. Uma espécie de vitrina com frontão entalhado vazado com motivo de vaso neoclássico, com flores, e no seu interior uma encenação com a iconografia do Sacrifício de Abraão, seus atributos e seus filhos Isaac e Jacó denotam a sacralidade do objeto.

19.   Aparecem também oratórios trípticos, finalizados plasticamente com motivos neoclássicos inspirados nas ordens clássicas da arquitetura que se constituem em colunas, ondinas, volutas - todos eles libertos de linhas rigorosas, com um tratamento mais delicado e leve. Esse tipo também é muito comum ao gosto do baiano, tanto que atravessa o período e sofre variações com a estilística neogótica. Por ser uma descoberta inteiramente nova, não encontramos nenhum escrito que ilustre e mencione a plasticidade dos exemplares localizados na Ordem Terceira do São Francisco e no Antiquário Nova Moreira [Figura 4].

20.   Esse móvel de devoção mereceu bastante atenção nas residências baianas, principalmente no século XVIII: possuía, além de numerosas imagens, outras ornamentações, tais como jarrinhas da Índia com ramalhetes, figuras de leões e outros animais, lâminas das figuras dos Santos, castiçais de bojo de estanho, lâmpadas de latão, estantes, toalhas de linho com rendas de acordo com a moda, no passar dos anos.

21.   Durante o século XIX, surgiram oratórios em forma de igrejas ou capelas que apresentam influência do estilo neogótico encontrado em igrejas e outros móveis com o mesmo estilo [Figura 5]. Destacam-se entres os motivos a flor de lis, acantos, rosetas, pináculos, ogivas, nervuras em adaptações mais ou menos livres, e bilros inspirados no gótico flamejante. É nesse período que alguns ornamentos representam o cálice, o coração e a hóstia. 

22.   O interior da maioria desses exemplares neogóticos possui papéis de oratório ou pinturas com volutas, estrelas pintadas e em apliques de madeira dourada, volutas e motivos geométricos. A temática floral já não se apresenta com papel principal, como no barroco e rococó.  Alguns deles não trazem nem mesmo decoração no painel de fundo, finalizados apenas na própria madeira, às vezes envernizada e/ou encerada. Todos eles carregam características do estilo das igrejas que serviram de inspiração, como a Igreja de Nossa Senhora das Mercês e a Igreja de Nossa Senhora dos Mares da cidade de Salvador.

23.   Com o passar dos anos, as variações dos oratórios são concebidas em formas mais sucintas, ligeiramente trabalhadas. As volutas em “S” encontradas nos arremates do tipo baldaquino vão perdendo a curvatura e tornam-se quase que imperceptíveis. Os oratórios das primeiras décadas do século XX passaram a ter tamanho mais reduzido. As volutas em “C” e o globo sustentando a cruz cedem lugar a pequenos degraus escalonados ou a um pequeno disco em madeira, que possui apenas a função de sustentação. Esses oratórios ainda trazem influência do neoclássico, contudo, já apresentam uma estilística moderna, igualmente do período.

24.   Os exemplares do tipo tríptico que possuem formas mais semelhantes às de igrejas e capelas nesse século, também assumem plasticidade mais sucinta em que ornamentos e arremates caracterizam de modo simplório os objetos. A ornamentação se distancia muito da dos oratórios encontrados no século anterior. Os motivos ornamentais pouco aparecem, tendendo ao gosto moderno. Os quatro oratórios do início do século XX com influencia neogótica encontrados apresentam linhas retas e madeira recortada com ângulos triangulares que remontam às esguias torres góticas revivalizadas [Figura 6].

25.   Nesse momento, surgem também oratórios com características do estilo art nouveau, em que a composição é formada com linhas sinuosas que se desdobram e se transformam predominantemente em formas geométricas. Os motivos da natureza como o acanto são estilizados com requinte. Encontramos dois exemplares com esse estilo. O primeiro em formato de pequena capela e o segundo em nicho com três faces de vidro [Figura 7], tendo como ornamentação além de bilros e colunas, uma sanefa recortada sobreposta numa espécie de platibanda, onde pode ser visualizada, centralizadamente, uma folha de acanto recortada. O acanto é encontrado também em relevo na porta e nas laterais. A cruz, ainda que modesta, se faz presente como modo de sacralizar a “casinha” dos santos que, por sua ornamentação, se torna verdadeira obra de arte. 

26.   Com o modernismo, que teve como marco a Semana de Arte Moderna de 1922, e o estilo neocolonial, que reviveu a arquitetura dos edifícios coloniais e abrangeu móveis e arquitetura no início do século XX, os artistas procuraram criar também nos oratórios ora formas simples, geométricas e desprovidas de ornamentação, valorizando o emprego dos materiais em sua essência - como a madeira aparente, em detrimento da pintura e motivos ornamentais -; ora acrescentando à ornamentação as curvas e contracurvas do neocolonial.

27.   Conforme Carlos Kessel em seu artigo Estilo, Discurso, Poder: Arquitetura Neocolonial no Brasil (1999), a trajetória do estilo neocolonial pode ser sinteticamente caracterizada como reação ao que era visto como excesso de estrangeirismo eclético na arquitetura que se fazia no Brasil do início do século XX. O estilo transmutar-se-ia em resistência ao Modernismo, calcada ideologicamente no tradicionalismo conservador. Isso se dá com base em uma recuperação seletiva de elementos arquitetônicos coloniais, na qual ocorre a glorificação da cultura produzida pela aristocracia rural, apontada como expressão máxima da nacionalidade. Ainda para Kessel, o conteúdo especificamente conservador do estilo neocolonial paradoxalmente é marcado pelo convívio com a busca pelas raízes que caracterizou a vanguarda modernista de 1922. Sendo assim, o neocolonial

28.                            afirmou-se na atuação institucional direcionada no sentido da permanência da tradição. Essa tradição, no caso dos elementos estéticos e estruturais recuperados do passado, não conseguia escapar já à época do epíteto de “invenção”. Seja como for, o importante é que a ideologia conservadora inscrita no neocolonial explica a sensação de desconforto com as influências exógenas, do ecletismo do passado ao art-déco e à arquitetura moderna que chegava. Essa rejeição constituiu-se em ponto de partida para a reflexão sobre as maneiras possíveis de se reagir com a reafirmação do primado da arquitetura tradicional. (KESSEL, 1999, p. 80). 

29.   As soluções concebidas pelos artificies permitem compreender a similaridade e inspiração adotada por eles com relação às fachadas de igreja e capelas da primeira metade do século, localizadas no interior da Bahia. Há semelhança, por exemplo, entre um oratório “moderno” [Figura 8a] e as capelas de Santa Luzia em Carrapicho [Figura 8b] e Barriguda [Figura 8c]. Outra semelhança está entre o frontão de um segundo oratório [Figura 9a] e a fachada neocolonial da Igreja de Senhor do Bonfim de Mulungu do Morro [Figura 9b].

30.   Recapitulamos que a capacidade criadora dos artistas está presente nas adequações plásticas do oratório como pequena capela reduzida para resguardo e esconderijo de santos, bem como de altar móvel, percorrendo estradas e locais distantes até então não habitados. Sendo utilizado pelo sacerdote para celebrar missas, realizar casamentos e batizar os inocentes, o oratório introduzido nas casas tornava-se guardião dos bens recebidos, dos costumes, da riqueza e da virtude.

31.   Com relação à datação dos artefatos, utilizamos um recorte temporal fixo; apesar disso, os oratórios são escassos e suas características imagéticas não nos permitem datá-los com exatidão. O recorte temporal que foi possível estabelecer balizou-se nos relatos dos proprietários dos objetos e em fichas catalográficas; por isso, nossa pesquisa analisou oratórios produzidos com datação aproximada entre o início do século XIX e meados do século XX.

32.   Identificamos que a execução dos oratórios de madeira estendeu-se até os anos de 1950 e 1960. Nesse interim, também foram utilizadas colunas de mármore à maneira neoclássica, que substituíram as cômodas, as papeleiras e as bancas nessa função, especialmente nas casas abastadas. Porém, ainda hoje oratórios são confeccionados por marceneiros, a pedido. Às vezes, se solicita um exemplar que é cópia de outro modelo do passado.

33.   De modo investigativo, partimos em busca de vestígios, através de indicações e pistas. Percorremos quase todos os antiquários, museus, abrigos, capelas, residências em que ouvimos dizer que existiam oratórios na cidade de Salvador. No entanto, estivemos longe de ter colhido informações e relatos sobre todos os oratórios domésticos baianos. Em alguns lugares não obtivemos êxito, devido à impossibilidade de visita e até mesmo recusa das pessoas em conceder entrevista. Acredita-se que ainda existem muitos oratórios a serem revelados e muitas portas de casas que ainda poderão se abrir.

34.   Com isso, compreendemos que os artistas conceberam/reinterpretaram, nos tipos de oratórios estudados, a solução plástica dos retábulos tipo baldaquino, das portas, dos ornatos e das fachadas dos edifícios religiosos. Os tipos de oratórios em grande número são de gosto comum do baiano, devido à forte devoção aos santos, como o Senhor do Bonfim, e o sentimento ufanista existente na época da Independência, que reverberou por longo tempo. Assumindo papel central da religiosidade nas residências, os oratórios carregam a mesma simbologia existente na religião formal das igrejas e reafirmam que a religiosidade popular baiana - assim como a brasileira, em geral - é sustentada no culto aos santos.

35.   A difusão dos modelo dos oratórios, assim como, o modelo retabilístico do Bonfim demonstra a força da mística religiosa dos baianos, pois estando o templo na periferia geográfica da cidade, ocupou e ocupa, do ponto de vista artístico e cultural, o centro simbólico irradiador, como bem exemplifica a difusão de seu modelo retabilístico. Fora da cidade de Salvador, há também reverberação dos oratórios, pois entre os encontrados em Salvador, alguns possuem origem em cidades do interior baiano.

36.   As igrejas, capelas e residências podem ter influenciado muito além do que apuramos e imaginamos, pois encontramos por exemplo, um oratório com o arremate ensaiando volutas e sustentado uma cruz latina - tipo originado no Nordeste brasileiro -, no Museu do Oratório em Ouro Preto de Minas Gerais. Há a possibilidade de que esse oratório seja da Bahia, mas com sua circulação, tenha sido atribuída outra origem a peça do acervo do museu. O certo é que esses objetos são como vestígios de um antigo hábito de orar para os santos neles entronizados e abrigados - prática que atualmente é difícil de encontrar no recôndito dos lares baianos.

37.   Por fim, consideramos duas ações diante dos objetos. Uma é o descarte dos oratórios: quando não são vendidos a antiquários, são descartados no lixo ou mesmo depositados em um cruzeiro, como constatamos na cidade de Sapezinho, interior da Bahia.  A outra é o retorno ao contexto residencial, através da aquisição dos oratórios em antiquários e da compra em lojas de artesanato e feitura destes em casa com material reciclado ou de baixo custo. Em tamanho reduzido, os oratórios agora se encaixam no curto tempo da vida moderna das pessoas. Os atos revelam que, muitas vezes, os oratórios dos quais falamos nesse estudo, enquanto bens culturais materiais e patrimônios culturais, não são devidamente salvaguardados e preservados.  

Referências bibliográficas 

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MOUTINHO, Stella; PRADO, Rubia Bueno; LONDRES, Ruth. Dicionário de artes decorativas e decoração de interiores. 9. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2011. 

PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença. In: PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.

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VIANNA, Hildegardes. A Bahia já foi assim (crônicas de costumes). Salvador; BA: Itapuã, 1973.


[1] Museólogo formado pela Universidade Federal da Bahia (EBA-UFBA). E-mail: claudiorafael.almeidadesouza@gmail.com

[2] Corona e Lemos (1989) afirmam que antigamente o termo designava o compartimento onde eram guardadas imagens sacras e onde se rezava, inclusive a santa missa. Seria quase que uma capela no interior de uma construção: habitação, hospital, cadeia, escola, etc. Havia também os oratórios em forma de nichos externos, nas fachadas dos edifícios, destinados a imagens cultuadas publicamente. Hoje em dia o termo praticamente só designa o pequeno armário, ou caixa, destinada à guarda domiciliar de pequenas imagens santas. Nome da sala, provida de altar, em que, nas cadeias, os presos esperavam a hora da execução.

[3] Para Peter Burke (2004), todo objeto possui uma imagem e essa imagem, carregada de propósito, se torna “testemunha ocular” da história.

[4] Em um primeiro nível, a iconografia tem como finalidade identificar as formas puras, ou seja, os elementos, as cores, os formatos, assim como, as expressões e as variações psicológicas inerentes às imagens. É uma das bases para a boa compreensão contextual do objeto enquanto obra de arte. Em um segundo nível, permite reconhecer a personificação de conceitos e símbolos em imagens. Esta etapa da análise se diferencia da primeira por causa de dois motivos: “em primeiro lugar por ser inteligível em vez de sensível e, em segundo, por ter sido conscientemente conferido a ação prática pela qual é veiculada” (PANOFSKY, 1986, p. 47).

[5] Conforme Tilde Canti (1985, p. 195), em documentos baianos de fins do século XVIII e princípios do XIX, foram também localizados moveis torneados paralelamente a outros no estilo neoclássico de pernas de curva e contracurva que, por sua vez, continuaram a ser usados durante o século seguinte.

[6] Possivelmente existe um número maior em residências da cidade, nas cidades do interior e em outros Estados. Entretanto, acreditamos que o maior número ainda se encontra em Salvador.

[7] “No final do século XVIII, aparece e rapidamente se difunde um novo tipo de talha religiosa de gosto neoclássico. [...] Os retábulos neoclássicos caracterizam-se geralmente pelo abandono dos elementos de ornamentação tradicionais, favorecendo um repertório ornamental clássico, formado por vasos de flores, rígidas grinaldas, estrelas, palmetas, florões e grutescos; absoluta simplificação das linhas de pilastras e colunas; a verticalidade dos retábulos é acentuada. Os altares recuperam a estrutura das portadas renascentistas ou dos arcos triunfais romanos; as mísulas e bases das colunas simplificam-se e se transformam em caixas retangulares; as colunas são de ordem dórica e jônica, com o fuste predominantemente reto, liso ou com estrias em dourado, ou ainda com pintura marmorizada; o entablamento é de grandes proporções; A estrutura do retábulo-mor geralmente é em baldaquino, arrematado por um coroamento curvo, curvo interrompido ou triangular; pode ocorrer o uso de medalhões ovais no centro do coroamento e no arco-cruzeiro” (FABRINO, 2012, p. 27-29).